Romance sonâmbulo
Federico Garcia Lorca
(A Gloria Giner e a
Fernando de los Rios)
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las.
Verde que te quero verde.
Grandes estrelas de escarcha
nascem com o peixe de sombra
que rasga o caminho da alva.
A figueira raspa o vento
a lixá-lo com as ramas,
e o monte, gato selvagem,
eriça as piteiras ásperas.
Mas quem virá? E por onde?…
Ela fica na varanda,
verde carne, tranças verdes,
ela sonha na água amarga.
— Compadre, dou meu cavalo
em troca de sua casa,
o arreio por seu espelho,
a faca por sua manta.
Compadre, venho sangrando
desde as passagens de Cabra.
— Se pudesse, meu mocinho,
esse negócio eu fechava.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Compadre, quero morrer
com decência, em minha cama.
De ferro, se for possível,
e com lençóis de cambraia.
Não vês que enorme ferida
vai de meu peito à garganta?
— Trezentas rosas morenas
traz tua camisa branca.
Ressuma teu sangue e cheira
em redor de tua faixa.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Que eu possa subir ao menos
até às altas varandas.
Que eu possa subir! que o possa
até às verdes varandas.
As balaustradas da lua
por onde retumba a água.
Já sobem os dois compadres
até às altas varandas.
Deixando um rastro de sangue.
Deixando um rastro de lágrimas.
Tremiam pelos telhados
pequenos faróis de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.
Verde que te quero verde,
verde vento, verdes ramas.
Os dois compadres subiram.
O vasto vento deixava
na boca um gosto esquisito
de menta, fel e alfavaca.
— Que é dela, compadre, dize-me
que é de tua filha amarga?
— Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
rosto fresco, negras tranças,
aqui na verde varanda!
Sobre a face da cisterna
balançava-se a gitana.
Verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Ponta gelada de lua
sustenta-a por cima da água.
A noite se fez tão íntima
como uma pequena praça.
Lá fora, à porta, golpeando,
guardas-civis na cachaça.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar.
E o cavalo na montanha.
Federico Garcia Lorca nasceu na região de Granada, na Espanha, em 05 de junho de 1898, e faleceu nos arredores de Granada no dia 19 de agosto de 1936, assassinado pelos “Nacionalistas”. Nessa ocasião o general Franco dava início à guerra civil espanhola. Apesar de nunca ter sido comunista – apenas um socialista convicto que havia tomado posição a favor da República – Lorca, então com 38 anos, foi preso por um deputado católico direitista que justificou sua prisão sob a alegação de que ele era “mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver.” Avesso à violência, o poeta, como homossexual que era, sabia muito bem o quanto era doloroso sentir-se ameaçado e perseguido. Nessa época, suas peças teatrais “A casa de Bernarda Alba”, “Yerma”, “Bodas de sangue”, “Dona Rosita, a solteira” e outras, eram encenadas com sucesso. Sua execução, com um tiro na nuca, teve repercussão mundial.
A poesia acima foi extraída de sua “Antologia Poética”, Editora Leitura S. A. – Rio de Janeiro, 1966, pág. 53, tradução e seleção de Afonso Felix de Sousa.
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quarta-feira, 28 de abril de 2010
Volver a los 17
Violeta Parra
Volver a los diecisiete después de vivir un siglo
Es como descifrar signos sin ser sabio competente,
Volver a ser de repente tan frágil como un segundo
Volver a sentir profundo como un niño frente a Dios
Eso es lo que siento yo en este instante fecundo.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
Mi paso retrocedido cuando el de ustedes avanza
El arco de las alianzas ha penetrado en mi nido
Con todo su colorido se ha paseado por mis venas
Y hasta la dura cadena con que nos ata el destino
Es como un diamante fino que alumbra mi alma serena.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
Lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saber
Ni el más claro proceder, ni el más ancho pensamiento
Todo lo cambia al momento cual mago condescendiente
Nos aleja dulcemente de rencores y violencias
Solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
El amor es torbellino de pureza original
Hasta el feroz animal susurra su dulce trino
Detiene a los peregrinos, libera a los prisioneros,
El amor con sus esmeros al viejo lo vuelve niño
Y al malo sólo el cariño lo vuelve puro y sincero.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
De par en par la ventana se abrió como por encanto
Entró el amor con su manto como una tibia mañana
Al son de su bella diana hizo brotar el jazmín
Volando cual serafín al cielo le puso aretes
Mis años en diecisiete los convirtió el querubín.
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Violeta Parra
Volver a los diecisiete después de vivir un siglo
Es como descifrar signos sin ser sabio competente,
Volver a ser de repente tan frágil como un segundo
Volver a sentir profundo como un niño frente a Dios
Eso es lo que siento yo en este instante fecundo.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
Mi paso retrocedido cuando el de ustedes avanza
El arco de las alianzas ha penetrado en mi nido
Con todo su colorido se ha paseado por mis venas
Y hasta la dura cadena con que nos ata el destino
Es como un diamante fino que alumbra mi alma serena.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
Lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saber
Ni el más claro proceder, ni el más ancho pensamiento
Todo lo cambia al momento cual mago condescendiente
Nos aleja dulcemente de rencores y violencias
Solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
El amor es torbellino de pureza original
Hasta el feroz animal susurra su dulce trino
Detiene a los peregrinos, libera a los prisioneros,
El amor con sus esmeros al viejo lo vuelve niño
Y al malo sólo el cariño lo vuelve puro y sincero.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
De par en par la ventana se abrió como por encanto
Entró el amor con su manto como una tibia mañana
Al son de su bella diana hizo brotar el jazmín
Volando cual serafín al cielo le puso aretes
Mis años en diecisiete los convirtió el querubín.
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«O HORROR ECONÓMICO [6]
[...] A indiferença é feroz. Constitui o partido mais activo e sem dúvida o mais poderoso. Permite todas as arbitrariedades, os desvios mais funestos e mais sórdidos. Este século é um trágico testemunho disso.
