segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Onde não há esperança

Um conhecido viu Nasrudin procurando alguma coisa no chão.
- O que foi que você perdeu mullah ? - perguntou .
- minha chave - respondeu Nasrudin. e os dois , de joelhos , ficaram procurando. Depois de algum tempo o outro perguntou :
- onde foi mesmo que você deixou cair a chave ?
- Em minha casa .
- Então por que você está procurando aqui ?
- Porque aqui há mais luz do que dentro da minha casa .

Idries Shah

Estudar ou ser estudado

Um homem que havia estudado em muitas escolas de metafísica procurou Nasrudin. Para mostrar que podia ser aceito como discípulo , expôs minuciosamente onde estivera e o que estudara.

- Espero que me aceite , ou pelo menos me exponha suas ideias - disse o homem - pois gastei muito tempo estudando nessas escolas .

- Veja só - disse  Nasrudin você estudou os mestres e seus ensinamentos. O ideal seria que os mestres e seus ensinamentos tivessem estudado você. Isto sim, valeria a pena .

"Post-mortem"


De Waly Salomão

Um cavalo-marinho mergulha em seus círculos de corais
mas em sua mente só releva a atualidade do belo.
O passado pode estar abarrotado de chateações
mas daqui pra frente ótimas fotos e melhores filmes
e amor e gravidez no bojo do macho
e horas infindas deitado nas areias
especulando nuvens
que se esgarçam ao sabor e ao deslize das figuras.
Um gosto permanecer aqui extasiado
e sem querer comparecer a nenhum "vernissage"
cansado dos artistas
que dão a seus quadros a última demão de verniz
e permanecer lasso das exposições e dos museus a visitar
e do "dernier cri"
esquecer os pacotes de encomendas à "Amazon Books"
e fugir dos seminários sem sêmen nem humor trocadilhescos.
Quase morrer é assim:
uma cada vez mais crescente ojeriza com a “vidinha literária”
de par com a imorredoura memória de certas linhas,
por exemplo,
que durante o resto de tempo que me é concedido viver
e na hora "H" da morte,
estampada na minha face esteja a legenda:
O que amas de verdade permanece, o resto é escória.
Sonhar com Provenças e Venezas e Florenças.
Rever Piero della Francesca
e a Essaouira de meu amigo Garbil, o boxeador.
E a vista de Delft de Vermeer.
A Barcelona do poeta-"clochard"-palhaço Joan Brossa.
A cena de New York, minha e de todos e de Ashbery
e de Frank O’Hara e de ninguém.

Sobem fiapos da infância de um tabaréu:
ora eu era
uma piaba nadando por entre bancos de areia do Rio das Contas
ora eu era
um acari das locas do Gongogi — rio cheio de baronesas.
Idade do ouro fluvial, plástica, flamante.
Fogueira gigante das noites de São João. Fogos-de-bengala.
Eu sozinho menino e o Amadis de Gaula
e os outros todos principais cavaleiros
e as outras todas principais damas
que povoavam as varandas, os pastos, o curral, a balsa, a chácara,
as pedras, os capins e as matas da Coroa Azul raro Balito.
Convive-se com uma criatura sem imaginar de que reino
provém.

Zelar pelo deus "Treme-Terra" que meu coração devolveu.
Não cortejar a morte.
Não perambular pelos cemitérios
nem brindar o luar patético
com caveiras repletas de vinho tinto seco
como um Byron-Castro Alves gótico e obsoleto.
Sereno e cabeça dura — "testa ruda" —
mirar de frente a caveira
e as tropas de vermes de prontidão
(como observo vermes dentro de um pêssego)
mas por enquanto gargalhar da irrealidade da morte.
Gozar, gozar e gozar
a exuberância órfica das coisas
em riba da terra
debaixo
do
céu.


