domingo, 5 de dezembro de 2010

O elogio puro da beleza fugaz

Baudelaire vê o artista ”em meio à multidão”


Se a crítica fosse apenas uma atividade de frustrados que procuram defeitos nos outros, o maior poeta francês do século 19 não teria sido também o maior crítico. E Charles Baudelaire (1821-1867) foi ambos. Além de ter sido o primeiro a dar o devido valor a Edgar Allan Poe, o poeta, contista e crítico que os EUA ainda não sabiam valorizar, Baudelaire foi fundamental na crítica de arte. Fundamental, no sentido puro: ele foi aos fundamentos da atividade, de seu papel na interpretação da arte e, por extensão, na interpretação da vida, que a arte recria, critica e enriquece. “Por sorte”, escreve Baudelaire, “surge de tempos em tempos quem coloque as coisas no devido lugar: críticos, amantes da arte, espíritos inquisitivos.”

A frase está no livro O Pintor da Vida Moderna, escrito por ele em 1863 e só agora digno de uma bela edição brasileira, da editora Autêntica, por iniciativa da dupla Tomaz Tadeu (tradução e organização) e Jérôme Dufilho (posfácio e organização). O Homem na Multidão, o célebre texto de Poe, foi sabiamente acrescido ao volume, que é todo ilustrado a cores, tem capa dura e papel cuchê. Curiosamente, depois de tanto tempo ignorada, esse é o terceiro livro produzido nos últimos três anos no Brasil com a crítica de arte de Baudelaire. Em 2008, um trabalho de 1992 de Plínio Augusto Coelho, a tradução dos Escritos Sobre Arte, foi relançado pela editora Hedra. Em 2010, graças a Daniela Kern, a Sulina publicou Paisagem Moderna, com as resenhas dos salões de arte por Baudelaire, acompanhadas de outro material inédito em português, os ensaios de John Ruskin sobre Turner e outros artistas.

E quem era o pintor da vida moderna referido no título? Era Constantin Guys (1802-1892), aquarelista e ilustrador, cronista visual do Segundo Império francês, que provavelmente estaria esquecido hoje se não fosse pelo ensaio de Baudelaire. O autor de As Flores do Mal (1857), porém, não estranharia o fato: ele mesmo se encarrega de dizer que Guys não era um gênio, um Rafael a falar com toda a posteridade, mas um grande talento voltado a seu tempo. “O prazer que extraímos da representação do presente”, diz Baudelaire logo no começo, “deve-se não apenas à beleza de que pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente.” E então ele se põe a analisar as maneiras como Guys captou a essência do presente que vivenciou.

Baudelaire fala das “gravuras de moda” como vinhetas de época animadas pela sensibilidade poética de Guys, que encontrava nessas roupas um “imortal apetite pelo belo” em constante metamorfose e, mais importante, um pretexto para o artista manifestar sua curiosidade sobre o mundo, com suas variáveis morais, políticas e estéticas, com sua diversidade de hábitos, gostos e semblantes. “Imaginem um artista que estivesse sempre, espiritualmente, em estado de convalescença”, continua, “e terão a chave do caráter do Sr. G.” Como uma criança, estava sempre alerta para as novidades, sem preconceito de gênero ou classe, e isso se expressa em linhas ágeis, tintas coloridas, registros sem acabamento, urgentes, de poucos mas significativos detalhes.

Olhando os desenhos e aquarelas reproduzidos no livro, vemos justamente essa vitalidade de Guys, que, como um Daumier mais lírico e menos satírico, prenuncia o impressionismo de Degas ou Lautrec. Na Mulher com Lenço Amarelo, ele ignora as demais cores e não se detém em definir os limites do amarelo a uma peça de roupa; por isso mesmo, nos sugere todo o movimento, a graça, o caráter transeunte e transitivo da cena. Baudelaire defende o gosto feminino por moda, para “pairar acima da natureza”, não para “rivalizar com a juventude”, e Guys como seu cronista civilizado. Ele parece “inebriado”, quase “anárquico”, mas essa velocidade é seu trunfo, porque associada ao dom da contemplação – tanto que suas cenas de guerra ou de sua viagem à Turquia refletem a mesma preocupação com a explosão de luzes e a riqueza de detalhes. No Brasil, intelectuais diriam que isso tudo não passa de frivolidade; não espanta que não vejam o talento gráfico de um Millôr Fernandes.

Quando escreveu sobre um pintor maior, Delacroix (que foi para ele o que Turner foi para Ruskin: a síntese pictórica de todas suas inquietações estéticas), Baudelaire destacou também essa qualidade “mundana”, lembrando a frase dele de que um artista deveria ser hábil o bastante para “fazer um croquis de um homem que se atira pela janela durante o tempo que ele leva para cair do quarto andar ao solo”. Ou seja: a rapidez da percepção, a aptidão gráfica, não faria de um pintor um grande artista, mas seria necessária para um artista moderno, urbano, interessado em renovar as linguagens. Não existe apenas a beleza clássica, das formas gerais; existe também a beleza passageira, das formas particulares – e a modernidade é indissociável dessa atenção ao que é fugaz e móvel.

Não por acaso a centena de poemas de As Flores do Mal é o que é: um mosaico clássico composto de pastilhas modernas – ou, como disse João Cabral de Melo Neto, “está tudo ali”. Não por acaso foi em Baudelaire que Walter Benjamin examinou a figura do flâneur, do observador que caminha pela metrópole e se relaciona com o mercado de consumo, em meio à multidão, e como o homem de Poe passa a ver “com particular interesse as inumeráveis variedades de acessório, roupa, aparência, andar, rosto e expressão facial”. E não por acaso, em 1895, um famoso dândi se baseou em Baudelaire para elogiar Guys numa comparação com Whistler, ainda que este hoje seja reconhecido como melhor pintor – e esse dândi se chamava Robert de Montesquiou, modelo para o Barão de Charlus de outro escritor e crítico de arte, Marcel Proust, admirador e tradutor de Ruskin. Os grandes artistas modernos, enfim, não são nada senão críticos, amantes da arte, espíritos inquisitivos

Daniel Piza
Fonte : O Estado de S.Paulo

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