Obter a indiferença geral representa, para um sistema, uma vitória maior que qualquer adesão parcial, ainda que considerável. E é, de facto, a indiferença que permite as adesões maciças a certos regimes; das consequências disso sabemos nós.
A indiferença é quase sempre maioritária e desenfreada. Ora, estes últimos anos foram, à sua maneira, campeões da inconsciência plácida face à instalação de um domínio absoluto; campeões da História camuflada, dos avanços despercebidos, da desatenção geral. Desatenção tal que nem foi registada. Desinteresse, deficiente observação, obtidos sem dúvida graças a estratégias silenciosas, obstinadas, que insinuaram lentamente os seus cavalos de Tróia e souberam alicerçar-se tão bem sobre aquilo que propagam – a falta de qualquer tipo de vigilância – que foram e continuam a ser indetectáveis e por isso mais eficazes.
Tão eficazes que as paisagens políticas e económicas puderam metamorfosear-se à vista de todos (mas sem que ninguém o soubesse) sem despertar a atenção e muito menos a inquietação. O novo esquema planetário, passando despercebido, pôde invadir e dominar as nossas vidas sem ser tomado em conta, a não ser pelas potências económicas que o lançaram. E cá estamos num mundo novo, dirigido por essas potências segundo sistemas inéditos, e no seio do qual, agindo e reagindo como se de nada se tratasse, continuamos a sonhar em função de uma organização e de uma economia que deixaram de funcionar.
O desapego e a letargia obtiveram tal preponderância que, se nos propusermos hoje, contra o que é vulgar, a impedir qualquer processo político ou social, qualquer pirataria “politicamente correcta”, descobriremos que, enquanto dormitávamos, foram longa e minuciosamente elaborados, a montante, os projectos que queremos combater; inscreveram-se de forma sólida e são os únicos em conformidade com os princípios; de tal forma que surgem enraizados, inelutáveis e até por vezes muito calmamente instalados nos factos!
Tudo foi montado muito antes de intervirmos (ou pensarmos intervir). Até o sentido do nosso protesto foi já esvaziado. Nem sequer nos encontramos diante do facto consumado: estamos já aferrolhados dentro dele.
A nossa passividade deixa-nos nas malhas de uma rede política que cobre por inteiro a paisagem planetária. Não se põe tanto a questão do valor positivo ou nefasto da política que presidiu a esse estado de coisas, mas o facto de um tal sistema ter podido impor-se como um dogma sem ter provocado turbulência ou suscitado comentários, a não ser raramente e tarde de mais. No entanto, ocupou tanto o espaço físico como o espaço virtual, instalou a prevalência absoluta dos mercados e das suas oscilações; soube confiscar como nunca as riquezas, e escamoteá-las, pô-las fora do alcance ou até anulá-las sob forma de símbolos, por sua vez núcleos de tráficos abstractos, subtraídos a quaisquer trocas além das virtuais.
[...]
A origem do perigo não é tanto a situação – ela podia ser modificada –, mas mais precisamente a nossa aquiescência cega, a resignação geral face ao que nos apresentam em bloco como inelutável. [...]
O sistema liberal actual é flexível e transparente, o bastante para se adaptar às diversidades nacionais, mas bastante “mundializado” para as confinar pouco a pouco ao campo folclórico. Severo, tirânico, mais difuso, pouco detectável, expandido por toda a parte, esse regime que nunca foi proclamado detém todas as chaves da economia, que reduz ao domínio dos negócios, os quais se apressam a absorver tudo o que ainda não pertença à sua esfera.
[...]
As armas do poder? A economia privada nunca as perdeu. Por vezes vencida ou ameaçada disso, soube conservar, mesmo nessas ocasiões, os seus instrumentos, em particular a riqueza e a propriedade. A finança. Sempre que, temporariamente forçada, teve necessidade de renunciar a certas vantagens: essas vantagens foram sempre muito inferiores àquelas de que não abdicou.
Mesmo nos momentos de derrotas mais ou menos passageiras, nunca deixou de minar as posições do adversário com uma tenacidade sem igual, e de resto muito valorosa. Foi talvez nessas alturas que deu provas de melhores recursos. Ocasionalmente, alimentou-se dos seus revezes, sabendo fazer-se esquecida, camuflar-se enquanto polia como nunca as armas conservadas, ao mesmo tempo que aperfeiçoava as suas pedagogias, consolidando as suas redes. A sua ordem sempre perdurou. O modelo que representa pôde ser negado, espezinhado, desprezado, ao ponto de parecer afundar-se – mas estava apenas suspenso. O predomínio das esferas privadas, das suas classes dominantes, restabeleceu-se sempre.
Porque o poder não é o poderio. Ora o poderio (que não quer saber dos poderes, os quais, na maior parte das vezes, ele próprio outorgou e delegou, a fim de melhor os gerir) nunca mudou de campo. As classes dirigentes da economia privada perderam algumas vezes o poder, mas nunca o poderio, esse poderio que Pascal designa sob o termo de força: “O império baseado na opinião e na imaginação reina algum tempo e esse império é suave e voluntário; o da força reina sempre. Assim, a opinião é como a rainha do mundo, mas a força é o seu tirano.” [...]»
Viviane Forrester
[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997;
[...] A indiferença é feroz. Constitui o partido mais activo e sem dúvida o mais poderoso. Permite todas as arbitrariedades, os desvios mais funestos e mais sórdidos. Este século é um trágico testemunho disso.
Obter a indiferença geral representa, para um sistema, uma vitória maior que qualquer adesão parcial, ainda que considerável. E é, de facto, a indiferença que permite as adesões maciças a certos regimes; das consequências disso sabemos nós.
