Por Amarílis Lage | VALOR
De São Paulo
Em 1978, um jovem gaúcho de 20 e poucos anos embarcou para os Estados Unidos disposto a refazer a viagem que Jack Kerouac (1922-1969) havia feito cerca de 30 anos antes, da Costa Leste à Oeste do país. Eduardo Bueno havia descoberto “On the Road” numa versão em espanhol (”En el Camino”), em Buenos Aires. Correu atrás do texto original, em inglês. Por fim, pegou a estrada também. E sentiu que estava no lugar certo, mas, aparentemente, no tempo errado.
“Havia um abismo entre o que eu vivia internamente, embebido daquele espírito beat, e o ambiente circundante”, lembra Bueno. “Vi que eu estava fora de tempo. Era o começo da América yuppie, o que me perturbou muito. Encontrei [o poeta beatnik] Lawrence Ferlinghetti e disse: ‘Vim em busca da rebelião’. E ele: ‘Que rebelião, cara?’ ‘Mas onde eu posso encontrar aquele espírito?’. E Ferlinghetti, com ironia e generosidade, respondeu: ‘Try the mountains’ [tente as montanhas].”
Bueno, que foi responsável pela primeira tradução brasileira de “On the Road”, publicada em 1984, conta que ficou chocado. “Era impressionante como Kerouac havia ‘morrido’ nos Estados Unidos naquela época.”
Estará vivo e influente hoje? Para o cineasta Walter Salles, a resposta é sim. E ele se apoia em outro autor beat, o poeta Mike McClure, que o diretor entrevistou para um documentário sobre “On the Road”, ainda inédito.
Certa vez, conta Salles, um jovem perguntou a McClure por que a geração beat havia morrido. “Só que esse cara estava vestido como queria, tinha o cabelo comprido, era budista e se preocupava com a ecologia. Onde está a geração beat? Está nele”, diz o diretor. “Os movimentos não duram para sempre. Em cinema, por exemplo, há o neorrealismo italiano, que aparentemente se extinguiu. No entanto, há diretores, como o turco Nuri Bilge Ceylan, que carregam muito daquilo com eles. Algo do movimento beat está vivo, mas dentro de nós, nem sabemos onde.”
Para Bueno, que também foi responsável pela coleção Alma Beat, da L&PM, que publicou obras de William Burroughs, Gary Snyder e Neal Cassady no Brasil, entre os principais legados da geração beatnik estão a preocupação com a preservação ambiental, a relação com religiões orientais e a atitude libertária. “Eles colocaram esses temas na roda.”
Além de introduzir uma série de questões culturais, os beats também deram sequência a aspectos da tradição literária americana que permanecem atuais.
Como conta Bueno no prefácio de “On the Road”, a busca por uma escrita que capturasse uma voz genuinamente americana já estava presente em autores como Walt Whitman (1819-1892) e Mark Twain (1835-1910).
Tematicamente, a ideia do andarilho, desadaptado da sociedade, também já estava presente. “A base disso está nas obras de Thoreau [1817-1862], como ‘A Desobediência Civil’ e ‘Walden – ou a Vida nos Bosques’”, afirma Bueno.
Salles identifica, porém, um aspecto dos beats que talvez tenha se perdido: a importância de viver a experiência na pele. “Eles viajavam quilômetros por uma boa conversa. Hoje, a gente manda um SMS. Espero que as pessoas sintam que existe alguma coisa a ser aprendida nesse tipo de vivência direta.”
sexta-feira, 13 de julho de 2012
Sob o domínio de Sade
Sob o domínio de Sade
(…) A sepultura e a alcova, em blasfêmias fecundas,
Nos dão de quando em vez, como boas irmãs,
Os prazeres do horror e as carícias malsãs.(…)
Charles Baudelaire, “As duas boas irmãs”
Há urgência neste apelo.
Uma dor ecoa nesse chamado.
Uma ordem requere sua chegada.
Hermes, apresse sua porção alada.
Preparo-me, impaciente, diante de um toucador imaginário.
Nove minutos e noventa passos distanciam-nos da consumação.
Determino data, hora, local para que se realize o meu capricho. Minha ânsia atroz.
Descomponho o outro, atiço-lhe o orgulho como se remexe uma fogueira. Quero que lhe doam essas ínfimas brasas. A pele marcada por pequenos sinais, souvenirs do sinistro prazer.
Ordeno que venha rápido. O sofrimento e as agruras da minha pressa e determinação.
Demarco todos os meus desejos e caprichos na ponta de um salto agudo imaginário, que perfura dolorosamente o seu receio, a fazer da fera bicho manso e dócil. Medo de cometer um erro sequer e perder-se na minha lâmina pensante. Impossível atravessar o roteiro traçado de viés. A mera miragem de perder a presa no momento de fúria faz da sua vontade músculos e movimento a reagir.
Imprimo-lhe a dor urgente do meu estímulo, a requerer, iminente, que algo atravesse meus sentidos, contundente, preciso, doloroso, brevíssimo. Perfurar, pungir, mortificar até que eu desfaleça. O prazer inoculado nessa transgressão.
O outro a exalar um medo animal, corre, selvagem. O odor alquímico a lhe atrair a esse domínio feminino. Na desabalada, o reflexo ardente de um cristal atinge-lhe em cheio o olhar, lembrando a ampulheta no aparador a escoar seus últimos grãos de areia. Mais um minuto apenas. O desespero impinge ao corpo, então, as torturas mais cruéis: atravessa espaços sinistros e inóspitos, farpas perfuram-lhe o corpo. A gravidade, dolorosa, a sugar-lhe um rio vermelho. Consigo carrega nada além do poder que, ao fim, nos libertará.
Pressinto sua chegada. O calor que sobe em vapores etílicos entorpece a determinação de lhe negar três vezes.
Uma voz poderosa brada que se abram as portas deste reino. A ponte levadiça desiste de oferecer resistência. Cavalariços abrem caminho a ele que chega. Cavalos, indomáveis, exalam algo indizível. As mulheres calam-se à sua passagem.
Inserido na extremidade do destino. Aplico um punhal fino na sua vontade, retalho as pretensões de seu orgulho masculino, rasgo-lhe os códigos preestabelecidos. Em gotas ferventes um unguento poderoso a arrancar-lhe a pele. Enceno um escárnio de sua indefesa condição. Deusa absoluta desse capítulo da história humana.
Premeditada, descarno por um instante a vendeta feminina. E, paradoxo, entrego-me aos braços ferozes e tirânicos. Esfolada viva, permito que lâminas finíssimas escalpem e dilacerem o que há em mim. Um prazer sórdido apodera-se de meus nervos expostos. E, do alto do meu orgulho, profetizo um mundo maldito e cruel.
E no ápice dessa tortura, algo abocanha o núcleo do amor. O poder do elixir que perpetua a espécie expande-se num silêncio bruto.
Algo congela-se num tempo histórico.
Um mundo inteiro interrompe seu curso.
Em repouso absoluto, corpos recuperam essências.
Hermes, enfim, cumpriu o prometido.
Postado por Sandra Brazil – Blog De Safo para Cleis
http://www.desafoparacleis.blogspot.com
(…) A sepultura e a alcova, em blasfêmias fecundas,
Nos dão de quando em vez, como boas irmãs,
Os prazeres do horror e as carícias malsãs.(…)
Charles Baudelaire, “As duas boas irmãs”
Há urgência neste apelo.
Uma dor ecoa nesse chamado.
Uma ordem requere sua chegada.
Hermes, apresse sua porção alada.
Preparo-me, impaciente, diante de um toucador imaginário.
Nove minutos e noventa passos distanciam-nos da consumação.
Determino data, hora, local para que se realize o meu capricho. Minha ânsia atroz.
Descomponho o outro, atiço-lhe o orgulho como se remexe uma fogueira. Quero que lhe doam essas ínfimas brasas. A pele marcada por pequenos sinais, souvenirs do sinistro prazer.
Ordeno que venha rápido. O sofrimento e as agruras da minha pressa e determinação.
Demarco todos os meus desejos e caprichos na ponta de um salto agudo imaginário, que perfura dolorosamente o seu receio, a fazer da fera bicho manso e dócil. Medo de cometer um erro sequer e perder-se na minha lâmina pensante. Impossível atravessar o roteiro traçado de viés. A mera miragem de perder a presa no momento de fúria faz da sua vontade músculos e movimento a reagir.
Imprimo-lhe a dor urgente do meu estímulo, a requerer, iminente, que algo atravesse meus sentidos, contundente, preciso, doloroso, brevíssimo. Perfurar, pungir, mortificar até que eu desfaleça. O prazer inoculado nessa transgressão.
O outro a exalar um medo animal, corre, selvagem. O odor alquímico a lhe atrair a esse domínio feminino. Na desabalada, o reflexo ardente de um cristal atinge-lhe em cheio o olhar, lembrando a ampulheta no aparador a escoar seus últimos grãos de areia. Mais um minuto apenas. O desespero impinge ao corpo, então, as torturas mais cruéis: atravessa espaços sinistros e inóspitos, farpas perfuram-lhe o corpo. A gravidade, dolorosa, a sugar-lhe um rio vermelho. Consigo carrega nada além do poder que, ao fim, nos libertará.
Pressinto sua chegada. O calor que sobe em vapores etílicos entorpece a determinação de lhe negar três vezes.
Uma voz poderosa brada que se abram as portas deste reino. A ponte levadiça desiste de oferecer resistência. Cavalariços abrem caminho a ele que chega. Cavalos, indomáveis, exalam algo indizível. As mulheres calam-se à sua passagem.
Inserido na extremidade do destino. Aplico um punhal fino na sua vontade, retalho as pretensões de seu orgulho masculino, rasgo-lhe os códigos preestabelecidos. Em gotas ferventes um unguento poderoso a arrancar-lhe a pele. Enceno um escárnio de sua indefesa condição. Deusa absoluta desse capítulo da história humana.
Premeditada, descarno por um instante a vendeta feminina. E, paradoxo, entrego-me aos braços ferozes e tirânicos. Esfolada viva, permito que lâminas finíssimas escalpem e dilacerem o que há em mim. Um prazer sórdido apodera-se de meus nervos expostos. E, do alto do meu orgulho, profetizo um mundo maldito e cruel.
E no ápice dessa tortura, algo abocanha o núcleo do amor. O poder do elixir que perpetua a espécie expande-se num silêncio bruto.
Algo congela-se num tempo histórico.
Um mundo inteiro interrompe seu curso.
Em repouso absoluto, corpos recuperam essências.
Hermes, enfim, cumpriu o prometido.
Postado por Sandra Brazil – Blog De Safo para Cleis
http://www.desafoparacleis.blogspot.com
Original French Text:
Je crois entendre encore
Cache sous les palmiers
Sa voix tendre et sonore
Comme un chant de ramiers.
Oh nuit enchanteresse
Divin ravissement
Oh souvenir charmant,
Folle ivresse, doux reve!
