quarta-feira, 28 de abril de 2010

«O HORROR ECONÓMICO [8]



[...] Um efeito de estupor, de certo modo, [...] não deixa de recordar o abatimento dos povos colonizados por homens que tinham, para o melhor ou para o pior, atingido uma idade histórica diferente da sua e que assim viam a sua civilização revogada. Os valores espezinhados dos indígenas tornavam-se inoperantes nos próprios locais onde haviam florescido, onde pouco tempo antes ainda se aplicavam, mas onde eram vencidos, como que exilados, perante o novo poder que se instalava sem lhes conferir os meios de penetrar livres, em pé de igualdade, no novo sistema importado à força e sem lhes dar direito a nenhum direito.

Em contrapartida, os usurpadores outorgavam-se todos os direitos sobre os que, privados dos seus modos de vida, de pensamento, de crença e de saber, deixados sem referências, verdadeiramente siderados, acabavam por perder a energia e toda a capacidade, mas mais ainda todos os desejos, entre os quais o de compreender, e sobretudo de resistir. Povos cuja sabedoria, ciência e valores hoje reconhecemos, muitas vezes bons guerreiros apagavam-se, aprisionados numa civilização predadora que não era a sua e os rejeitava. Povos petrificados, paralisados, tetanizados, em sofrimento entre duas eras, vivendo num tempo anterior, numa cronologia diferente da dos seus conquistadores, que lhes impunham o outro presente sem o partilhar em nada. E isso em regiões que, compondo todo o seu mundo, tudo o que sabiam e imaginavam do mundo, se tornavam em prisão visto que, para eles, não existia mais nada.

Isto, será que não faz lembrar algo?

Não estamos nós também assustados, amarrados dentro de um mundo familiar mas mergulhado num domínio que nos é estranho? Sob o império mundializado do “pensamento único”, num mundo que já não funciona ao mesmo ritmo do nosso, que já não responde às nossas cronologias, mas cujo horário prevalece. Um mundo sem distâncias, por estar todo sob esse domínio, mas ao qual nos agarramos, empenhados em continuar seus súbditos doloridos, fascinados para sempre pela sua beleza, pelas suas oferendas, as suas trocas e perseguidos pela lembrança do tempo em que, submergidos pelo trabalho, ainda podíamos dizer: “Não morreremos, estamos demasiado atarefados.”

Hoje estamos ainda na fase da surpresa, de um certo definhar, de um condicionamento. A tragédia ainda não é espectacular. No entanto, no cerne, bem próximo do nervo daquilo que se considera ser o auge da civilização, “civilizados” dessa civilização excluem os que já não convêm e cujo número se sabe ir crescendo em proporções inimagináveis. Ainda se toleram os outros, mas cada vez menos outros, com cada vez mais impaciência e em condições mais e mais severas, segundo pontos de vista cada vez mais abertamente brutais. Já não se procuram tantos álibis e desculpas: o sistema está dado como adquirido. Baseado no dogma do lucro, está para lá das leis, que desarticula se necessário.

Já hoje, as regiões onde ainda se respeita minimamente a condição humana – com tal especiosidade, tais reticências e como que a custo, com remorso –, essas regiões são apontadas a dedo, vilipendiadas pelos Gary Becker, implicitamente desaprovadas pelos Bancos Mundiais e outras OCDE, sem contar com todos os adeptos do “pensamento único” que, unidos às “forças vivas” de todas as nações, se empenham em chamar esses excêntricos à razão. Com êxito.

Diante disto, que contrapoderes? Nenhum. Abrem-se sem resistência as portas aos bárbaros afectados, ao saque de luva branca.

E isto é só o começo. Convém estar muito atento a este tipo de começos: a princípio, nunca parecem criminosos, nem mesmo realmente perigosos. Desenvolvem-se com a concordância de pessoas perfeitamente encantadoras, de boas maneiras e bons sentimentos, incapazes de fazer mal a uma mosca, e que, aliás – se se derem ao trabalho de pensar nisso –, consideram lamentáveis, mas infelizmente inevitáveis, certas situações, e que ainda não sabem que é nesse preciso ponto que se inscreve a História, aquela de que não se aperceberam quando se tramava, quando se geravam acontecimentos que mais tarde se considerariam “indizíveis”.