A indiferença é quase sempre maioritária e desenfreada. Ora, estes últimos anos foram, à sua maneira, campeões da inconsciência plácida face à instalação de um domínio absoluto; campeões da História camuflada, dos avanços despercebidos, da desatenção geral. Desatenção tal que nem foi registada. Desinteresse, deficiente observação, obtidos sem dúvida graças a estratégias silenciosas, obstinadas, que insinuaram lentamente os seus cavalos de Tróia e souberam alicerçar-se tão bem sobre aquilo que propagam – a falta de qualquer tipo de vigilância – que foram e continuam a ser indetectáveis e por isso mais eficazes.
Tão eficazes que as paisagens políticas e económicas puderam metamorfosear-se à vista de todos (mas sem que ninguém o soubesse) sem despertar a atenção e muito menos a inquietação. O novo esquema planetário, passando despercebido, pôde invadir e dominar as nossas vidas sem ser tomado em conta, a não ser pelas potências económicas que o lançaram. E cá estamos num mundo novo, dirigido por essas potências segundo sistemas inéditos, e no seio do qual, agindo e reagindo como se de nada se tratasse, continuamos a sonhar em função de uma organização e de uma economia que deixaram de funcionar.
O desapego e a letargia obtiveram tal preponderância que, se nos propusermos hoje, contra o que é vulgar, a impedir qualquer processo político ou social, qualquer pirataria “politicamente correcta”, descobriremos que, enquanto dormitávamos, foram longa e minuciosamente elaborados, a montante, os projectos que queremos combater; inscreveram-se de forma sólida e são os únicos em conformidade com os princípios; de tal forma que surgem enraizados, inelutáveis e até por vezes muito calmamente instalados nos factos!
Tudo foi montado muito antes de intervirmos (ou pensarmos intervir). Até o sentido do nosso protesto foi já esvaziado. Nem sequer nos encontramos diante do facto consumado: estamos já aferrolhados dentro dele.
A nossa passividade deixa-nos nas malhas de uma rede política que cobre por inteiro a paisagem planetária. Não se põe tanto a questão do valor positivo ou nefasto da política que presidiu a esse estado de coisas, mas o facto de um tal sistema ter podido impor-se como um dogma sem ter provocado turbulência ou suscitado comentários, a não ser raramente e tarde de mais. No entanto, ocupou tanto o espaço físico como o espaço virtual, instalou a prevalência absoluta dos mercados e das suas oscilações; soube confiscar como nunca as riquezas, e escamoteá-las, pô-las fora do alcance ou até anulá-las sob forma de símbolos, por sua vez núcleos de tráficos abstractos, subtraídos a quaisquer trocas além das virtuais.
[...]
A origem do perigo não é tanto a situação – ela podia ser modificada –, mas mais precisamente a nossa aquiescência cega, a resignação geral face ao que nos apresentam em bloco como inelutável. [...]
O sistema liberal actual é flexível e transparente, o bastante para se adaptar às diversidades nacionais, mas bastante “mundializado” para as confinar pouco a pouco ao campo folclórico. Severo, tirânico, mais difuso, pouco detectável, expandido por toda a parte, esse regime que nunca foi proclamado detém todas as chaves da economia, que reduz ao domínio dos negócios, os quais se apressam a absorver tudo o que ainda não pertença à sua esfera.
[...]
As armas do poder? A economia privada nunca as perdeu. Por vezes vencida ou ameaçada disso, soube conservar, mesmo nessas ocasiões, os seus instrumentos, em particular a riqueza e a propriedade. A finança. Sempre que, temporariamente forçada, teve necessidade de renunciar a certas vantagens: essas vantagens foram sempre muito inferiores àquelas de que não abdicou.
Mesmo nos momentos de derrotas mais ou menos passageiras, nunca deixou de minar as posições do adversário com uma tenacidade sem igual, e de resto muito valorosa. Foi talvez nessas alturas que deu provas de melhores recursos. Ocasionalmente, alimentou-se dos seus revezes, sabendo fazer-se esquecida, camuflar-se enquanto polia como nunca as armas conservadas, ao mesmo tempo que aperfeiçoava as suas pedagogias, consolidando as suas redes. A sua ordem sempre perdurou. O modelo que representa pôde ser negado, espezinhado, desprezado, ao ponto de parecer afundar-se – mas estava apenas suspenso. O predomínio das esferas privadas, das suas classes dominantes, restabeleceu-se sempre.
Porque o poder não é o poderio. Ora o poderio (que não quer saber dos poderes, os quais, na maior parte das vezes, ele próprio outorgou e delegou, a fim de melhor os gerir) nunca mudou de campo. As classes dirigentes da economia privada perderam algumas vezes o poder, mas nunca o poderio, esse poderio que Pascal designa sob o termo de força: “O império baseado na opinião e na imaginação reina algum tempo e esse império é suave e voluntário; o da força reina sempre. Assim, a opinião é como a rainha do mundo, mas a força é o seu tirano.” [...]»
Viviane Forrester
[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997;
A utopia capitalista realizou-se no tempo dos seus decisores. Como não hão-de eles regozijar-se disso? É uma satisfação justificada, humana. Demasiado? O problema não é deles, que se limitam aos negócios. De resto, nem têm tempo para se deter no assunto, demasiado preocupados que estão em obter sempre cada vez mais lucro, o que, na sua perspectiva, faça-se-lhes justiça, tem sobretudo e mais exactamente o sentido de “sucesso”.
O seu mundo é apaixonante, têm dele uma visão inebriante e que, graças à sua redução despótica, funciona. Funesto, nem por isso deixa de ter sentido para quem nele participa. Mas as suas lógicas, a sua inteligência segura conduzem fatalmente ao desastre da sua hegemonia. Quaisquer que sejam as demonstrações sabiamente hipócritas, o seu poderio está posto em proveito próprio, em proveito dessa arrogância que faz considerar bom para todos aquilo que a si dá proveito. Natural é, pois, que um mundo subalterno seja sacrificado.
Estão agora de novo cheios de razão, e é seu dever explorar uma situação e uma época abençoadas, as nossas, em que nenhuma teoria, nenhum grupo credível, nenhuma forma de pensamento, nenhuma acção séria já se lhes opõem.