Aux clartes des etoiles
Je crois encor la voir
Entr’ouvrir ses longs voiles
Aux vents tiedes du soir.
Oh nuit enchanteresse
Divin ravissement
Oh souvenir charmant
Folle ivresse, doux reve!
Charmant Souvenir!
Charmant Souvenir!
Italian Text:
o scosa in mezzo ai fior,
la voce sua talora,
sospirare l’amor!
O notte di carezze,
gioir che non ha fin,
o sovvenir divin!
Folli ebbrezze del sogno, sogno d’amor!
Dalle stelle del cielo,
Altro menar che da lei,
La veggio d’ogni velo,
Prender li per le ser!
O notte di carezze!
gioir che non ha fin!
o sovvenir divin!
Folli ebbrezze del sogno, sogno d’amor!
divin sovvenir, divin sovvenir!
English Translation:
I believe I hear again,
hidden beneath the palm trees,
her tender, resonant voice,
like a dove’s song,
o enchanting night,
divine rapture,
o charming memory,
mad intoxication, sweet dream.
In the starlight,
I believe I see her again,
parting her long veils,
in the warm breezes of the evening,
o enchanting night,
divine rapture,
o charming memory,
mad intoxication, sweet dream.
Je crois entendre encore
Cache sous les palmiers
Sa voix tendre et sonore
Comme un chant de ramiers.
Oh nuit enchanteresse
Divin ravissement
Oh souvenir charmant,
Folle ivresse, doux reve!
Aux clartes des etoiles
Je crois encor la voir
Entr’ouvrir ses longs voiles
Aux vents tiedes du soir.
Oh nuit enchanteresse
Divin ravissement
Oh souvenir charmant
Folle ivresse, doux reve!
Charmant Souvenir!
Charmant Souvenir!
Italian Text:
o scosa in mezzo ai fior,
la voce sua talora,
sospirare l’amor!
O notte di carezze,
gioir che non ha fin,
o sovvenir divin!
Folli ebbrezze del sogno, sogno d’amor!
Dalle stelle del cielo,
Altro menar che da lei,
La veggio d’ogni velo,
Prender li per le ser!
O notte di carezze!
gioir che non ha fin!
o sovvenir divin!
Folli ebbrezze del sogno, sogno d’amor!
divin sovvenir, divin sovvenir!
English Translation:
I believe I hear again,
hidden beneath the palm trees,
her tender, resonant voice,
like a dove’s song,
o enchanting night,
divine rapture,
o charming memory,
mad intoxication, sweet dream.
In the starlight,
I believe I see her again,
parting her long veils,
in the warm breezes of the evening,
o enchanting night,
divine rapture,
o charming memory,
mad intoxication, sweet dream.
Estrada para a latinidade
Road movie mexicano, Um Mundo Secreto cria metáfora perfeita do evento que viaja por culturas e línguas
11 de julho de 2012
LUIZ CARLOS MERTEN – O Estado de S.Paulo
É no mínimo curioso que o Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, cuja sétima edição começa amanhã para convidados no Memorial da América Latina, se inicie sob o signo da estrada, e isso apenas dois antes da estreia de On the Road, que Walter Salles adaptou do livro cult de Jack Kerouac. Salles fez um belo filme baseado na experiência real (e visceral) de jovens norte-americanos que caíram na estrada em busca de liberdade – e deles mesmos. Seu filme é a história de uma amizade, e da sua destruição (e também da imortalização pela arte). E Um Mundo Secreto?
O longa do mexicano Gabriel Mariño teve sua estreia mundial na Berlinale, em fevereiro, integrando a mostra Generation Special. Narra, de forma lírica, a viagem de iniciação de uma garota. No último dia de escola, antes da graduação, ela deixa seu mundo para trás e parte numa viagem de autodescoberta. Maria, de 18 anos, é promíscua e, no fundo, talvez seja essencialmente uma solitária. Ela abandona o caos urbano da Cidade do México e atravessa o deserto de Sinaloa rumo ao vasto oceano. O que busca Maria? Na apresentação de seu filme, em Berlim, Mariño disse que quis traçar um retrato da juventude mexicana. “Há muita violência e instabilidade social no México. Nosso futuro é incerto e, para os jovens, é quase impossível estudar ou trabalhar. Meu filme busca entender quem são os jovens mexicanos, o que sentem e pensam.”
Quem pensa em mulheres na estrada lembra-se de Thelma e Louise, as protagonistas de um road movie de Ridley Scott que fez sensação, especialmente entre plateias femininas (e feministas), em 1991. A jornada de iniciação de Maria leva a uma conclusão tão espetacular quanto espiritual. O diretor filma a paisagem mais preocupado em revelar o turbilhão interior que consome Maria. Com o da protagonista, Lucía Uribe, guarde os nomes de Mariño e do fotógrafo – Ivan Hernández. Começando de forma tão auspiciosa, o 7.º Festival Latino-Americano, que vai até dia 19, vai exibir 75 filmes. Você talvez não consiga ver todos, mas vale entender a estrada iniciática de Um Mundo Secreto como uma metáfora – e um convite. É como se o próprio evento convidasse o público a viajar nas imagens dessas dezenas de filmes para compreender o mundo em que vive, e decifrar o enigma da complexidade continental.
Pense em culturas, em línguas. A maioria dos filmes é falada no idioma espanhol, com suas variações. São filmes como o uruguaio 3, de Pablo Stoll; o argentino Um Mundo Misterioso, de Rodrigo Moreno; o chileno O Círculo de Román, de Sebastián Brahm; o equatoriano Pescador, de Sebastián Cordero; e o colombiano Porfírio, de Alejandro Landes. Mas o Festival Latino também fala o português, por meio dos filmes brasileiros que integram a seleção – Hoje, de Tata Amaral, que venceu o Festival de Brasília no ano passado; Rânia, de Roberta Marques, que venceu a mostra Novos Rumos, no Festival do Rio de 2011; e Augustas, que Francisco César Filho adaptou do livro As Estratégias de Lilith, de Alex Antunes.
Gêneros. Querem mais road-movies? A venezuelana Marité Ugas vem para apresentar pessoalmente seu longa O Garoto Que Mente, que também integrou a mostra Generation, em Berlim. O filme conta a jornada de iniciação de um garoto que procura pela mãe desaparecida nos deslizamentos de terras que atingiram o departamento de Vargas, após a grande chuva de 1999. Já exibido nos festivais de Tiradentes e do Recife, Estradeiros, belo trabalho de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, filma a América Nuestra de forma a mostrar a estrada como metáfora de vida alternativa e negação do consumismo.
Quem disse que o cinema latino-americano não cultiva os gêneros? O cubano Juan dos Mortos, de Alejandro Brugués, mostra Havana decadente, o que não é exatamente uma novidade, mas agora assolada por zumbis, no que vai uma crítica às transformações na ilha, pós Fidel Castro. Maior êxito da história do cinema da Colômbia, O Ermo, de Jaume Osório Márquez, passa-se numa base a 4 mil metros de altura. Um comando militar é enviado para descobrir o que houve com a equipe que lá estava. Encontram um sobrevivente misterioso. Quem é esse cara? Oito curtas integram a série Fronteiras, produzida pelo canal TNT. Cada realizador teve liberdade para fazer seu filme como quisesse e o resultado contempla comédia e até western. Claudia Llosa, a diretora peruana que ganhou o Urso de Ouro com La Teta Asustada, foi de novo premiada em Berlim – ela ganhou neste ano o Teddy Bear, o chamado Urso gay, pelo curta Loxoró, sobre o universo das travestis.
Voltado ao apoio a novos filmes da América Latina, o programa Cine en Construcción ocorre duas vezes por ano, nos festivais de Toulouse e San Sebastián. O 7.º Festival Latino homenageia os dez anos de Cine em Construcción e o faz exibindo o que talvez seja o melhor filme brasileiro desde o início da Retomada – Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes. A sessão será apresentada pela francesa Eva Morsch, que integra o comitê de seleção do programa.
Eva também será jurada numa mostra inédita – Finaliza 2012. Fechada ao público, vai exibir sete longas em finalização e o vencedor vai ganhar R$ 99,4 mil em serviços, justamente para poder ficar pronto. O Prêmio Itamaraty, iniciativa do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, também vai dar R$ 90 mil ao filme vencedor, escolhido entre coproduções recentes, envolvendo pelo menos dois países da América do Sul. Todas as sessões do Festival Latino-Americano são gratuitas.
7º FESTIVAL DE CINEMA LATINO-AMERICANO DE SÃO PAULO
Programação completa: www.memorial.org.br
11 de julho de 2012
LUIZ CARLOS MERTEN – O Estado de S.Paulo
É no mínimo curioso que o Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, cuja sétima edição começa amanhã para convidados no Memorial da América Latina, se inicie sob o signo da estrada, e isso apenas dois antes da estreia de On the Road, que Walter Salles adaptou do livro cult de Jack Kerouac. Salles fez um belo filme baseado na experiência real (e visceral) de jovens norte-americanos que caíram na estrada em busca de liberdade – e deles mesmos. Seu filme é a história de uma amizade, e da sua destruição (e também da imortalização pela arte). E Um Mundo Secreto?
O longa do mexicano Gabriel Mariño teve sua estreia mundial na Berlinale, em fevereiro, integrando a mostra Generation Special. Narra, de forma lírica, a viagem de iniciação de uma garota. No último dia de escola, antes da graduação, ela deixa seu mundo para trás e parte numa viagem de autodescoberta. Maria, de 18 anos, é promíscua e, no fundo, talvez seja essencialmente uma solitária. Ela abandona o caos urbano da Cidade do México e atravessa o deserto de Sinaloa rumo ao vasto oceano. O que busca Maria? Na apresentação de seu filme, em Berlim, Mariño disse que quis traçar um retrato da juventude mexicana. “Há muita violência e instabilidade social no México. Nosso futuro é incerto e, para os jovens, é quase impossível estudar ou trabalhar. Meu filme busca entender quem são os jovens mexicanos, o que sentem e pensam.”
Quem pensa em mulheres na estrada lembra-se de Thelma e Louise, as protagonistas de um road movie de Ridley Scott que fez sensação, especialmente entre plateias femininas (e feministas), em 1991. A jornada de iniciação de Maria leva a uma conclusão tão espetacular quanto espiritual. O diretor filma a paisagem mais preocupado em revelar o turbilhão interior que consome Maria. Com o da protagonista, Lucía Uribe, guarde os nomes de Mariño e do fotógrafo – Ivan Hernández. Começando de forma tão auspiciosa, o 7.º Festival Latino-Americano, que vai até dia 19, vai exibir 75 filmes. Você talvez não consiga ver todos, mas vale entender a estrada iniciática de Um Mundo Secreto como uma metáfora – e um convite. É como se o próprio evento convidasse o público a viajar nas imagens dessas dezenas de filmes para compreender o mundo em que vive, e decifrar o enigma da complexidade continental.