É sem dúvida através desse tipo de acontecimentos (passados despercebidos quando ocorreram, ou antes censurados, eliminados da consciência) que se desenha por vezes a História. São eles que mais tarde – tarde de mais – se tornarão os sinais legíveis do que, na época, não foi digno de nota.

Por não termos tido consciência do que significava, desde o início, a sorte dos nossos contemporâneos sacrificados, tidos como um rebanho anónimo, talvez, quando tiverem passado por todas as provas daí resultantes, provas que se propagarão, cada vez mais permissivas – se é que terão fim –, talvez ainda venhamos a dizer que elas eram “indizíveis” e que “acima de tudo, não podemos esquecer”. Mas isso não será possível, porque ninguém o saberá.

Talvez haja quem esteja ainda em condições de dizer: “Isto nunca mais.” Mas talvez um dia já não haja ninguém capaz sequer de o pensar.

Exageros? É o que se diz “antes”, quando ainda se está a tempo de saber que só tocar numa unha, num cabelo, só um ultraje, constituem já um prenúncio do pior. E que os crimes contra a humanidade são sempre crimes da humanidade. Perpetrados por ela.

Este século ensinou-nos que nada dura, nem mesmo os regimes “de pedra e cal”, mas também que tudo é possível em termos de ferocidade. Ferocidade que, como nunca, se tornou apta a desencadear-se sem freio; sabe-se que, com as novas tecnologias, ela disporia hoje de dez vezes mais meios, ao lado dos quais as atrocidades passadas parecem não passar de esboços tímidos.

Como não pensar nos cenários possíveis sob um regime totalitário que não teria dificuldade em “mundializar-se” e que disporia de meios de eliminação com uma eficácia, amplitude e rapidez nunca imaginadas? Seria o genocídio total.

Mas talvez se ache uma pena não aproveitar melhor esses rebanhos de seres humanos; não os conservar com vida para fins diversos. Entre outros, como reservas de órgãos de transplante. Gado humano, stocks de órgãos vivos a que se recorreria à vontade, segundo as necessidades dos privilegiados do sistema.

Exagero? Mas qual de nós grita ao saber que na índia, por exemplo, há pobres que vendem os órgãos (rim, córnea, etc.) para sobreviver por uns tempos? É conhecido. Há clientes. Sabe-se. Isso acontece hoje. Esse comércio existe, e das regiões mais ricas, mais “civilizadas”, há quem venha fazer compras a baixo preço. Sabe-se que noutros países se roubam esses órgãos – raptos, homicídios – e que há clientes. Sabe-se. Quem grita, a não ser as vítimas? Que escudos se erguem contra o turismo sexual? Os únicos a reagir são os consumidores: acorrem. É conhecido. Assim como se sabe que é necessário abordar não tanto epifenómenos como a venda de órgãos humanos ou o turismo sexual, mas o fenómeno que lhes está na origem: a pobreza que todos conhecem, repetimos, conduz alguns pobres a deixar-se mutilar em benefício de possidentes, com o único objectivo de sobreviver um pouco mais. É aceite. Tacitamente. E estamos em democracia, livres, em grande número. Quem levanta um dedo, a não ser para fechar um jornal, apagar o televisor, dócil perante o apelo para se manter confiante, sorridente, lúdico e beato (se não se está já escondido, vencido e coberto de vergonha), enquanto o aspecto grave, a tragédia, se acentuam, invisíveis, subterrâneos e funestos, no meio de um mutismo quase geral, entrecortado por tagarelices que prometem curar o que já está morto?

Discursos atrás de discursos anunciam um “emprego” que não aparece, que não aparecerá. Locutores e ouvintes, candidatos e eleitores, políticos e público, sabem-no todos, associados em volta dos encantamentos com que procuram esquecer e negar, com motivações diversas, esse saber.

Esta atitude, que se furta ao desespero por meio de mentiras, de camuflagens, de fugas aberrantes, é desesperada e desesperante. Correr o risco da exactidão, o risco da constatação, mesmo que conduzam a um certo desespero, é, pelo contrário, o único gesto lúcido quanto ao presente e que preserva o futuro. Oferece de imediato a força de falar ainda, de pensar e de dizer. De tentar ser lúcido, de viver pelo menos com dignidade. Com inteligência. E não na vergonha e no receio, imobilizado numa armadilha a partir da qual nada nos é permitido.

Ter medo do medo, medo do desespero, é abrir caminho às chantagens que bem conhecemos. [...]»



Viviane Forrester



[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997]



Selecção de PCD

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