Isso dá-nos oportunidade de assistir a essas obras-primas de estratégia persuasiva que conseguem convencer-nos de que as políticas conducentes ou que aceleram a bancarrota social e a pauperização em detrimento da imensa maioria, não só são as únicas possíveis, como também as únicas desejáveis, em primeiro lugar... para esta maioria. [...]»
Viviane Forrester
[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997]
O seu mundo é apaixonante, têm dele uma visão inebriante e que, graças à sua redução despótica, funciona. Funesto, nem por isso deixa de ter sentido para quem nele participa. Mas as suas lógicas, a sua inteligência segura conduzem fatalmente ao desastre da sua hegemonia. Quaisquer que sejam as demonstrações sabiamente hipócritas, o seu poderio está posto em proveito próprio, em proveito dessa arrogância que faz considerar bom para todos aquilo que a si dá proveito. Natural é, pois, que um mundo subalterno seja sacrificado.
Estão agora de novo cheios de razão, e é seu dever explorar uma situação e uma época abençoadas, as nossas, em que nenhuma teoria, nenhum grupo credível, nenhuma forma de pensamento, nenhuma acção séria já se lhes opõem.
Isso dá-nos oportunidade de assistir a essas obras-primas de estratégia persuasiva que conseguem convencer-nos de que as políticas conducentes ou que aceleram a bancarrota social e a pauperização em detrimento da imensa maioria, não só são as únicas possíveis, como também as únicas desejáveis, em primeiro lugar... para esta maioria. [...]»
Viviane Forrester
[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997]
«O HORROR ECONÓMICO [7]
[...] Desvendam-se aqui os sentimentos reais que os dominadores experimentam pelos outros, seja qual for o regime – e em que base se calculam. Depressa descobriremos, e sem dúvida cada vez melhor, infelizmente, com o tempo, como, segundo esses cálculos, depois de transformado em zero, de excluído se passa a expulso.
O declive é bem inclinado. As agonias do trabalho perdido vivem-se a todos os níveis da escala social. Em cada um deles, são sentidas como uma prova acabrunhante que parece profanar a identidade de quem a sofre. Ocorre de imediato o desequilíbrio, a humilhação (injustificada), e o perigo. Os quadros podem estar sujeitos a isto, no mínimo tanto quanto os trabalhadores menos qualificados. É surpreendente descobrir até que ponto se pode perder rapidamente o pé e como a sociedade se torna severa, como se perdem todos ou quase todos os recursos quando se está destituído! Tudo vacila, se fecha e se afasta ao mesmo tempo. Tudo se fragiliza, mesmo a casa onde se mora. A rua torna-se próxima. Respeitam-se muito pouco os direitos daquele que deixou de ter “meios”. Sobretudo o direito de ser poupado, em qualquer aspecto.
Instalam-se então os limites, a exclusão social. E acentua-se a ausência geral e flagrante de racionalidade. Que correlação razoável pode haver, por exemplo, entre perder um trabalho e ser expulso, ver-se na rua? A punição não tem medida comum com o motivo apresentado, dado como evidente. Que seja tratado como um crime o facto de não se poder pagar, de não se conseguir pagar, é já em si surpreendente, se pensarmos bem. Mas ser castigado dessa maneira, lançado à rua por já não estar em condições de pagar um aluguer porque se perdeu o trabalho, numa situação em que esse trabalho escasseia por toda a parte, manifesta e oficialmente, ou por o emprego que nos está atribuído estar tarifado demasiado abaixo, se comparado com o preço aberrante de alugueres demasiado raros, tudo isso tem o seu quê de demencial ou de uma perversidade deliberada. Tanto mais que nos é exigido um domicílio, para conservar ou encontrar esse trabalho que constitui o único meio de obter um domicílio.
Portanto, resta-nos a rua. A rua, menos difícil, menos insensível do que os nossos sistemas!
Não só é injusto, como é de um absurdo atroz, de uma estupidez consternante, que torna cómicos os modos auto-suficientes das nossas sociedades ditas civilizadas. A menos que isso denuncie também interesses muito bem geridos. De qualquer maneira, morre-se de vergonha. Mas afinal quem passa pela vergonha, chegando por vezes à morte, e estragando sempre a vida?
Ausência de racionalidade? Alguns exemplos:
Isentar de censura as castas afortunadas, dirigentes, neste caso ignoradas, mas acusar certos grupos desfavorecidos por o serem menos que outros. Por serem, em suma, um pouco menos humilhados. Tomar assim as humilhações por modelo pelo qual devemos alinhar – numa palavra, tomar como norma o facto de se ser humilhado.
Considerar também privilegiados, no fundo aproveitadores, os que ainda têm trabalho, mesmo mal pago; portanto, tomar como norma a ausência de trabalho. Indignar-se com o “egoísmo” dos trabalhadores, esses sátrapas que rosnam quando se trata de partilhar o trabalho, mesmo mal pago, com os que o não têm, mas não alargar essa exigência de solidariedade à partilha das fortunas ou dos lucros – o que seria considerado, nos tempos que correm, imbecil, obsoleto e além disso de uma grande falta de educação!
[...]
Outro exemplo: os esforços há muito envidados para se colocar uma parte do país contra a outra parte, declarada vergonhosamente favorecida (agentes públicos, funcionários de base), sem tomar em conta os que de facto o são, a não ser para os designar como “forças vivas da nação”. E considerar essas “forças vivas”, esses dirigentes de multinacionais (amalgamados com os das PME), como os únicos a ousar correr riscos, como se eles fossem aventureiros impacientes por correr perigos incessantes e infinitos, sempre ansiosos por pôr em jogo... não se sabe bem o quê, enquanto os nababos condutores de metropolitano, os novos-ricos encartados empregados dos correios prosperam escandalosamente, em total segurança!