Pense em culturas, em línguas. A maioria dos filmes é falada no idioma espanhol, com suas variações. São filmes como o uruguaio 3, de Pablo Stoll; o argentino Um Mundo Misterioso, de Rodrigo Moreno; o chileno O Círculo de Román, de Sebastián Brahm; o equatoriano Pescador, de Sebastián Cordero; e o colombiano Porfírio, de Alejandro Landes. Mas o Festival Latino também fala o português, por meio dos filmes brasileiros que integram a seleção – Hoje, de Tata Amaral, que venceu o Festival de Brasília no ano passado; Rânia, de Roberta Marques, que venceu a mostra Novos Rumos, no Festival do Rio de 2011; e Augustas, que Francisco César Filho adaptou do livro As Estratégias de Lilith, de Alex Antunes.
Gêneros. Querem mais road-movies? A venezuelana Marité Ugas vem para apresentar pessoalmente seu longa O Garoto Que Mente, que também integrou a mostra Generation, em Berlim. O filme conta a jornada de iniciação de um garoto que procura pela mãe desaparecida nos deslizamentos de terras que atingiram o departamento de Vargas, após a grande chuva de 1999. Já exibido nos festivais de Tiradentes e do Recife, Estradeiros, belo trabalho de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, filma a América Nuestra de forma a mostrar a estrada como metáfora de vida alternativa e negação do consumismo.
Quem disse que o cinema latino-americano não cultiva os gêneros? O cubano Juan dos Mortos, de Alejandro Brugués, mostra Havana decadente, o que não é exatamente uma novidade, mas agora assolada por zumbis, no que vai uma crítica às transformações na ilha, pós Fidel Castro. Maior êxito da história do cinema da Colômbia, O Ermo, de Jaume Osório Márquez, passa-se numa base a 4 mil metros de altura. Um comando militar é enviado para descobrir o que houve com a equipe que lá estava. Encontram um sobrevivente misterioso. Quem é esse cara? Oito curtas integram a série Fronteiras, produzida pelo canal TNT. Cada realizador teve liberdade para fazer seu filme como quisesse e o resultado contempla comédia e até western. Claudia Llosa, a diretora peruana que ganhou o Urso de Ouro com La Teta Asustada, foi de novo premiada em Berlim – ela ganhou neste ano o Teddy Bear, o chamado Urso gay, pelo curta Loxoró, sobre o universo das travestis.
Voltado ao apoio a novos filmes da América Latina, o programa Cine en Construcción ocorre duas vezes por ano, nos festivais de Toulouse e San Sebastián. O 7.º Festival Latino homenageia os dez anos de Cine em Construcción e o faz exibindo o que talvez seja o melhor filme brasileiro desde o início da Retomada – Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes. A sessão será apresentada pela francesa Eva Morsch, que integra o comitê de seleção do programa.
Eva também será jurada numa mostra inédita – Finaliza 2012. Fechada ao público, vai exibir sete longas em finalização e o vencedor vai ganhar R$ 99,4 mil em serviços, justamente para poder ficar pronto. O Prêmio Itamaraty, iniciativa do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, também vai dar R$ 90 mil ao filme vencedor, escolhido entre coproduções recentes, envolvendo pelo menos dois países da América do Sul. Todas as sessões do Festival Latino-Americano são gratuitas.
7º FESTIVAL DE CINEMA LATINO-AMERICANO DE SÃO PAULO
Programação completa: www.memorial.org.br
A trilogia de Antonioni
Luiz Carlos Merten – O Estado SP
Na entrevista que fiz com Walter Salles, nas semana passada, houve um momento em que estávamos no L’Hotel e eu lembrei que, naquele hotel, havia entrevistado Michelangelo Antonioni, Wim Wenders e Claude Lanzmann. Walter observou que ‘Shoah’ é certamente um monumento de cinema, mas que Antonioni e Wenders, de uma maneira muito especial, foram decisivos para que despertasse nele o desejo de ser diretor de cinema. Lembro-me de uma homenagem que o Festival de Tessalônica, na Grécia, prestou ao cinema brasileiro. Fui convidado para fazer a cobertura para o jornal e participar de uma mesa. Foram encontros bem interessantes e houve um em que Wenders e Waltinho falaram de cinema de estrada. Como se roteiriza e realiza um filme que é feito ‘on the road’? Como se incorpora o imprevisto? Waltinho diz que Wenders foi referência para ele, mas Wenders, naquela mesa, se referia ao colega brasileiro como ‘igual’ – e um grande diretor. Por que estou lembrando isso? Por causa de Antonioni. Lembro-me de que fiquei na cola dele, quando veio a São Paulo. A entrevista foi feita por meio da mulher, que traduzia o que ele dizia com a língua toda enrolada, após o acidente vascular cerebral que o deixou paralítico e sem fala, reduzido ao silêncio, em 1985. Dez anos mais tarde, apesar das difíceis condições físicas, ele fez aquele filme, ‘Além das Nuvens’, do qual Wenders foi o diretor stand-by, por exigência das seguradoras. Antonioni quis ir ao cinema em São Paulo. Estava estreando ‘Lobo’, de Mike Nichols, com Jack Nicholson, a quem dirigira em ‘O Passageiro, Profissão: Repórter’. Nicholson seria chamado para lhe entregar, também em 1995, o Oscar honorário que recebeu da Academia de Hollywood. Fez aquele discurso de apresentação, dizendo que era irônico que o autor que havia incorporado o silêncio e feito dele um importante elemento dramático agora não pudesse falar. Acompanhei Antonioni quando foi ver ‘Lobo’ (no antigo Gazeta). Sentei-me a uma certa distância e fiquei com um olho na tela e outro nele. Era evidente seu prazer diante das reações de Nicholson, num papel sob medida, o cara pacato, em crise profissional e afetiva e para quem a transformação em lobisomem significava uma injeção de potência (e o herói se aproveitava disso, descontando na libido acesa da personagem de Michelle Pfeiffer). Antonioni, que foi um grande criador de personagens femininas, curtia o jogo de sedução do filme. Dada a sua paralisia, posso psicologizar que ele, que foi um sedutor, talvez estivesse curtindo o fantasioso excesso de potência de seu ator fetiche. Cheguei em casa na última sexta-feira e me esperava a nova caixa da Versátil. A empresa está lançando a trilogia da solidão e da incomunicabilidade. ‘A Aventura’, ‘A Noite’ e ‘O Eclipse’ já haviam sido lançados isoladamente, e agora estão juntos, num único (re)lançamento. Antonioni fez esses três filmes entre 1960 e 62, radicalizando a tendência à introspecção e o fazendo por meio de narrativas abertas, que pulverizam a história e exibem, o que não deixa de ser paradoxal, grande rigor técnico. Qual é a história de ‘A Aventura’? No começo do filme, a personagem de Lea Massari desaparece durante um cruzeiro e sua amiga Monica Vitti a procura com o amante da desaparecida, Gabriele Ferzetti, de quem se aproxima e com tem um affair. Antonioni disseca os sentimentos e não responde à pergunta – por que ela sumiu? A resposta só virá no desfecho de ‘O Eclipse’, na prodigiosa sequência que expressa o eclipse do gênero humano, quando as pessoas somem de cena e ele filma – vazios – os espaços em que se desenrolou a ligação de Monica Vitti com Alain Delon. Entre ambos os filmes, ‘A Noite’ se ocupa das deambulações de Lídia, Jeanne Moreau. Ela visita com o marido, Marcello Mastroianni. o amigo moribundo no hospital e depois caminhas sozinha por Milão. À noite vai à festa na mansão de Valentina, Monica Vitti, e de novo percorre os ambientes sem se fixar em nada nem ninguém. De manhã, exaustos, o marido e ela sentam-se no jardim e Lídia lê aquela carta de amor que ele nem se lembra de haver escrito, anos atrás. Os três filmes vão se completando e esclarecendo. A solidão, a incomunicabilidade, o vazio existencial da elite situada no topo da pirâmide social. A trilogia pertence a uma grande fase do cinema italiano. Entre 1960 e 62, Federico Fellini estava fazendo ‘A Doce Vida’ e ‘Oito e Meio’ e Luchino Visconti, depois de ‘Rocco e Seus Irmãos’ e do episódio de ‘Boccaccio 70′, O Trabalho, finalizava ‘O Leopardo’, que venceria a Palma em Cannes, 1963. Grandes mudanças – estéticas, éticas, comportamentais – estavam ocorrendo. Havia também a nouvelle vague, o Cinema Novo, que eclodia. A trilogia de Antonioni era e ainda é um marco. Os filmes eram modernos e continuam sendo. Não envelheceram. E Monica Vitti, que depois liberou sua veia de comediante, exprime a tensão com economia. Gestos precisos, poucas palavras. Aqueles três filmes formam uma Bíblia do cinema.