ELEGIAS DE DUÍNO

Fragmentos


O sentir em nós, ai, é o dissipar-se.
Exalamos nosso ser; e de uma a outra ardência
Nos desvanecemos. Alguma vez nos dizem:
Circulas no meu sangue, este quarto, a primavera
Estão cheios de ti. Inutilmente procuram nos reter
Evolamos. E aqueles que são belos, oh, quem os
Deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto
E se dissipa. Tal o orvalho da manhã
E o calor do alimento, o que é nosso
Flutua e desaparece. Ó sorrisos, para onde?
E tu, olhar erguido, fugitiva onda ardente e nova
Do coração? Ai de nós, assim somos.
Estará o mundo impregnado de nós, pois que
Nele nos perdemos? E os Anjos
Retomarão apenas o que deles emanou?
Talvez um pouco de humano se encontre às vezes
Em seus traços, como o vago no rosto das mulheres
grávidas? Eles porém nada percebem
No turbilhão da volta a si mesmos.”

“E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
valer? Nem anjos nem homens.
E o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgasta-nos a face—a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que se amam?
Ai, apena ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos –talvez os pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido.”



 RAINER MARIA RILKE

Cordel - A minha sina


- capítulo 3 - Virgulino

Minha vida vai depressa,
Nas matas desse grotão,
Onde bate coração,
Vida fazendo remessa,
Vou passando sem ter pressa,
Buscando um novo cantar,
Procurando por lugar
Onde possa ter certeza,
Que não tenha mais tristeza,
Nem do que me admirar...

Depois dessa confusão
Com Jacinta e sua laia,
Não quis saber de gandaia,
Muito menos procissão,
Procurando um novo chão,
Bicho de saia, tô fora,
Pelo menos por agora,
Nem que peça a condessa,
Até mula sem cabeça.
Encontrei por mundo afora...

Cheguei nas terras do Juca,
Pelos matos da Terena,
Naquela serra pequena,
Alma da gente cutuca,
Vivendo dessa arapuca,
Não posso dela fugir,
Vou morrendo sem sentir,
Cheiro de terra molhada,
Pelo sangue, temperada,
Brotando sem se pedir...

Pois te conto seu doutor,
Não podendo ficar quieto,
Peguei caminho mais reto,
Todo cabra de valor,
Debaixo do sangrador,
De sujeito mais safado,
Abriu desde seu costado,
Descendo o pau mete ripa,
Revirando então as “tripa”,
Deixando bem perfurado...

Empreitada como aquela,
Nunca mais eu vou saber,
Era coisa pra querer,
Sem pensar direito nela,
Por conta duma costela,
Que um sujeito me quebrou,
Mas deu o fora, vazou,
Nem notícias nem recado,
Correu pelo descampado,
Nem rastro dele ficou...

Esse maldito chulé
Dera de contar vantagem,
Isso é muita sacanagem,
Não vou deixar isso a pé,
Nem que fique tereré,
Não vou fazer de rogado,
Eu pego esse desgraçado.
Eu vou tirar isso a limpo,
Soube que está num garimpo,
Vou matar esse viado...

Peguei a minha mochila,
Despenquei, fui para lá,
Tem gente falou não vá,
Mas tem defunto na fila,
Fui correndo pr’essa vila,
Eu nem pensei duas vezes,
Quero a cabeça do sapo,
Arranco logo no papo,
Que é assim que matam reses...

No garimpo lá no Norte,
Procurei por toda parte,
Não pedindo nem aparte,
Estava com gosto de morte,
Apostei na minha sorte,
Pro garimpo fui correndo,
Mal o sol ia nascendo,
Eu nem esperei brotar,
Querendo depressa chegar,
Vingança assim, vou vivendo...
Chegando no mafuá,
Encontrei cabra valente,
Ouro tinha até no dente,
Tanta gente tinha lá
De todo jeito que dá;
Tinha velho desdentado,
Tinha cabra magoado,
Por causa duma mulher,
Todo jeito que quiser,
Muito pudim de cachaça,
Tem sujeito boa praça,
A desgraça que vier...

Perguntei pra todo mundo,
Onde estava o desafeto,
Que por certo, tava perto,
Ele chamava Raimundo,
Era um cabra vagabundo,
Tinha cicatriz na cara,
Bigode tinha na apara,
Uma cara de paçoca,
Uma cor de tapioca,
Ia sangrar numa vara...