“Forças vivas”, assim denominadas por se supor serem detentoras e produtoras de empregos, mas que, mesmo subvencionadas, isentas de impostos, mimadas para esse fim, não só não criam nenhum ou quase nenhum (o desemprego continua a aumentar), como, mesmo recebendo benefícios (em parte graças às vantagens mencionadas), despendem a torto e a direito.
“Forças vivas”, portanto, antigamente designadas, de forma bastante estúpida, patrões, mas que, de repente, relegam músicos, pintores, escritores, investigadores científicos e outros saltimbancos para o papel de pesos-mortos, sem contar o resto dos humanos, todos convidados a erguer para o brilho de tais constelações humildes olhares de vermes ofuscados.
Quanto aos usurpadores que se refastelam sem vergonha na garantia de um emprego, a sua imunidade ao pânico resultante da precariedade, da fragilidade, do desaparecimento desses mesmos empregos representa um perigo escandaloso. E pior ainda, retardam a asfixia do mercado de trabalho. Ora, asfixia e pânico são o sustento da economia na sua exuberante modernidade, e os melhores garantes da “coesão social”.
[...]
[...] Desvendam-se aqui os sentimentos reais que os dominadores experimentam pelos outros, seja qual for o regime – e em que base se calculam. Depressa descobriremos, e sem dúvida cada vez melhor, infelizmente, com o tempo, como, segundo esses cálculos, depois de transformado em zero, de excluído se passa a expulso.
O declive é bem inclinado. As agonias do trabalho perdido vivem-se a todos os níveis da escala social. Em cada um deles, são sentidas como uma prova acabrunhante que parece profanar a identidade de quem a sofre. Ocorre de imediato o desequilíbrio, a humilhação (injustificada), e o perigo. Os quadros podem estar sujeitos a isto, no mínimo tanto quanto os trabalhadores menos qualificados. É surpreendente descobrir até que ponto se pode perder rapidamente o pé e como a sociedade se torna severa, como se perdem todos ou quase todos os recursos quando se está destituído! Tudo vacila, se fecha e se afasta ao mesmo tempo. Tudo se fragiliza, mesmo a casa onde se mora. A rua torna-se próxima. Respeitam-se muito pouco os direitos daquele que deixou de ter “meios”. Sobretudo o direito de ser poupado, em qualquer aspecto.
Instalam-se então os limites, a exclusão social. E acentua-se a ausência geral e flagrante de racionalidade. Que correlação razoável pode haver, por exemplo, entre perder um trabalho e ser expulso, ver-se na rua? A punição não tem medida comum com o motivo apresentado, dado como evidente. Que seja tratado como um crime o facto de não se poder pagar, de não se conseguir pagar, é já em si surpreendente, se pensarmos bem. Mas ser castigado dessa maneira, lançado à rua por já não estar em condições de pagar um aluguer porque se perdeu o trabalho, numa situação em que esse trabalho escasseia por toda a parte, manifesta e oficialmente, ou por o emprego que nos está atribuído estar tarifado demasiado abaixo, se comparado com o preço aberrante de alugueres demasiado raros, tudo isso tem o seu quê de demencial ou de uma perversidade deliberada. Tanto mais que nos é exigido um domicílio, para conservar ou encontrar esse trabalho que constitui o único meio de obter um domicílio.
Portanto, resta-nos a rua. A rua, menos difícil, menos insensível do que os nossos sistemas!
Não só é injusto, como é de um absurdo atroz, de uma estupidez consternante, que torna cómicos os modos auto-suficientes das nossas sociedades ditas civilizadas. A menos que isso denuncie também interesses muito bem geridos. De qualquer maneira, morre-se de vergonha. Mas afinal quem passa pela vergonha, chegando por vezes à morte, e estragando sempre a vida?
Ausência de racionalidade? Alguns exemplos:
Isentar de censura as castas afortunadas, dirigentes, neste caso ignoradas, mas acusar certos grupos desfavorecidos por o serem menos que outros. Por serem, em suma, um pouco menos humilhados. Tomar assim as humilhações por modelo pelo qual devemos alinhar – numa palavra, tomar como norma o facto de se ser humilhado.
Considerar também privilegiados, no fundo aproveitadores, os que ainda têm trabalho, mesmo mal pago; portanto, tomar como norma a ausência de trabalho. Indignar-se com o “egoísmo” dos trabalhadores, esses sátrapas que rosnam quando se trata de partilhar o trabalho, mesmo mal pago, com os que o não têm, mas não alargar essa exigência de solidariedade à partilha das fortunas ou dos lucros – o que seria considerado, nos tempos que correm, imbecil, obsoleto e além disso de uma grande falta de educação!
[...]
Outro exemplo: os esforços há muito envidados para se colocar uma parte do país contra a outra parte, declarada vergonhosamente favorecida (agentes públicos, funcionários de base), sem tomar em conta os que de facto o são, a não ser para os designar como “forças vivas da nação”. E considerar essas “forças vivas”, esses dirigentes de multinacionais (amalgamados com os das PME), como os únicos a ousar correr riscos, como se eles fossem aventureiros impacientes por correr perigos incessantes e infinitos, sempre ansiosos por pôr em jogo... não se sabe bem o quê, enquanto os nababos condutores de metropolitano, os novos-ricos encartados empregados dos correios prosperam escandalosamente, em total segurança!
“Forças vivas”, assim denominadas por se supor serem detentoras e produtoras de empregos, mas que, mesmo subvencionadas, isentas de impostos, mimadas para esse fim, não só não criam nenhum ou quase nenhum (o desemprego continua a aumentar), como, mesmo recebendo benefícios (em parte graças às vantagens mencionadas), despendem a torto e a direito.
“Forças vivas”, portanto, antigamente designadas, de forma bastante estúpida, patrões, mas que, de repente, relegam músicos, pintores, escritores, investigadores científicos e outros saltimbancos para o papel de pesos-mortos, sem contar o resto dos humanos, todos convidados a erguer para o brilho de tais constelações humildes olhares de vermes ofuscados.