Na entrevista que fiz com Walter Salles, nas semana passada, houve um momento em que estávamos no L’Hotel e eu lembrei que, naquele hotel, havia entrevistado Michelangelo Antonioni, Wim Wenders e Claude Lanzmann. Walter observou que ‘Shoah’ é certamente um monumento de cinema, mas que Antonioni e Wenders, de uma maneira muito especial, foram decisivos para que despertasse nele o desejo de ser diretor de cinema. Lembro-me de uma homenagem que o Festival de Tessalônica, na Grécia, prestou ao cinema brasileiro. Fui convidado para fazer a cobertura para o jornal e participar de uma mesa. Foram encontros bem interessantes e houve um em que Wenders e Waltinho falaram de cinema de estrada. Como se roteiriza e realiza um filme que é feito ‘on the road’? Como se incorpora o imprevisto? Waltinho diz que Wenders foi referência para ele, mas Wenders, naquela mesa, se referia ao colega brasileiro como ‘igual’ – e um grande diretor. Por que estou lembrando isso? Por causa de Antonioni. Lembro-me de que fiquei na cola dele, quando veio a São Paulo. A entrevista foi feita por meio da mulher, que traduzia o que ele dizia com a língua toda enrolada, após o acidente vascular cerebral que o deixou paralítico e sem fala, reduzido ao silêncio, em 1985. Dez anos mais tarde, apesar das difíceis condições físicas, ele fez aquele filme, ‘Além das Nuvens’, do qual Wenders foi o diretor stand-by, por exigência das seguradoras. Antonioni quis ir ao cinema em São Paulo. Estava estreando ‘Lobo’, de Mike Nichols, com Jack Nicholson, a quem dirigira em ‘O Passageiro, Profissão: Repórter’. Nicholson seria chamado para lhe entregar, também em 1995, o Oscar honorário que recebeu da Academia de Hollywood. Fez aquele discurso de apresentação, dizendo que era irônico que o autor que havia incorporado o silêncio e feito dele um importante elemento dramático agora não pudesse falar. Acompanhei Antonioni quando foi ver ‘Lobo’ (no antigo Gazeta). Sentei-me a uma certa distância e fiquei com um olho na tela e outro nele. Era evidente seu prazer diante das reações de Nicholson, num papel sob medida, o cara pacato, em crise profissional e afetiva e para quem a transformação em lobisomem significava uma injeção de potência (e o herói se aproveitava disso, descontando na libido acesa da personagem de Michelle Pfeiffer). Antonioni, que foi um grande criador de personagens femininas, curtia o jogo de sedução do filme. Dada a sua paralisia, posso psicologizar que ele, que foi um sedutor, talvez estivesse curtindo o fantasioso excesso de potência de seu ator fetiche. Cheguei em casa na última sexta-feira e me esperava a nova caixa da Versátil. A empresa está lançando a trilogia da solidão e da incomunicabilidade. ‘A Aventura’, ‘A Noite’ e ‘O Eclipse’ já haviam sido lançados isoladamente, e agora estão juntos, num único (re)lançamento. Antonioni fez esses três filmes entre 1960 e 62, radicalizando a tendência à introspecção e o fazendo por meio de narrativas abertas, que pulverizam a história e exibem, o que não deixa de ser paradoxal, grande rigor técnico. Qual é a história de ‘A Aventura’? No começo do filme, a personagem de Lea Massari desaparece durante um cruzeiro e sua amiga Monica Vitti a procura com o amante da desaparecida, Gabriele Ferzetti, de quem se aproxima e com tem um affair. Antonioni disseca os sentimentos e não responde à pergunta – por que ela sumiu? A resposta só virá no desfecho de ‘O Eclipse’, na prodigiosa sequência que expressa o eclipse do gênero humano, quando as pessoas somem de cena e ele filma – vazios – os espaços em que se desenrolou a ligação de Monica Vitti com Alain Delon. Entre ambos os filmes, ‘A Noite’ se ocupa das deambulações de Lídia, Jeanne Moreau. Ela visita com o marido, Marcello Mastroianni. o amigo moribundo no hospital e depois caminhas sozinha por Milão. À noite vai à festa na mansão de Valentina, Monica Vitti, e de novo percorre os ambientes sem se fixar em nada nem ninguém. De manhã, exaustos, o marido e ela sentam-se no jardim e Lídia lê aquela carta de amor que ele nem se lembra de haver escrito, anos atrás. Os três filmes vão se completando e esclarecendo. A solidão, a incomunicabilidade, o vazio existencial da elite situada no topo da pirâmide social. A trilogia pertence a uma grande fase do cinema italiano. Entre 1960 e 62, Federico Fellini estava fazendo ‘A Doce Vida’ e ‘Oito e Meio’ e Luchino Visconti, depois de ‘Rocco e Seus Irmãos’ e do episódio de ‘Boccaccio 70′, O Trabalho, finalizava ‘O Leopardo’, que venceria a Palma em Cannes, 1963. Grandes mudanças – estéticas, éticas, comportamentais – estavam ocorrendo. Havia também a nouvelle vague, o Cinema Novo, que eclodia. A trilogia de Antonioni era e ainda é um marco. Os filmes eram modernos e continuam sendo. Não envelheceram. E Monica Vitti, que depois liberou sua veia de comediante, exprime a tensão com economia. Gestos precisos, poucas palavras. Aqueles três filmes formam uma Bíblia do cinema.
Flores de obsessão
João Pereira Coutinho – Folha SP
A obra-prima de Woody Allen não se resume a um filme ou dois; ela é retocada ao ritmo de um por ano
WOODY Allen tem 47 filmes no currículo. E quando lhe perguntam se existe um único que ele compare aos melhores de Ingmar Bergman, Woody é modesto: nem um.
A frase sempre me pareceu excessiva: “Crimes e Pecados” (1990) está ao nível de “Morangos Silvestres” (1957). E “Zelig” (1983) não tem paralelo como comédia nos últimos 30 anos. O problema de Woody não é falta de obra-prima. É falta de obra-prima recorrente. Depois de “Crimes e Pecados”, há coisas boas aqui e ali. E algumas joias antigas, como “Manhattan” (1979) ou “Hannah e Suas Irmãs” (1986).
Mas Bergman, admito, era capaz de fazer cinco filmes seguidos que mudavam a cultura de uma época. Quem começa com “Mônica e o Desejo” (1952) e termina o festim com os referidos “Morangos” sabe que não minto.
Por isso assisti a “Para Roma com Amor” sem expectativas homéricas. Os cínicos dirão que Woody Allen deixou de dirigir filmes. É hoje guia turístico que vai para onde lhe pagam: Londres, Barcelona, Paris. Quem sabe o Rio.
O próprio alimenta o mito: tempos atrás, de passagem por Portugal, perguntaram-lhe quando filmaria ele em Lisboa. Woody foi honesto: “E você consegue o dinheiro?”
Certo. Sem dinheiro, não há obra. Mas “Para Roma” não é mera encomenda italiana. É, como sempre acontece, um pretexto para revisitar os temas que são caros ao “autor” (e uso a palavra com o seu significado clássico).
O próprio Woody, aliás, assume essa condição metacrítica no filme. Por exemplo, quando os personagens contemplam as ruínas romanas e confessam sofrer de “Melancolia de Ozymandias”.
Trata-se de uma referência erudita ao poema de Percy Shelley (1792-1822) sobre a estátua de Ozymandias, “rei dos reis”, e testemunho material da inutilidade da existência quando a morte é certa.
Shelley escrevey “Ozymandias” em 1818, mas o poema deixou de lhe pertencer em 1980 quando foi apropriado por Woody “himself”, em seu incompreendido “Stardust Memories – Memórias” (1980). É a primeira vez que um personagem seu é diagnosticado com a doença.
O cinema de Woody Allen é feito de evocações eruditas que se repetem de filme para filme. A tribo é a mesma: Shelley, Yeats, Rilke, sobretudo as linhas finais de “O Torso Arcaico de Apolo”, presente neste filme pela boca pedante da personagem de Ellen Page (e presente em “A Outra”, com força dramática decisiva).
Mas não são apenas as evocações eruditas que se repetem. Todo o resto retorna, a começar pelo amor romântico, pelos equívocos do amor romântico, pela tensão constante entre a razão e a emoção -a perpétua batalha em que a última vence temporariamente o confronto.
São incontáveis os filmes de Woody Allen em que os personagens (masculinos) se jogam pela janela amorosa, mesmo que o salto seja efêmero e suicidário. O ator Jesse Eisenberg representa em “Para Roma” o mártir sentimental da história. Eisenberg nasceu em 1983.
Mas, antes de ele nascer, muitos outros já tinham pulado pela mesma janela. A começar pelo próprio Woody Allen, como Alvy (em “Annie Hall”) ou Isaac (em “Manhattan”).
Não temos cura. E, para um longo cliente da psicanálise, nem o divã nos salva: haverá paciente que tenha dedicado à terapia tantas linhas de irrisão? “Se você encontrar Freud, peça-lhe o meu dinheiro de volta”, diz ele à mulher psiquiatra (Judy Davis).
Finalmente, o melhor do filme: a história do cantor de ópera que só funciona no chuveiro. E que é levado para os palcos italianos com o chuveiro atrás.
É preciso ter passado décadas nas páginas da “New Yorker”, a casa de S.J. Perelman ou Robert Benchley, para escrever uma gag dessas. Uma gag comparável ao casal que só conseguia transar em espaços públicos (em “Tudo o que Você queria Saber sobre Sexo”). Ou ao ator que estava fora do foco na vida real (em “Desconstruindo Harry”).
Sim, são 47 filmes. Um ou dois não fazem má figura quando Bergman está por perto. Mas a obra-prima de Woody Allen não se resume a um filme ou dois. Na verdade, ela ainda está a ser retocada, ao ritmo de um filme por ano.
Um dia, quando olharmos para o conjunto, veremos que a repetição também é uma arte. E que os gênios são, como dizia Nelson Rodrigues, flores de obsessão.
jpcoutinho@folha.com.br
A obra-prima de Woody Allen não se resume a um filme ou dois; ela é retocada ao ritmo de um por ano
WOODY Allen tem 47 filmes no currículo. E quando lhe perguntam se existe um único que ele compare aos melhores de Ingmar Bergman, Woody é modesto: nem um.
A frase sempre me pareceu excessiva: “Crimes e Pecados” (1990) está ao nível de “Morangos Silvestres” (1957). E “Zelig” (1983) não tem paralelo como comédia nos últimos 30 anos. O problema de Woody não é falta de obra-prima. É falta de obra-prima recorrente. Depois de “Crimes e Pecados”, há coisas boas aqui e ali. E algumas joias antigas, como “Manhattan” (1979) ou “Hannah e Suas Irmãs” (1986).
Mas Bergman, admito, era capaz de fazer cinco filmes seguidos que mudavam a cultura de uma época. Quem começa com “Mônica e o Desejo” (1952) e termina o festim com os referidos “Morangos” sabe que não minto.
Por isso assisti a “Para Roma com Amor” sem expectativas homéricas. Os cínicos dirão que Woody Allen deixou de dirigir filmes. É hoje guia turístico que vai para onde lhe pagam: Londres, Barcelona, Paris. Quem sabe o Rio.
O próprio alimenta o mito: tempos atrás, de passagem por Portugal, perguntaram-lhe quando filmaria ele em Lisboa. Woody foi honesto: “E você consegue o dinheiro?”
Certo. Sem dinheiro, não há obra. Mas “Para Roma” não é mera encomenda italiana. É, como sempre acontece, um pretexto para revisitar os temas que são caros ao “autor” (e uso a palavra com o seu significado clássico).
O próprio Woody, aliás, assume essa condição metacrítica no filme. Por exemplo, quando os personagens contemplam as ruínas romanas e confessam sofrer de “Melancolia de Ozymandias”.
Trata-se de uma referência erudita ao poema de Percy Shelley (1792-1822) sobre a estátua de Ozymandias, “rei dos reis”, e testemunho material da inutilidade da existência quando a morte é certa.
Shelley escrevey “Ozymandias” em 1818, mas o poema deixou de lhe pertencer em 1980 quando foi apropriado por Woody “himself”, em seu incompreendido “Stardust Memories – Memórias” (1980). É a primeira vez que um personagem seu é diagnosticado com a doença.
O cinema de Woody Allen é feito de evocações eruditas que se repetem de filme para filme. A tribo é a mesma: Shelley, Yeats, Rilke, sobretudo as linhas finais de “O Torso Arcaico de Apolo”, presente neste filme pela boca pedante da personagem de Ellen Page (e presente em “A Outra”, com força dramática decisiva).
Mas não são apenas as evocações eruditas que se repetem. Todo o resto retorna, a começar pelo amor romântico, pelos equívocos do amor romântico, pela tensão constante entre a razão e a emoção -a perpétua batalha em que a última vence temporariamente o confronto.
São incontáveis os filmes de Woody Allen em que os personagens (masculinos) se jogam pela janela amorosa, mesmo que o salto seja efêmero e suicidário. O ator Jesse Eisenberg representa em “Para Roma” o mártir sentimental da história. Eisenberg nasceu em 1983.
Mas, antes de ele nascer, muitos outros já tinham pulado pela mesma janela. A começar pelo próprio Woody Allen, como Alvy (em “Annie Hall”) ou Isaac (em “Manhattan”).
