Por Francisco Quinteiro Pires | Para o Valor, de Nova York
James Joyce (1882-1941) foi inepto na vida, sagaz no trabalho. Escritor reconhecidamente autobiográfico, ele extraiu dos acidentes da existência a matéria da sua criação. “Distinguir fato e ficção em Joyce é difícil, apesar da confirmação por amigos de infância de que experiências vividas pelo escritor irlandês foram transpostas para os livros”, observa Gordon Bowker. “Ele impôs à realidade um verniz ficcional.”
Autor de “James Joyce: A New Biography” (Farrar, Straus & Giroux), que acaba de ser lançado nos Estados Unidos, Bowker considera um erro usar o conteúdo de enredos literários para escrever a biografia de um romancista. Ao mesmo tempo, reconhece os limites do gênero biográfico. Sem medo de abrir o flanco aos críticos, Bowker cita Bernard Malamud (1914-86), autor de “Dublin’s Lives” (1979), para quem “toda biografia é em última análise uma ficção”. Trajetórias são reconstruídas com o auxílio da imaginação. “Ninguém pode fazer argila pura do barro do passado”, escreveu Malamud.
Antes de Bowker, outros biógrafos assumiram a tarefa de narrar a história do autor de “Ulisses” (1922). Herbert Gorman foi o primeiro. Publicou o seu livro em 1939, enquanto o ficcionista irlandês estava vivo.
Joyce era consciente da sua imagem. Ao psicanalista Carl Jung (1875-1961), responsável pelo tratamento de Lucia, a sua filha esquizofrênica, ele se confessou “um homem de virtudes modestas, propenso à extravagância e ao alcoolismo”. Para a frustração de Gorman, Joyce seguiu de perto a edição da primeira biografia, sendo capaz de suprimir passagens desabonadoras. O contato estreito com o biografado despertou um senso de obrigação. Gorman comprometeu sua independência autoral.
Em vida, o status de Joyce como escritor não pôde ser determinado. De uns conquistou grande admiração: “Ele assassinou o século XIX” (T.S. Eliot) e se transformou no “maior poeta de uma nova fase da consciência humana” (Edmund Wilson). Foi por outros desprezado: “Ulisses” é “mais nojento que Casanova” (D.H. Lawrence) e destila “o desejo de chocar” (Virginia Woolf).
Especialista em literatura irlandesa, Richard Ellmann iniciou em 1947 a pesquisa de “James Joyce” (tradução de Lya Luft), publicado em 1959 e considerado pelo escritor Anthony Burgess “a melhor biografia literária do século” XX.
Ellmann (1918-87) conversou com pessoas que conheceram Joyce, definido por ele como uma “criatura bizarra e maravilhosa”, com capacidade acima da média de “reconstituir de memória grande parte do que vira e ouvira”. De acordo com Bowker, o segundo biógrafo adotou com entusiasmo os relatos de Stanislaus, irmão mais novo de Joyce, e Maria Jolas, mecenas do romancista em Paris. Em 1982, ano do centenário de nascimento do escritor, Ellmann publicou uma edição revista com cem páginas adicionais e 80 novas ilustrações. Desde aquele ano, foram lançadas biografias sobre o pai, a mulher e a filha de Joyce.
Joyce era consciente da sua imagem. Disse a Jung ser “um homem de virtudes modestas, propenso à extravagância e ao alcoolismo”
Bowker se beneficiou desses livros para escrever o seu, “um exemplo magistral de retrato da vida de um ficcionista, sobretudo uma tão complicada como a de Joyce”, segundo “The Economist”. “De fato, o grande desafio nunca foi falta de material”, diz Bowker, que escarafunchou arquivos espalhados pelos Estados Unidos e Europa.
“A sombra sobre o meu projeto foi Stephen James Joyce”, diz. Temido por biógrafos e pesquisadores, contra os quais “declarou guerra”, Stephen é o neto e administrador do espólio do romancista irlandês. Após ameaças de processo judicial, ele impediu a leitura de “Ulisses” durante o Bloomsday de 2004 na Irlanda. “Tive de manter em segredo as minhas intenções, pois temi que ele tentasse ditar o que eu escrevia.”
Biógrafo de George Orwell e Malcolm Lowry, Bowker vê com bons olhos o uso de tecnologia, como a criação de aplicativos e “podcasts”, para decifrar o hermetismo dos livros joycianos. “É bem-vinda qualquer coisa que eleve a compreensão e o desfrute de trabalhos de gênio.” Segundo ele, a obra de Joyce, em domínio público desde o início deste ano, desperta entre acadêmicos e leigos tanto interesse quanto a de Shakespeare e a “Bíblia”. Certa vez, em resposta jocosa a um comentário sobre “Ulisses”, o escritor declarou: “Eu coloquei tantos enigmas e quebra-cabeças nesse livro que ele manterá por séculos professores ocupados na discussão sobre o que eu quis dizer.”
As ironias e trocadilhos de Joyce desaconselham uma interpretação literal dos seus escritos. Com a sua obra experimental, ele se uniu à tradição irlandesa de satiristas como Jonathan Swift, George Bernard Shaw e Oscar Wilde. E registrou as lembranças da Dublin da sua juventude. A capital da Irlanda era “um centro de paralisia”, onde expectativa se convertia em inércia. Uma frase de “Retrato do Artista Quando Jovem” (1916) revelou o sufocamento sentido pelo criador jovem e talentoso: “Quando a alma de um homem nasce neste país arremessam redes sobre ela para impedi-la de voar”. O peso da tradição fez o passado ser mais imediato para o escritor. “O tempo pretérito tornou-se o parque de diversões da sua ficção”, afirma Bowker. Ou nas palavras do próprio Joyce: “O passado não é passado. É o presente aqui e agora”.
O literato saiu da Irlanda em 1904 e morou em diferentes cidades: Trieste, Paris e Zurique. O exílio imposto a si mesmo refletiu, de acordo com Bowker, “a busca de uma visão mais abrangente”. Esse nomadismo era também movido por uma certeza e um medo. “Ele achava que uma Irlanda independente dominada por clérigos e nacionalistas de mente estreita não era lugar para um livre-pensador.” Após começar a escrever “Ulisses”, Joyce nunca regressou à terra natal. “Receava ser ferido à bala ou processado por calúnia”, conta Bowker. “Ele fizera muitos inimigos entre as pessoas que conheceu e transformou sem disfarce em personagens.”
Aquela nação, fonte da sua criatividade, desaparecera. Bowker se confessa surpreso com o antagonismo de Joyce à Irlanda que se tornou independente da Grã-Bretanha. “Ele nasceu em um país que vivia à sombra de outro e cuja linguagem e cultura originais foram suplantadas.” Em pesquisa no Arquivo Nacional de Londres, o biógrafo descobriu que o cônsul britânico em Zurique tentou por duas vezes cassar a cidadania inglesa de Joyce. Em visita a Londres para legalizar a relação de 27 anos com Nora Barnacle, sua companheira e musa, o escritor recebeu ataques da imprensa local. A vida de Joyce, consumida pela pobreza e saúde frágil, se tornou a sua maior ironia, segundo Bowker. “Ao subverter a língua inglesa, uma intrusa, ele ajudou a colocar a Irlanda, de uma vez por todas, no mapa literário.”
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