Quanto aos usurpadores que se refastelam sem vergonha na garantia de um emprego, a sua imunidade ao pânico resultante da precariedade, da fragilidade, do desaparecimento desses mesmos empregos representa um perigo escandaloso. E pior ainda, retardam a asfixia do mercado de trabalho. Ora, asfixia e pânico são o sustento da economia na sua exuberante modernidade, e os melhores garantes da “coesão social”.
[...]
«O HORROR ECONÓMICO [8]
[...] Um efeito de estupor, de certo modo, [...] não deixa de recordar o abatimento dos povos colonizados por homens que tinham, para o melhor ou para o pior, atingido uma idade histórica diferente da sua e que assim viam a sua civilização revogada. Os valores espezinhados dos indígenas tornavam-se inoperantes nos próprios locais onde haviam florescido, onde pouco tempo antes ainda se aplicavam, mas onde eram vencidos, como que exilados, perante o novo poder que se instalava sem lhes conferir os meios de penetrar livres, em pé de igualdade, no novo sistema importado à força e sem lhes dar direito a nenhum direito.
Em contrapartida, os usurpadores outorgavam-se todos os direitos sobre os que, privados dos seus modos de vida, de pensamento, de crença e de saber, deixados sem referências, verdadeiramente siderados, acabavam por perder a energia e toda a capacidade, mas mais ainda todos os desejos, entre os quais o de compreender, e sobretudo de resistir. Povos cuja sabedoria, ciência e valores hoje reconhecemos, muitas vezes bons guerreiros apagavam-se, aprisionados numa civilização predadora que não era a sua e os rejeitava. Povos petrificados, paralisados, tetanizados, em sofrimento entre duas eras, vivendo num tempo anterior, numa cronologia diferente da dos seus conquistadores, que lhes impunham o outro presente sem o partilhar em nada. E isso em regiões que, compondo todo o seu mundo, tudo o que sabiam e imaginavam do mundo, se tornavam em prisão visto que, para eles, não existia mais nada.
Isto, será que não faz lembrar algo?
Não estamos nós também assustados, amarrados dentro de um mundo familiar mas mergulhado num domínio que nos é estranho? Sob o império mundializado do “pensamento único”, num mundo que já não funciona ao mesmo ritmo do nosso, que já não responde às nossas cronologias, mas cujo horário prevalece. Um mundo sem distâncias, por estar todo sob esse domínio, mas ao qual nos agarramos, empenhados em continuar seus súbditos doloridos, fascinados para sempre pela sua beleza, pelas suas oferendas, as suas trocas e perseguidos pela lembrança do tempo em que, submergidos pelo trabalho, ainda podíamos dizer: “Não morreremos, estamos demasiado atarefados.”
Hoje estamos ainda na fase da surpresa, de um certo definhar, de um condicionamento. A tragédia ainda não é espectacular. No entanto, no cerne, bem próximo do nervo daquilo que se considera ser o auge da civilização, “civilizados” dessa civilização excluem os que já não convêm e cujo número se sabe ir crescendo em proporções inimagináveis. Ainda se toleram os outros, mas cada vez menos outros, com cada vez mais impaciência e em condições mais e mais severas, segundo pontos de vista cada vez mais abertamente brutais. Já não se procuram tantos álibis e desculpas: o sistema está dado como adquirido. Baseado no dogma do lucro, está para lá das leis, que desarticula se necessário.
Já hoje, as regiões onde ainda se respeita minimamente a condição humana – com tal especiosidade, tais reticências e como que a custo, com remorso –, essas regiões são apontadas a dedo, vilipendiadas pelos Gary Becker, implicitamente desaprovadas pelos Bancos Mundiais e outras OCDE, sem contar com todos os adeptos do “pensamento único” que, unidos às “forças vivas” de todas as nações, se empenham em chamar esses excêntricos à razão. Com êxito.
Diante disto, que contrapoderes? Nenhum. Abrem-se sem resistência as portas aos bárbaros afectados, ao saque de luva branca.
E isto é só o começo. Convém estar muito atento a este tipo de começos: a princípio, nunca parecem criminosos, nem mesmo realmente perigosos. Desenvolvem-se com a concordância de pessoas perfeitamente encantadoras, de boas maneiras e bons sentimentos, incapazes de fazer mal a uma mosca, e que, aliás – se se derem ao trabalho de pensar nisso –, consideram lamentáveis, mas infelizmente inevitáveis, certas situações, e que ainda não sabem que é nesse preciso ponto que se inscreve a História, aquela de que não se aperceberam quando se tramava, quando se geravam acontecimentos que mais tarde se considerariam “indizíveis”.
É sem dúvida através desse tipo de acontecimentos (passados despercebidos quando ocorreram, ou antes censurados, eliminados da consciência) que se desenha por vezes a História. São eles que mais tarde – tarde de mais – se tornarão os sinais legíveis do que, na época, não foi digno de nota.
Por não termos tido consciência do que significava, desde o início, a sorte dos nossos contemporâneos sacrificados, tidos como um rebanho anónimo, talvez, quando tiverem passado por todas as provas daí resultantes, provas que se propagarão, cada vez mais permissivas – se é que terão fim –, talvez ainda venhamos a dizer que elas eram “indizíveis” e que “acima de tudo, não podemos esquecer”. Mas isso não será possível, porque ninguém o saberá.
Talvez haja quem esteja ainda em condições de dizer: “Isto nunca mais.” Mas talvez um dia já não haja ninguém capaz sequer de o pensar.
Exageros? É o que se diz “antes”, quando ainda se está a tempo de saber que só tocar numa unha, num cabelo, só um ultraje, constituem já um prenúncio do pior. E que os crimes contra a humanidade são sempre crimes da humanidade. Perpetrados por ela.
Este século ensinou-nos que nada dura, nem mesmo os regimes “de pedra e cal”, mas também que tudo é possível em termos de ferocidade. Ferocidade que, como nunca, se tornou apta a desencadear-se sem freio; sabe-se que, com as novas tecnologias, ela disporia hoje de dez vezes mais meios, ao lado dos quais as atrocidades passadas parecem não passar de esboços tímidos.