Não temos cura. E, para um longo cliente da psicanálise, nem o divã nos salva: haverá paciente que tenha dedicado à terapia tantas linhas de irrisão? “Se você encontrar Freud, peça-lhe o meu dinheiro de volta”, diz ele à mulher psiquiatra (Judy Davis).
Finalmente, o melhor do filme: a história do cantor de ópera que só funciona no chuveiro. E que é levado para os palcos italianos com o chuveiro atrás.
É preciso ter passado décadas nas páginas da “New Yorker”, a casa de S.J. Perelman ou Robert Benchley, para escrever uma gag dessas. Uma gag comparável ao casal que só conseguia transar em espaços públicos (em “Tudo o que Você queria Saber sobre Sexo”). Ou ao ator que estava fora do foco na vida real (em “Desconstruindo Harry”).
Sim, são 47 filmes. Um ou dois não fazem má figura quando Bergman está por perto. Mas a obra-prima de Woody Allen não se resume a um filme ou dois. Na verdade, ela ainda está a ser retocada, ao ritmo de um filme por ano.
Um dia, quando olharmos para o conjunto, veremos que a repetição também é uma arte. E que os gênios são, como dizia Nelson Rodrigues, flores de obsessão.
jpcoutinho@folha.com.br
Non ti scordar di me
Música: Ernesto de Curtis (1875-1937)
Italiano
Partirono le rondini dal mio paese
freddo e senza sole,
cercando primavere di viole,
nidi d’amore e di felicita.
La mia piccola rondine parti
senza lasciarmi un bacio,
senza un addio parti.
Non ti scordar di me:
la vita mia legata e a te.
Io t’amo sempre piu,
nel sogno mio rimani tu.
Non ti scordar di me:
la vita mia legata e a te.
C’e sempre un nido
nel mio cor per te.
Non ti scordar di me!
Español
Las golondrinas ya se van
en busqueda de calor y primavera
llevando mis tristezas en sus alas
y para mí, ya nunca volverán.
Mi pequeña golondrina se ha ido
sin darme un beso,
sin un saludo de despedida.
No me olvides:
que mi vida esta únida a tí.
Te quiero más y mas,
y te quedas en mis sueños.
No me olvides:
que mi vida esta únida a tí.
siempre habrá un nido
en mi corazón para tí.
no me olvides!
Italiano
Partirono le rondini dal mio paese
freddo e senza sole,
cercando primavere di viole,
nidi d’amore e di felicita.
La mia piccola rondine parti
senza lasciarmi un bacio,
senza un addio parti.
Non ti scordar di me:
la vita mia legata e a te.
Io t’amo sempre piu,
nel sogno mio rimani tu.
Non ti scordar di me:
la vita mia legata e a te.
C’e sempre un nido
nel mio cor per te.
Non ti scordar di me!
Español
Las golondrinas ya se van
en busqueda de calor y primavera
llevando mis tristezas en sus alas
y para mí, ya nunca volverán.
Mi pequeña golondrina se ha ido
sin darme un beso,
sin un saludo de despedida.
No me olvides:
que mi vida esta únida a tí.
Te quiero más y mas,
y te quedas en mis sueños.
No me olvides:
que mi vida esta únida a tí.
siempre habrá un nido
en mi corazón para tí.
no me olvides!
Torna a Surriento
Vide ‘o mare quant’è bello!
spira tanta sentimento…
Comme tu, a chi tiene mente,
ca, scetato, ‘o faje sunná!
Guarda guá’ chisti ciardine,
siente sié’ sti sciure ‘arancio…
nu prufumo accussí fino,
dint”o core se ne va…
E tu dice: “Io parto, addio!”
T’alluntane da stu core…
Da la terra de ll’ammore,
tiene ‘o core ‘e nun turná?!
Ma nun mme lassá,
nun darme stu turmiento…
Torna a Surriento:
famme campá!…
Vide ‘o mare de Surriento
che tesore tene ‘nfunno:
Chi ha girato tutt”o munno,
nun ll’ha visto comm’a ccá!
Guarda, attuorno, sti Ssirene
ca te guardano ‘ncantate
e te vònno tantu bene:
Te vulessero vasá!…
E tu dice: “Io parto, addio!”
T’alluntane da stu core…
Da la terra de ll’ammore,
tiene ‘o core ‘e nun turná?!
Ma nun mme lassá,
nun darme stu turmiento…
Torna a Surriento:
famme campá!…
spira tanta sentimento…
Comme tu, a chi tiene mente,
ca, scetato, ‘o faje sunná!
Guarda guá’ chisti ciardine,
siente sié’ sti sciure ‘arancio…
nu prufumo accussí fino,
dint”o core se ne va…
E tu dice: “Io parto, addio!”
T’alluntane da stu core…
Da la terra de ll’ammore,
tiene ‘o core ‘e nun turná?!
Ma nun mme lassá,
nun darme stu turmiento…
Torna a Surriento:
famme campá!…
Vide ‘o mare de Surriento
che tesore tene ‘nfunno:
Chi ha girato tutt”o munno,
nun ll’ha visto comm’a ccá!
Guarda, attuorno, sti Ssirene
ca te guardano ‘ncantate
e te vònno tantu bene:
Te vulessero vasá!…
E tu dice: “Io parto, addio!”
T’alluntane da stu core…
Da la terra de ll’ammore,
tiene ‘o core ‘e nun turná?!
Ma nun mme lassá,
nun darme stu turmiento…
Torna a Surriento:
famme campá!…
interferir no livro
Por Francisco Quinteiro Pires | Para o Valor, de Nova York
James Joyce (1882-1941) foi inepto na vida, sagaz no trabalho. Escritor reconhecidamente autobiográfico, ele extraiu dos acidentes da existência a matéria da sua criação. “Distinguir fato e ficção em Joyce é difícil, apesar da confirmação por amigos de infância de que experiências vividas pelo escritor irlandês foram transpostas para os livros”, observa Gordon Bowker. “Ele impôs à realidade um verniz ficcional.”
Autor de “James Joyce: A New Biography” (Farrar, Straus & Giroux), que acaba de ser lançado nos Estados Unidos, Bowker considera um erro usar o conteúdo de enredos literários para escrever a biografia de um romancista. Ao mesmo tempo, reconhece os limites do gênero biográfico. Sem medo de abrir o flanco aos críticos, Bowker cita Bernard Malamud (1914-86), autor de “Dublin’s Lives” (1979), para quem “toda biografia é em última análise uma ficção”. Trajetórias são reconstruídas com o auxílio da imaginação. “Ninguém pode fazer argila pura do barro do passado”, escreveu Malamud.
Antes de Bowker, outros biógrafos assumiram a tarefa de narrar a história do autor de “Ulisses” (1922). Herbert Gorman foi o primeiro. Publicou o seu livro em 1939, enquanto o ficcionista irlandês estava vivo.
Joyce era consciente da sua imagem. Ao psicanalista Carl Jung (1875-1961), responsável pelo tratamento de Lucia, a sua filha esquizofrênica, ele se confessou “um homem de virtudes modestas, propenso à extravagância e ao alcoolismo”. Para a frustração de Gorman, Joyce seguiu de perto a edição da primeira biografia, sendo capaz de suprimir passagens desabonadoras. O contato estreito com o biografado despertou um senso de obrigação. Gorman comprometeu sua independência autoral.
Em vida, o status de Joyce como escritor não pôde ser determinado. De uns conquistou grande admiração: “Ele assassinou o século XIX” (T.S. Eliot) e se transformou no “maior poeta de uma nova fase da consciência humana” (Edmund Wilson). Foi por outros desprezado: “Ulisses” é “mais nojento que Casanova” (D.H. Lawrence) e destila “o desejo de chocar” (Virginia Woolf).
Especialista em literatura irlandesa, Richard Ellmann iniciou em 1947 a pesquisa de “James Joyce” (tradução de Lya Luft), publicado em 1959 e considerado pelo escritor Anthony Burgess “a melhor biografia literária do século” XX.
Ellmann (1918-87) conversou com pessoas que conheceram Joyce, definido por ele como uma “criatura bizarra e maravilhosa”, com capacidade acima da média de “reconstituir de memória grande parte do que vira e ouvira”. De acordo com Bowker, o segundo biógrafo adotou com entusiasmo os relatos de Stanislaus, irmão mais novo de Joyce, e Maria Jolas, mecenas do romancista em Paris. Em 1982, ano do centenário de nascimento do escritor, Ellmann publicou uma edição revista com cem páginas adicionais e 80 novas ilustrações. Desde aquele ano, foram lançadas biografias sobre o pai, a mulher e a filha de Joyce.
Joyce era consciente da sua imagem. Disse a Jung ser “um homem de virtudes modestas, propenso à extravagância e ao alcoolismo”
Bowker se beneficiou desses livros para escrever o seu, “um exemplo magistral de retrato da vida de um ficcionista, sobretudo uma tão complicada como a de Joyce”, segundo “The Economist”. “De fato, o grande desafio nunca foi falta de material”, diz Bowker, que escarafunchou arquivos espalhados pelos Estados Unidos e Europa.
“A sombra sobre o meu projeto foi Stephen James Joyce”, diz. Temido por biógrafos e pesquisadores, contra os quais “declarou guerra”, Stephen é o neto e administrador do espólio do romancista irlandês. Após ameaças de processo judicial, ele impediu a leitura de “Ulisses” durante o Bloomsday de 2004 na Irlanda. “Tive de manter em segredo as minhas intenções, pois temi que ele tentasse ditar o que eu escrevia.”
Biógrafo de George Orwell e Malcolm Lowry, Bowker vê com bons olhos o uso de tecnologia, como a criação de aplicativos e “podcasts”, para decifrar o hermetismo dos livros joycianos. “É bem-vinda qualquer coisa que eleve a compreensão e o desfrute de trabalhos de gênio.” Segundo ele, a obra de Joyce, em domínio público desde o início deste ano, desperta entre acadêmicos e leigos tanto interesse quanto a de Shakespeare e a “Bíblia”. Certa vez, em resposta jocosa a um comentário sobre “Ulisses”, o escritor declarou: “Eu coloquei tantos enigmas e quebra-cabeças nesse livro que ele manterá por séculos professores ocupados na discussão sobre o que eu quis dizer.”
As ironias e trocadilhos de Joyce desaconselham uma interpretação literal dos seus escritos. Com a sua obra experimental, ele se uniu à tradição irlandesa de satiristas como Jonathan Swift, George Bernard Shaw e Oscar Wilde. E registrou as lembranças da Dublin da sua juventude. A capital da Irlanda era “um centro de paralisia”, onde expectativa se convertia em inércia. Uma frase de “Retrato do Artista Quando Jovem” (1916) revelou o sufocamento sentido pelo criador jovem e talentoso: “Quando a alma de um homem nasce neste país arremessam redes sobre ela para impedi-la de voar”. O peso da tradição fez o passado ser mais imediato para o escritor. “O tempo pretérito tornou-se o parque de diversões da sua ficção”, afirma Bowker. Ou nas palavras do próprio Joyce: “O passado não é passado. É o presente aqui e agora”.