Me pediram com cuidado,
Muita vagareza e tino,
Pois ele tinha o destino,
E o corpo tava fechado,
Que por mais que fosse errado,
Com ele ninguém bulia,
Era o rei da valentia,
Sujeito muito covarde,
Que antes que a noite tarde,
Matava mesmo de dia...

Camarada sem tempero
Senhor dessas taperas,
Maior fera entre essas feras,
Temido por companheiro
Rei dum reinado inteiro,
O maior dos assassinos,
Herói de todos meninos,
O superhomem de lá
Nó em jararaca dá,
Dobrava todos os sinos...

Sem ter medo de valente,
Cara feia e assombração,
Matador desse sertão,
Pensei dum modo decente
De levar esse vivente
Pra casa de Satanás,
Dei dois passos para trás,
Chamei esse tal Raimundo,
Que era fedorento e imundo,
Que só morte satisfaz...

Na hora do desafio,
Ele me reconheceu,
E sabendo quem sou eu,
Chamou espada no fio,
Convidando mais um trio,
Prá “mode” poder brigar,
Gostei do desafiar,
Quatro sujeito é demais,
Mesmo assim eu quero mais,
Nunca vou me acorvadar...

Porém com o sangue quente,
A gente não pensa, demora.
Eu nem pensei, nessa hora,
Que tinha lá muita gente,
Que era melhor, de repente
Esconder e tocaiar,
Podia escolher lugar
Pra pegar esse safado,
Mas deixei tudo de lado,
E com ele fui lutar...

Depois de já ter furado,
Um dos cabras de Raimundo
Uma faca entrou bem fundo ,
Me machucou desse lado,
Agora eu já tô ferrado,
Chegou a hora da morte,
Acabou a minha sorte,
Minha sina terminou,
Pensei que tudo acabou;
Mas meu Deus tem muito porte...

Na hora que eu precisava,
De uma ajuda de meu Deus,
Surgiu um cabra dos meus,
Que eu nunca que imaginava
Que esse camarada tava,
Endiabrado, esse dia,
E no mei da ventania,
Sacou de sua peixeira,
Na porrada fez fileira,
Fez à sua serventia...

Esse sujeito do Norte,
Parecia mais menino,
Chamado de Virgulino,
Não temia dor nem morte,
Para culminar a sorte,
O moço meio zarolho
Era cego só dum olho,
Mas enxergava por dois,
Numa conversa depois,
Temperou com muito molho...

Contou que era garimpeiro,
Veio de Serra Talhada,
Corria na vaquejada,
Percorreu sertão inteiro,
E que desde fevereiro,
Nesse garimpo chegara,
Que cedinho já notara,
Naquele tal de Raimundo,
Um sujeito vagabundo,
Que esse dia preparara...

Força de eu ter conhecido,
Pros lado de Pernambuco,
Um cabra bom de trabuco,
E muito do divertido,
Resolvi por mais sentido,
Nessa nossa ladainha,
Perguntei nessa tardinha,
De quem ele era parente,
Fiquei quieto de repente,
Com a resposta que tinha...

Contou-me, pra susto meu,
Que era neto de Zefinha,
Moça dessas bonitinha,
Que no passado viveu,
Que de perto conheceu,
Com muito beijo e abraço,
Moça pegada no laço,
Nas terras desse sertão,
Que teve com Lampião,
O rei de todo cangaço,

Um moleque bem criado,
Um sujeito musculoso,
Cabra muito perigoso,
Campeão de todo o gado,
Esse peão afamado,
O rei de todo sertão,
Era cara e coração
Do pai, sujeito valente,
Compreendi, bem de repente,
Que o neto de Lampião

Era o tal de Virgulino,
Que lutou junto comigo,
Sem temer nenhum perigo,
Sem ter medo do destino
Que com todo desatino,
Ajudou a terminar
Com quem quis me machucar,
Me pegar na covardia,
Mas com toda valentia,
Me ajudou comemorar...

E desde aquele incidente,
Agora não tem jeito não,
Quando vamos no sertão
Ninguém bole com a gente,
Nem na faca ou no repente,
Quem queira corre perigo
Mexeu com ele ou comigo,
Na ponta duma peixeira,
Arrepende a vida inteira,
Depressa vem o castigo...