Como não pensar nos cenários possíveis sob um regime totalitário que não teria dificuldade em “mundializar-se” e que disporia de meios de eliminação com uma eficácia, amplitude e rapidez nunca imaginadas? Seria o genocídio total.
Mas talvez se ache uma pena não aproveitar melhor esses rebanhos de seres humanos; não os conservar com vida para fins diversos. Entre outros, como reservas de órgãos de transplante. Gado humano, stocks de órgãos vivos a que se recorreria à vontade, segundo as necessidades dos privilegiados do sistema.
Exagero? Mas qual de nós grita ao saber que na índia, por exemplo, há pobres que vendem os órgãos (rim, córnea, etc.) para sobreviver por uns tempos? É conhecido. Há clientes. Sabe-se. Isso acontece hoje. Esse comércio existe, e das regiões mais ricas, mais “civilizadas”, há quem venha fazer compras a baixo preço. Sabe-se que noutros países se roubam esses órgãos – raptos, homicídios – e que há clientes. Sabe-se. Quem grita, a não ser as vítimas? Que escudos se erguem contra o turismo sexual? Os únicos a reagir são os consumidores: acorrem. É conhecido. Assim como se sabe que é necessário abordar não tanto epifenómenos como a venda de órgãos humanos ou o turismo sexual, mas o fenómeno que lhes está na origem: a pobreza que todos conhecem, repetimos, conduz alguns pobres a deixar-se mutilar em benefício de possidentes, com o único objectivo de sobreviver um pouco mais. É aceite. Tacitamente. E estamos em democracia, livres, em grande número. Quem levanta um dedo, a não ser para fechar um jornal, apagar o televisor, dócil perante o apelo para se manter confiante, sorridente, lúdico e beato (se não se está já escondido, vencido e coberto de vergonha), enquanto o aspecto grave, a tragédia, se acentuam, invisíveis, subterrâneos e funestos, no meio de um mutismo quase geral, entrecortado por tagarelices que prometem curar o que já está morto?
Discursos atrás de discursos anunciam um “emprego” que não aparece, que não aparecerá. Locutores e ouvintes, candidatos e eleitores, políticos e público, sabem-no todos, associados em volta dos encantamentos com que procuram esquecer e negar, com motivações diversas, esse saber.
Esta atitude, que se furta ao desespero por meio de mentiras, de camuflagens, de fugas aberrantes, é desesperada e desesperante. Correr o risco da exactidão, o risco da constatação, mesmo que conduzam a um certo desespero, é, pelo contrário, o único gesto lúcido quanto ao presente e que preserva o futuro. Oferece de imediato a força de falar ainda, de pensar e de dizer. De tentar ser lúcido, de viver pelo menos com dignidade. Com inteligência. E não na vergonha e no receio, imobilizado numa armadilha a partir da qual nada nos é permitido.
Ter medo do medo, medo do desespero, é abrir caminho às chantagens que bem conhecemos. [...]»
Viviane Forrester
[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997]
Selecção de PCD
[...] Um efeito de estupor, de certo modo, [...] não deixa de recordar o abatimento dos povos colonizados por homens que tinham, para o melhor ou para o pior, atingido uma idade histórica diferente da sua e que assim viam a sua civilização revogada. Os valores espezinhados dos indígenas tornavam-se inoperantes nos próprios locais onde haviam florescido, onde pouco tempo antes ainda se aplicavam, mas onde eram vencidos, como que exilados, perante o novo poder que se instalava sem lhes conferir os meios de penetrar livres, em pé de igualdade, no novo sistema importado à força e sem lhes dar direito a nenhum direito.
Em contrapartida, os usurpadores outorgavam-se todos os direitos sobre os que, privados dos seus modos de vida, de pensamento, de crença e de saber, deixados sem referências, verdadeiramente siderados, acabavam por perder a energia e toda a capacidade, mas mais ainda todos os desejos, entre os quais o de compreender, e sobretudo de resistir. Povos cuja sabedoria, ciência e valores hoje reconhecemos, muitas vezes bons guerreiros apagavam-se, aprisionados numa civilização predadora que não era a sua e os rejeitava. Povos petrificados, paralisados, tetanizados, em sofrimento entre duas eras, vivendo num tempo anterior, numa cronologia diferente da dos seus conquistadores, que lhes impunham o outro presente sem o partilhar em nada. E isso em regiões que, compondo todo o seu mundo, tudo o que sabiam e imaginavam do mundo, se tornavam em prisão visto que, para eles, não existia mais nada.
Isto, será que não faz lembrar algo?
Não estamos nós também assustados, amarrados dentro de um mundo familiar mas mergulhado num domínio que nos é estranho? Sob o império mundializado do “pensamento único”, num mundo que já não funciona ao mesmo ritmo do nosso, que já não responde às nossas cronologias, mas cujo horário prevalece. Um mundo sem distâncias, por estar todo sob esse domínio, mas ao qual nos agarramos, empenhados em continuar seus súbditos doloridos, fascinados para sempre pela sua beleza, pelas suas oferendas, as suas trocas e perseguidos pela lembrança do tempo em que, submergidos pelo trabalho, ainda podíamos dizer: “Não morreremos, estamos demasiado atarefados.”
Hoje estamos ainda na fase da surpresa, de um certo definhar, de um condicionamento. A tragédia ainda não é espectacular. No entanto, no cerne, bem próximo do nervo daquilo que se considera ser o auge da civilização, “civilizados” dessa civilização excluem os que já não convêm e cujo número se sabe ir crescendo em proporções inimagináveis. Ainda se toleram os outros, mas cada vez menos outros, com cada vez mais impaciência e em condições mais e mais severas, segundo pontos de vista cada vez mais abertamente brutais. Já não se procuram tantos álibis e desculpas: o sistema está dado como adquirido. Baseado no dogma do lucro, está para lá das leis, que desarticula se necessário.