O literato saiu da Irlanda em 1904 e morou em diferentes cidades: Trieste, Paris e Zurique. O exílio imposto a si mesmo refletiu, de acordo com Bowker, “a busca de uma visão mais abrangente”. Esse nomadismo era também movido por uma certeza e um medo. “Ele achava que uma Irlanda independente dominada por clérigos e nacionalistas de mente estreita não era lugar para um livre-pensador.” Após começar a escrever “Ulisses”, Joyce nunca regressou à terra natal. “Receava ser ferido à bala ou processado por calúnia”, conta Bowker. “Ele fizera muitos inimigos entre as pessoas que conheceu e transformou sem disfarce em personagens.”
Aquela nação, fonte da sua criatividade, desaparecera. Bowker se confessa surpreso com o antagonismo de Joyce à Irlanda que se tornou independente da Grã-Bretanha. “Ele nasceu em um país que vivia à sombra de outro e cuja linguagem e cultura originais foram suplantadas.” Em pesquisa no Arquivo Nacional de Londres, o biógrafo descobriu que o cônsul britânico em Zurique tentou por duas vezes cassar a cidadania inglesa de Joyce. Em visita a Londres para legalizar a relação de 27 anos com Nora Barnacle, sua companheira e musa, o escritor recebeu ataques da imprensa local. A vida de Joyce, consumida pela pobreza e saúde frágil, se tornou a sua maior ironia, segundo Bowker. “Ao subverter a língua inglesa, uma intrusa, ele ajudou a colocar a Irlanda, de uma vez por todas, no mapa literário.”
James Joyce (1882-1941) foi inepto na vida, sagaz no trabalho. Escritor reconhecidamente autobiográfico, ele extraiu dos acidentes da existência a matéria da sua criação. “Distinguir fato e ficção em Joyce é difícil, apesar da confirmação por amigos de infância de que experiências vividas pelo escritor irlandês foram transpostas para os livros”, observa Gordon Bowker. “Ele impôs à realidade um verniz ficcional.”
Autor de “James Joyce: A New Biography” (Farrar, Straus & Giroux), que acaba de ser lançado nos Estados Unidos, Bowker considera um erro usar o conteúdo de enredos literários para escrever a biografia de um romancista. Ao mesmo tempo, reconhece os limites do gênero biográfico. Sem medo de abrir o flanco aos críticos, Bowker cita Bernard Malamud (1914-86), autor de “Dublin’s Lives” (1979), para quem “toda biografia é em última análise uma ficção”. Trajetórias são reconstruídas com o auxílio da imaginação. “Ninguém pode fazer argila pura do barro do passado”, escreveu Malamud.
Antes de Bowker, outros biógrafos assumiram a tarefa de narrar a história do autor de “Ulisses” (1922). Herbert Gorman foi o primeiro. Publicou o seu livro em 1939, enquanto o ficcionista irlandês estava vivo.
Joyce era consciente da sua imagem. Ao psicanalista Carl Jung (1875-1961), responsável pelo tratamento de Lucia, a sua filha esquizofrênica, ele se confessou “um homem de virtudes modestas, propenso à extravagância e ao alcoolismo”. Para a frustração de Gorman, Joyce seguiu de perto a edição da primeira biografia, sendo capaz de suprimir passagens desabonadoras. O contato estreito com o biografado despertou um senso de obrigação. Gorman comprometeu sua independência autoral.
Em vida, o status de Joyce como escritor não pôde ser determinado. De uns conquistou grande admiração: “Ele assassinou o século XIX” (T.S. Eliot) e se transformou no “maior poeta de uma nova fase da consciência humana” (Edmund Wilson). Foi por outros desprezado: “Ulisses” é “mais nojento que Casanova” (D.H. Lawrence) e destila “o desejo de chocar” (Virginia Woolf).
Especialista em literatura irlandesa, Richard Ellmann iniciou em 1947 a pesquisa de “James Joyce” (tradução de Lya Luft), publicado em 1959 e considerado pelo escritor Anthony Burgess “a melhor biografia literária do século” XX.
Ellmann (1918-87) conversou com pessoas que conheceram Joyce, definido por ele como uma “criatura bizarra e maravilhosa”, com capacidade acima da média de “reconstituir de memória grande parte do que vira e ouvira”. De acordo com Bowker, o segundo biógrafo adotou com entusiasmo os relatos de Stanislaus, irmão mais novo de Joyce, e Maria Jolas, mecenas do romancista em Paris. Em 1982, ano do centenário de nascimento do escritor, Ellmann publicou uma edição revista com cem páginas adicionais e 80 novas ilustrações. Desde aquele ano, foram lançadas biografias sobre o pai, a mulher e a filha de Joyce.
Joyce era consciente da sua imagem. Disse a Jung ser “um homem de virtudes modestas, propenso à extravagância e ao alcoolismo”
Bowker se beneficiou desses livros para escrever o seu, “um exemplo magistral de retrato da vida de um ficcionista, sobretudo uma tão complicada como a de Joyce”, segundo “The Economist”. “De fato, o grande desafio nunca foi falta de material”, diz Bowker, que escarafunchou arquivos espalhados pelos Estados Unidos e Europa.
“A sombra sobre o meu projeto foi Stephen James Joyce”, diz. Temido por biógrafos e pesquisadores, contra os quais “declarou guerra”, Stephen é o neto e administrador do espólio do romancista irlandês. Após ameaças de processo judicial, ele impediu a leitura de “Ulisses” durante o Bloomsday de 2004 na Irlanda. “Tive de manter em segredo as minhas intenções, pois temi que ele tentasse ditar o que eu escrevia.”
Biógrafo de George Orwell e Malcolm Lowry, Bowker vê com bons olhos o uso de tecnologia, como a criação de aplicativos e “podcasts”, para decifrar o hermetismo dos livros joycianos. “É bem-vinda qualquer coisa que eleve a compreensão e o desfrute de trabalhos de gênio.” Segundo ele, a obra de Joyce, em domínio público desde o início deste ano, desperta entre acadêmicos e leigos tanto interesse quanto a de Shakespeare e a “Bíblia”. Certa vez, em resposta jocosa a um comentário sobre “Ulisses”, o escritor declarou: “Eu coloquei tantos enigmas e quebra-cabeças nesse livro que ele manterá por séculos professores ocupados na discussão sobre o que eu quis dizer.”
As ironias e trocadilhos de Joyce desaconselham uma interpretação literal dos seus escritos. Com a sua obra experimental, ele se uniu à tradição irlandesa de satiristas como Jonathan Swift, George Bernard Shaw e Oscar Wilde. E registrou as lembranças da Dublin da sua juventude. A capital da Irlanda era “um centro de paralisia”, onde expectativa se convertia em inércia. Uma frase de “Retrato do Artista Quando Jovem” (1916) revelou o sufocamento sentido pelo criador jovem e talentoso: “Quando a alma de um homem nasce neste país arremessam redes sobre ela para impedi-la de voar”. O peso da tradição fez o passado ser mais imediato para o escritor. “O tempo pretérito tornou-se o parque de diversões da sua ficção”, afirma Bowker. Ou nas palavras do próprio Joyce: “O passado não é passado. É o presente aqui e agora”.
O literato saiu da Irlanda em 1904 e morou em diferentes cidades: Trieste, Paris e Zurique. O exílio imposto a si mesmo refletiu, de acordo com Bowker, “a busca de uma visão mais abrangente”. Esse nomadismo era também movido por uma certeza e um medo. “Ele achava que uma Irlanda independente dominada por clérigos e nacionalistas de mente estreita não era lugar para um livre-pensador.” Após começar a escrever “Ulisses”, Joyce nunca regressou à terra natal. “Receava ser ferido à bala ou processado por calúnia”, conta Bowker. “Ele fizera muitos inimigos entre as pessoas que conheceu e transformou sem disfarce em personagens.”
Aquela nação, fonte da sua criatividade, desaparecera. Bowker se confessa surpreso com o antagonismo de Joyce à Irlanda que se tornou independente da Grã-Bretanha. “Ele nasceu em um país que vivia à sombra de outro e cuja linguagem e cultura originais foram suplantadas.” Em pesquisa no Arquivo Nacional de Londres, o biógrafo descobriu que o cônsul britânico em Zurique tentou por duas vezes cassar a cidadania inglesa de Joyce. Em visita a Londres para legalizar a relação de 27 anos com Nora Barnacle, sua companheira e musa, o escritor recebeu ataques da imprensa local. A vida de Joyce, consumida pela pobreza e saúde frágil, se tornou a sua maior ironia, segundo Bowker. “Ao subverter a língua inglesa, uma intrusa, ele ajudou a colocar a Irlanda, de uma vez por todas, no mapa literário.”
TRABALHANDO COM PIAZZOLLA
Piazzolla, Ferrer e a criação da ‘Balada para un loco’ (e um glossário sobre os ‘piantaos’)
Ariel Palacios – Blog Os hermanos
A ’loca’ composição da dupla Astor Piazzolla e Horacio Ferrer
Para encerrar a semana dos 20 anos da morte de Astor Piazzolla, aqui vai esta postagem sobre o ‘backstage’ da criação do ‘Balada para un loco’, uma de suas mais emblemáticas composições.
A longa e frutífera parceria entre o bandonenista argentino Astor Piazzolla e o poeta uruguaio Horacio Ferrer foi uma das mais ‘sinérgicas’ da História do tango do rio da Prata. Um dos mais famosos e saborosos frutos deste trabalho em conjunto foi “Balada para un loco” (Balada para um louco), estreada no dia 15 de novembro de 1969 no Luna Park, em pleno centro portenho, onde transcorria o encerramento do Festival Ibero-americano de Dança e Canção.
Piazzolla havia iniciado a parceria com Ferrer pouco tempo antes deste festival, quando o poeta havia renunciado a um posto que tinha na Universidade da República, em Montevidéu, Uruguai.
Pizzolla, ao ler seus poemas, lhe disse: “isso que você faz na poesia, eu faço com a música. Larga tudo e vem trabalhar comigo”.
A nova dupla começou a preparar a ópera-tango “María de Buenos Aires”. Mas, entre uma pausa e outra, foram assistir no cinema “Rey por inconveniência” (cujo título no original era o Le Roi de Coeur, o Rei de Coração), de 1966, do diretor Phillippe de Broca, que trata de um soldado britânico (interpretado pelo genial Alan Bates) que chega em um vilarejo francês após o final da Primeira Guerra Mundial. Ali só estão os loucos que ficaram soltos do manicômio local.
Ferrer, ao ver o filme, ficou fascinado: “o soldado viu que os loucos tinham um enfoque da vida melhor que aqueles que viviam fora do manicômio”. Isso o inspirou para a figura do louco, protagonista da Balada.
Os dois amigos atarefaram-se na composição da obra, concluída no apartamento que Piazzolla tinha na avenida Libertador 1088, andar 14, apartamento C.
No dia “D” Ferrer levou a letra de Balada para un loco. Piazzolla, fascinado, tocou uma melodia. Parecia que estava em transe.
Mas Ferrer não gostou. “Não tinha o lado romântico e boêmio que a letra requeria”, explicou anos depois.
Piazzolla tentou uma segunda melodia.
Mas, desta vez, foi o próprio Piazzolla que não gostou daquilo que ele próprio havia composto. “Não, não…parece um tango plagiado de Mariano Mores (um tangueiro de fama nos an0os 40 e 50, na ativa até hoje em dia).
Depois, na terceira tentativa, começou colocando alguns acordes de “Adiós Nonino”, e finalmente, com essa base, construiu “Balada para un loco”.
Ferrer começou a recitar seu poema.
Emocionado, quando Ferrer terminou de ler o poema e a melodia foi encerrada, Piazzolla disse com os olhos marejados: “Horácio, temos um míssil em nossas mãos!”
O professor Neurus, o cientista maluco de Trulalá, cidade criada pelo desenhista García Ferré. E ao lado, cantando a canção de Piazzolla-Ferré, Pucho, seu fiel, desastrado cúmplice, amante dos tangos (Pucho sempre canta pelo menos um tango nas tirinhas e especialmente no desenho animado)
Na noite do festival, Amelita Baltar, uma jovem cantora, preparava-se para entoar a canção. Mas, o público estava impaciente. “Vai lavar pratos!”, gritavam alguns espectadores, enquanto Amelita Baltar tremia nervosa, segundo confessou anos depois.
O impaciente público sequer ficou em silêncio quando a jovem cantora – que se tornaria em uma das várias esposas de Piozzolla – começou a pronunciar os primeiros versos do recitativo.
“Las tardecitas de Buenos Aires tienen esse que sé yo, viste? Salgo de casa por Arenales, lo de siempre en la calle y en mí, cuando de repente…”.
Quando terminou, foi ovacionada longamente. Mas, os fãs dos grupos musicais rivais jogaram moedas sobre o palco.
Naquela noite, Amelita estava tão nervosa enquanto cantava, com tal dificuldade para respirar, que, em um momento, respirou fundo (muito fundo)…e o vestido rasgou por trás.
Quando terminou, enquanto era aplaudida, teve que caminhar para trás, até sair do palco.
O festival premiaria naquele dia três categorias; música internacional, música tradicional e tango.
O júri composto por eminências internacionais da música da época. Vinícius de Moraes, a poetisa e cantora peruana Chabuca Granda e o argentino e tangueiro Armando Garrido eram alguns integrantes do tribunal que votou a favor de Piazzolla-Baltar-Ferrer.
Mas, o júri popular convocado pelos organizadores do festival optou pelo tango tradicional “Até o último trem”, de Julio Ahumada e Julio Camillioni.
A obra era interpretada pelo tangueiro com um impressionante registro de barítono, Jorge Sobral.
O “Balada para un loco” não venceu o festival. Mas, na seguinte semana o disco com a canção foi lançado e vendeu 200 mil cópias. Imediatamente o cantor Roberto Goyeneche, encantado com a obra, também a gravou. E a partir dali, ficou famosa em todo o mundo.
Piazzolla morreu há 20 anos, em 1992.
Horacio Ferrer mora no hotel Alvear e é presidente da Academia Nacional do Tango.
A ex-esposa de Piazzolla, Amelita Baltar, apresenta-se com frequência na livraria Clásica y Moderna, na avenida Callao.
Há poucos anos me reuni com Horácio Ferrer no café do hotel Alvear para recordar o trabalho de parceria com Piazzolla. “Nós éramos muito parecidos”, me disse o bardo uruguaio. “Ele era de estirpe noturna, boêmia e trabalhadora do tango. E com um sentimento estético que saía por seus poros, pois gostava muito de artes plásticas e arquitetura. Com Piazzolla trabalhávamos direto das 9:00, às 19:00, quando só então tomávamos o primeiro whisky. Minha parceria com ele foi algo preparado pelo destino!”, explicou.
Ferrer considera que o futuro do tango “é sempre imprevisível”. Mas, aberto à todas as possibilidades, Ferrer não descarta que o tango do futuro possa beber na fonte do rock. “É que os rockeiros argentinos estão feitos da mesma substância, da mesma boemia, da mesma linguagem….a longo prazo, o rock deste país irá se tanguificando”.
LETRA DE BALADA PARA UN LOCO
(Recitativo)
Las tardecitas de Buenos Aires tienen ese qué sé yo, ¿viste? Salís de tu casa, por Arenales. Lo de siempre: en la calle y en vos. . . Cuando, de repente, de atrás de un árbol, me aparezco yo. Mezcla rara de penúltimo linyera y de primer polizonte en el viaje a Venus: medio melón en la cabeza, las rayas de la camisa pintadas en la piel, dos medias suelas clavadas en los pies, y una banderita de taxi libre levantada en cada mano. ¡Te reís!… Pero sólo vos me ves: porque los maniquíes me guiñan; los semáforos me dan tres luces celestes, y las naranjas del frutero de la esquina me tiran azahares. ¡Vení!, que así, medio bailando y medio volando, me saco el melón para saludarte, te regalo una banderita, y te digo…
(Cantado)
Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao… No ves que va la luna rodando por Callao; que un corso de astronautas y niños, con un vals, me baila alrededor… ¡Bailá! ¡Vení! ¡Volá!
Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao…Yo miro a Buenos Aires del nido de un gorrión; y a vos te vi tan triste… ¡Vení! ¡Volá! ¡Sentí!…el loco berretín que tengo para vos:
¡Loco! ¡Loco! ¡Loco! Cuando anochezca en tu porteña soledad, por la ribera de tu sábana vendré con un poema y un trombón a desvelarte el corazón.
¡Loco! ¡Loco! ¡Loco! Como un acróbata demente saltaré, sobre el abismo de tu escote hasta sentir que enloquecí tu corazón de libertad…
¡Ya vas a ver!
(Recitativo)
Salgamos a volar, querida mía; subite a mi ilusión super-sport, y vamos a correr por las cornisas ¡con una golondrina en el motor!
De Vieytes nos aplauden: “¡Viva! ¡Viva!”, los locos que inventaron el Amor; y un ángel y un soldado y una niña nos dan un valsecito bailador.
Nos sale a saludar la gente linda…
Y loco, pero tuyo, ¡qué sé yo!: provoco campanarios con la risa, y al fin, te miro, y canto a media voz:
(Cantado)
Quereme así, piantao, piantao, piantao…
Trepate a esta ternura de locos que hay en mí, ponete esta peluca de alondras, ¡y volá!
¡Volá conmigo ya! ¡Vení, volá, vení!
Quereme así, piantao, piantao, piantao…
Abrite los amores que vamos a intentar la mágica locura total de revivir…
¡Vení, volá, vení! ¡Trai-lai-la-larará!
(Gritado)
¡Viva! ¡Viva! ¡Viva!
Loca ella y loco yo…
¡Locos! ¡Locos! ¡Locos!
¡Loca ella y loco yo
‘NÃO TEM OS PATINHOS EM FILA”: BREVE GLOSSÁRIO SOBRE OS ‘PIANTAOS’
- Chapita: Pinel. Doidinho. Lelé da cuca. Excêntrico. Usa-se com o verbo “estar”. Alguém “está chapita” Também usa.-se o “re-chapita”. Bem doido.
- Colifato: Louco. Também usa-se a versão abreviada, “colifa”.
- “De la gorra”: Literalmente, “Do boné”. Exemplo, “estás de la gorra si te imaginás que podés usar essa ropa”
- “Del tomate”: Literalmente, “Do tomate”. Exemplo: “vos estás del tomate si crees que el diputado Mutatis de Anchorena va devolver el dinero que robó”
- Fisura, fisurado: Doido. Exemplo: “el fisura de Atilio se fue a Mongolia, a abrir un pet-shop”
- Limado: A palabra provém da prática no automobilismo, de limar a tampa dos cilindros, para propiciar mais potência aos motores. Isto é, o motor fica mais nervoso..mas também mais frágil.
- Pirado: tal como em português.
- Pirucho: variante de pirado.
- Rayado: Literalmente, ‘riscado’, tal como um disco de vinil. “Están rayados???”
- Piantado: louco. “Piantao” é uma forma de falar portenha a mesma gíria portenha de “piantado”. É a palavra usada em um dos mais famosos versos de “Balada para un loco”, música de Astor Piazzolla e letra de Horacio Ferrer (poeta uruguaio que reside há anos em Buenos Aires e é o presidente da Academia Nacional do Tango da Argentina).
EXPRESSÕES SOBRE OS ‘PIANTAOS’
- No tiene los patitos en fila: Não tem os patinhos em fila. Usado para denominar alguém que está pinel. Biruta.
- No tiene todos los caramelos en el frasco: Não tem todos as balas no pote. Também usado para indicar que alguém está um tanto quanto lelé.
- Te faltan un par de jugadores en la cancha? : Faltam em você um par de jogadores no campo? Idem, idem
- Tenés todas las lamparitas encendidas?: Tem todas as lampadinhas acessas? Idem…
- Te llega agua al tanque?: A água chega em teu tanque? Idem, neste caso, em uma pergunta direta à pessoa suspeita de ter alguns parafusos a menos.
Balada para un loco, com Amelita Baltar, na gravação original de 1969
Balada para un loco, con Roberto Goyeneche
PERFIL: Ariel Palacios fez o Master de Jornalismo do jornal El País (Madri) em 1993. Desde 1995 é o correspondente de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires. Além da Argentina, também cobre o Uruguai, Paraguai e Chile. Ele foi correspondente da rádio CBN (1996-1997) e da rádio Eldorado (1997-2005). Ariel também é correspondente do canal de notícias Globo News desde 1996.
Em 2009 “Os Hermanos“ recebeu o prêmio de melhor blog do Estadão (prêmio compartilhado com o blogueiro Gustavo Chacra).
Ariel Palacios – Blog Os hermanos
A ’loca’ composição da dupla Astor Piazzolla e Horacio Ferrer
Para encerrar a semana dos 20 anos da morte de Astor Piazzolla, aqui vai esta postagem sobre o ‘backstage’ da criação do ‘Balada para un loco’, uma de suas mais emblemáticas composições.
A longa e frutífera parceria entre o bandonenista argentino Astor Piazzolla e o poeta uruguaio Horacio Ferrer foi uma das mais ‘sinérgicas’ da História do tango do rio da Prata. Um dos mais famosos e saborosos frutos deste trabalho em conjunto foi “Balada para un loco” (Balada para um louco), estreada no dia 15 de novembro de 1969 no Luna Park, em pleno centro portenho, onde transcorria o encerramento do Festival Ibero-americano de Dança e Canção.
Piazzolla havia iniciado a parceria com Ferrer pouco tempo antes deste festival, quando o poeta havia renunciado a um posto que tinha na Universidade da República, em Montevidéu, Uruguai.