Já hoje, as regiões onde ainda se respeita minimamente a condição humana – com tal especiosidade, tais reticências e como que a custo, com remorso –, essas regiões são apontadas a dedo, vilipendiadas pelos Gary Becker, implicitamente desaprovadas pelos Bancos Mundiais e outras OCDE, sem contar com todos os adeptos do “pensamento único” que, unidos às “forças vivas” de todas as nações, se empenham em chamar esses excêntricos à razão. Com êxito.
Diante disto, que contrapoderes? Nenhum. Abrem-se sem resistência as portas aos bárbaros afectados, ao saque de luva branca.
E isto é só o começo. Convém estar muito atento a este tipo de começos: a princípio, nunca parecem criminosos, nem mesmo realmente perigosos. Desenvolvem-se com a concordância de pessoas perfeitamente encantadoras, de boas maneiras e bons sentimentos, incapazes de fazer mal a uma mosca, e que, aliás – se se derem ao trabalho de pensar nisso –, consideram lamentáveis, mas infelizmente inevitáveis, certas situações, e que ainda não sabem que é nesse preciso ponto que se inscreve a História, aquela de que não se aperceberam quando se tramava, quando se geravam acontecimentos que mais tarde se considerariam “indizíveis”.
É sem dúvida através desse tipo de acontecimentos (passados despercebidos quando ocorreram, ou antes censurados, eliminados da consciência) que se desenha por vezes a História. São eles que mais tarde – tarde de mais – se tornarão os sinais legíveis do que, na época, não foi digno de nota.
Por não termos tido consciência do que significava, desde o início, a sorte dos nossos contemporâneos sacrificados, tidos como um rebanho anónimo, talvez, quando tiverem passado por todas as provas daí resultantes, provas que se propagarão, cada vez mais permissivas – se é que terão fim –, talvez ainda venhamos a dizer que elas eram “indizíveis” e que “acima de tudo, não podemos esquecer”. Mas isso não será possível, porque ninguém o saberá.
Talvez haja quem esteja ainda em condições de dizer: “Isto nunca mais.” Mas talvez um dia já não haja ninguém capaz sequer de o pensar.
Exageros? É o que se diz “antes”, quando ainda se está a tempo de saber que só tocar numa unha, num cabelo, só um ultraje, constituem já um prenúncio do pior. E que os crimes contra a humanidade são sempre crimes da humanidade. Perpetrados por ela.
Este século ensinou-nos que nada dura, nem mesmo os regimes “de pedra e cal”, mas também que tudo é possível em termos de ferocidade. Ferocidade que, como nunca, se tornou apta a desencadear-se sem freio; sabe-se que, com as novas tecnologias, ela disporia hoje de dez vezes mais meios, ao lado dos quais as atrocidades passadas parecem não passar de esboços tímidos.
Como não pensar nos cenários possíveis sob um regime totalitário que não teria dificuldade em “mundializar-se” e que disporia de meios de eliminação com uma eficácia, amplitude e rapidez nunca imaginadas? Seria o genocídio total.
Mas talvez se ache uma pena não aproveitar melhor esses rebanhos de seres humanos; não os conservar com vida para fins diversos. Entre outros, como reservas de órgãos de transplante. Gado humano, stocks de órgãos vivos a que se recorreria à vontade, segundo as necessidades dos privilegiados do sistema.
Exagero? Mas qual de nós grita ao saber que na índia, por exemplo, há pobres que vendem os órgãos (rim, córnea, etc.) para sobreviver por uns tempos? É conhecido. Há clientes. Sabe-se. Isso acontece hoje. Esse comércio existe, e das regiões mais ricas, mais “civilizadas”, há quem venha fazer compras a baixo preço. Sabe-se que noutros países se roubam esses órgãos – raptos, homicídios – e que há clientes. Sabe-se. Quem grita, a não ser as vítimas? Que escudos se erguem contra o turismo sexual? Os únicos a reagir são os consumidores: acorrem. É conhecido. Assim como se sabe que é necessário abordar não tanto epifenómenos como a venda de órgãos humanos ou o turismo sexual, mas o fenómeno que lhes está na origem: a pobreza que todos conhecem, repetimos, conduz alguns pobres a deixar-se mutilar em benefício de possidentes, com o único objectivo de sobreviver um pouco mais. É aceite. Tacitamente. E estamos em democracia, livres, em grande número. Quem levanta um dedo, a não ser para fechar um jornal, apagar o televisor, dócil perante o apelo para se manter confiante, sorridente, lúdico e beato (se não se está já escondido, vencido e coberto de vergonha), enquanto o aspecto grave, a tragédia, se acentuam, invisíveis, subterrâneos e funestos, no meio de um mutismo quase geral, entrecortado por tagarelices que prometem curar o que já está morto?
Discursos atrás de discursos anunciam um “emprego” que não aparece, que não aparecerá. Locutores e ouvintes, candidatos e eleitores, políticos e público, sabem-no todos, associados em volta dos encantamentos com que procuram esquecer e negar, com motivações diversas, esse saber.
Esta atitude, que se furta ao desespero por meio de mentiras, de camuflagens, de fugas aberrantes, é desesperada e desesperante. Correr o risco da exactidão, o risco da constatação, mesmo que conduzam a um certo desespero, é, pelo contrário, o único gesto lúcido quanto ao presente e que preserva o futuro. Oferece de imediato a força de falar ainda, de pensar e de dizer. De tentar ser lúcido, de viver pelo menos com dignidade. Com inteligência. E não na vergonha e no receio, imobilizado numa armadilha a partir da qual nada nos é permitido.
Ter medo do medo, medo do desespero, é abrir caminho às chantagens que bem conhecemos. [...]»
Viviane Forrester
[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997]
Selecção de PCD
«Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.»
Guerra Junqueiro, 1896
Selecção de Daniel Pires
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.»
Guerra Junqueiro, 1896
Selecção de Daniel Pires
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