Pizzolla, ao ler seus poemas, lhe disse: “isso que você faz na poesia, eu faço com a música. Larga tudo e vem trabalhar comigo”.
A nova dupla começou a preparar a ópera-tango “María de Buenos Aires”. Mas, entre uma pausa e outra, foram assistir no cinema “Rey por inconveniência” (cujo título no original era o Le Roi de Coeur, o Rei de Coração), de 1966, do diretor Phillippe de Broca, que trata de um soldado britânico (interpretado pelo genial Alan Bates) que chega em um vilarejo francês após o final da Primeira Guerra Mundial. Ali só estão os loucos que ficaram soltos do manicômio local.
Ferrer, ao ver o filme, ficou fascinado: “o soldado viu que os loucos tinham um enfoque da vida melhor que aqueles que viviam fora do manicômio”. Isso o inspirou para a figura do louco, protagonista da Balada.
Os dois amigos atarefaram-se na composição da obra, concluída no apartamento que Piazzolla tinha na avenida Libertador 1088, andar 14, apartamento C.
No dia “D” Ferrer levou a letra de Balada para un loco. Piazzolla, fascinado, tocou uma melodia. Parecia que estava em transe.
Mas Ferrer não gostou. “Não tinha o lado romântico e boêmio que a letra requeria”, explicou anos depois.
Piazzolla tentou uma segunda melodia.
Mas, desta vez, foi o próprio Piazzolla que não gostou daquilo que ele próprio havia composto. “Não, não…parece um tango plagiado de Mariano Mores (um tangueiro de fama nos an0os 40 e 50, na ativa até hoje em dia).
Depois, na terceira tentativa, começou colocando alguns acordes de “Adiós Nonino”, e finalmente, com essa base, construiu “Balada para un loco”.
Ferrer começou a recitar seu poema.
Emocionado, quando Ferrer terminou de ler o poema e a melodia foi encerrada, Piazzolla disse com os olhos marejados: “Horácio, temos um míssil em nossas mãos!”
O professor Neurus, o cientista maluco de Trulalá, cidade criada pelo desenhista García Ferré. E ao lado, cantando a canção de Piazzolla-Ferré, Pucho, seu fiel, desastrado cúmplice, amante dos tangos (Pucho sempre canta pelo menos um tango nas tirinhas e especialmente no desenho animado)
Na noite do festival, Amelita Baltar, uma jovem cantora, preparava-se para entoar a canção. Mas, o público estava impaciente. “Vai lavar pratos!”, gritavam alguns espectadores, enquanto Amelita Baltar tremia nervosa, segundo confessou anos depois.
O impaciente público sequer ficou em silêncio quando a jovem cantora – que se tornaria em uma das várias esposas de Piozzolla – começou a pronunciar os primeiros versos do recitativo.
“Las tardecitas de Buenos Aires tienen esse que sé yo, viste? Salgo de casa por Arenales, lo de siempre en la calle y en mí, cuando de repente…”.
Quando terminou, foi ovacionada longamente. Mas, os fãs dos grupos musicais rivais jogaram moedas sobre o palco.
Naquela noite, Amelita estava tão nervosa enquanto cantava, com tal dificuldade para respirar, que, em um momento, respirou fundo (muito fundo)…e o vestido rasgou por trás.
Quando terminou, enquanto era aplaudida, teve que caminhar para trás, até sair do palco.
O festival premiaria naquele dia três categorias; música internacional, música tradicional e tango.
O júri composto por eminências internacionais da música da época. Vinícius de Moraes, a poetisa e cantora peruana Chabuca Granda e o argentino e tangueiro Armando Garrido eram alguns integrantes do tribunal que votou a favor de Piazzolla-Baltar-Ferrer.
Mas, o júri popular convocado pelos organizadores do festival optou pelo tango tradicional “Até o último trem”, de Julio Ahumada e Julio Camillioni.
A obra era interpretada pelo tangueiro com um impressionante registro de barítono, Jorge Sobral.
O “Balada para un loco” não venceu o festival. Mas, na seguinte semana o disco com a canção foi lançado e vendeu 200 mil cópias. Imediatamente o cantor Roberto Goyeneche, encantado com a obra, também a gravou. E a partir dali, ficou famosa em todo o mundo.
Piazzolla morreu há 20 anos, em 1992.
Horacio Ferrer mora no hotel Alvear e é presidente da Academia Nacional do Tango.
A ex-esposa de Piazzolla, Amelita Baltar, apresenta-se com frequência na livraria Clásica y Moderna, na avenida Callao.
Há poucos anos me reuni com Horácio Ferrer no café do hotel Alvear para recordar o trabalho de parceria com Piazzolla. “Nós éramos muito parecidos”, me disse o bardo uruguaio. “Ele era de estirpe noturna, boêmia e trabalhadora do tango. E com um sentimento estético que saía por seus poros, pois gostava muito de artes plásticas e arquitetura. Com Piazzolla trabalhávamos direto das 9:00, às 19:00, quando só então tomávamos o primeiro whisky. Minha parceria com ele foi algo preparado pelo destino!”, explicou.
Ferrer considera que o futuro do tango “é sempre imprevisível”. Mas, aberto à todas as possibilidades, Ferrer não descarta que o tango do futuro possa beber na fonte do rock. “É que os rockeiros argentinos estão feitos da mesma substância, da mesma boemia, da mesma linguagem….a longo prazo, o rock deste país irá se tanguificando”.
LETRA DE BALADA PARA UN LOCO
(Recitativo)
Las tardecitas de Buenos Aires tienen ese qué sé yo, ¿viste? Salís de tu casa, por Arenales. Lo de siempre: en la calle y en vos. . . Cuando, de repente, de atrás de un árbol, me aparezco yo. Mezcla rara de penúltimo linyera y de primer polizonte en el viaje a Venus: medio melón en la cabeza, las rayas de la camisa pintadas en la piel, dos medias suelas clavadas en los pies, y una banderita de taxi libre levantada en cada mano. ¡Te reís!… Pero sólo vos me ves: porque los maniquíes me guiñan; los semáforos me dan tres luces celestes, y las naranjas del frutero de la esquina me tiran azahares. ¡Vení!, que así, medio bailando y medio volando, me saco el melón para saludarte, te regalo una banderita, y te digo…
(Cantado)
Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao… No ves que va la luna rodando por Callao; que un corso de astronautas y niños, con un vals, me baila alrededor… ¡Bailá! ¡Vení! ¡Volá!
Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao…Yo miro a Buenos Aires del nido de un gorrión; y a vos te vi tan triste… ¡Vení! ¡Volá! ¡Sentí!…el loco berretín que tengo para vos:
¡Loco! ¡Loco! ¡Loco! Cuando anochezca en tu porteña soledad, por la ribera de tu sábana vendré con un poema y un trombón a desvelarte el corazón.
¡Loco! ¡Loco! ¡Loco! Como un acróbata demente saltaré, sobre el abismo de tu escote hasta sentir que enloquecí tu corazón de libertad…
¡Ya vas a ver!
(Recitativo)
Salgamos a volar, querida mía; subite a mi ilusión super-sport, y vamos a correr por las cornisas ¡con una golondrina en el motor!
De Vieytes nos aplauden: “¡Viva! ¡Viva!”, los locos que inventaron el Amor; y un ángel y un soldado y una niña nos dan un valsecito bailador.
Nos sale a saludar la gente linda…
Y loco, pero tuyo, ¡qué sé yo!: provoco campanarios con la risa, y al fin, te miro, y canto a media voz:
(Cantado)
Quereme así, piantao, piantao, piantao…
Trepate a esta ternura de locos que hay en mí, ponete esta peluca de alondras, ¡y volá!
¡Volá conmigo ya! ¡Vení, volá, vení!
Quereme así, piantao, piantao, piantao…
Abrite los amores que vamos a intentar la mágica locura total de revivir…
¡Vení, volá, vení! ¡Trai-lai-la-larará!
(Gritado)
¡Viva! ¡Viva! ¡Viva!
Loca ella y loco yo…
¡Locos! ¡Locos! ¡Locos!
¡Loca ella y loco yo
‘NÃO TEM OS PATINHOS EM FILA”: BREVE GLOSSÁRIO SOBRE OS ‘PIANTAOS’
- Chapita: Pinel. Doidinho. Lelé da cuca. Excêntrico. Usa-se com o verbo “estar”. Alguém “está chapita” Também usa.-se o “re-chapita”. Bem doido.
- Colifato: Louco. Também usa-se a versão abreviada, “colifa”.
- “De la gorra”: Literalmente, “Do boné”. Exemplo, “estás de la gorra si te imaginás que podés usar essa ropa”
- “Del tomate”: Literalmente, “Do tomate”. Exemplo: “vos estás del tomate si crees que el diputado Mutatis de Anchorena va devolver el dinero que robó”
- Fisura, fisurado: Doido. Exemplo: “el fisura de Atilio se fue a Mongolia, a abrir un pet-shop”
- Limado: A palabra provém da prática no automobilismo, de limar a tampa dos cilindros, para propiciar mais potência aos motores. Isto é, o motor fica mais nervoso..mas também mais frágil.
- Pirado: tal como em português.
- Pirucho: variante de pirado.
- Rayado: Literalmente, ‘riscado’, tal como um disco de vinil. “Están rayados???”
- Piantado: louco. “Piantao” é uma forma de falar portenha a mesma gíria portenha de “piantado”. É a palavra usada em um dos mais famosos versos de “Balada para un loco”, música de Astor Piazzolla e letra de Horacio Ferrer (poeta uruguaio que reside há anos em Buenos Aires e é o presidente da Academia Nacional do Tango da Argentina).
EXPRESSÕES SOBRE OS ‘PIANTAOS’
- No tiene los patitos en fila: Não tem os patinhos em fila. Usado para denominar alguém que está pinel. Biruta.
- No tiene todos los caramelos en el frasco: Não tem todos as balas no pote. Também usado para indicar que alguém está um tanto quanto lelé.
- Te faltan un par de jugadores en la cancha? : Faltam em você um par de jogadores no campo? Idem, idem
- Tenés todas las lamparitas encendidas?: Tem todas as lampadinhas acessas? Idem…
- Te llega agua al tanque?: A água chega em teu tanque? Idem, neste caso, em uma pergunta direta à pessoa suspeita de ter alguns parafusos a menos.
Balada para un loco, com Amelita Baltar, na gravação original de 1969
Balada para un loco, con Roberto Goyeneche
PERFIL: Ariel Palacios fez o Master de Jornalismo do jornal El País (Madri) em 1993. Desde 1995 é o correspondente de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires. Além da Argentina, também cobre o Uruguai, Paraguai e Chile. Ele foi correspondente da rádio CBN (1996-1997) e da rádio Eldorado (1997-2005). Ariel também é correspondente do canal de notícias Globo News desde 1996.
Em 2009 “Os Hermanos“ recebeu o prêmio de melhor blog do Estadão (prêmio compartilhado com o blogueiro Gustavo Chacra).
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