Valério Arcary:
"Entre aqueles engajados na militância há muita
confusão entre o que são as relações de amizade e as relações de camaradagem.
Esta confusão gera muitas desilusões quando as diferenças políticas levam à
perda das relações de amizade. Relações de amizade são um vínculo emocional
poderoso. Lidar com perdas é sempre uma experiência dolorosa. Não é incomum que
as decepções pessoais com camaradas se transformem em desalento ideológico no
futuro da luta pelo socialismo. E o desânimo, a desesperança, o desengano são
maus conselheiros, porque obscurecem a mente e diminuem a lucidez.
Tentar definir o que é a amizade foi sempre difícil. Em uma
época em que confiar nos outros é percebido como credulidade ingênua é
importante lembrar que uma vida sem amizade é muito triste. A solidão parece
ser uma epidemia no mundo contemporâneo. Ela é sempre mencionada como um dos
fatores de depressão. A desconfiança generalizada – contra tudo e todos – só
pode alimentar, evidentemente, vidas solitárias.
(...)
Lealdade entre amigos não pode repousar somente em acordos
políticos. Ela se constrói alicerçada na confiança pessoal, que vai além das
ideias políticas. Existindo, inevitavelmente, diferenças de opinião, cultivar
amizades exige uma disposição para a tolerância. Ninguém gosta de ser
contrariado. Podemos ficar desgostosos ou até aborrecidos quando discordam de
nossas opiniões. Mas romper amizades por diferenças de opinião é uma tolice
infantil. Estar disposto a acolher ideias diferentes das nossas revela
maturidade para aceitar graus de dissenso com que podemos conviver.
O que são camaradas? Camaradas são aqueles que, na tradição
socialista, pertencem a uma mesma organização e ou compartilham uma visão do
mundo comum, o igualitarismo, ou luta pela igualdade social. Esta visão do
mundo socialista se fundamenta, em primeiro lugar, no reconhecimento de que
todos os seres humanos têm em comum necessidades, intensamente, sentidas que
são iguais. Ser socialista significa uma ruptura ideológica com o capitalismo,
uma adesão ao movimento dos trabalhadores e dos oprimidos, uma aposta no
projeto de luta pela revolução, e uma aspiração internacionalista por um mundo
sem dominação imperialista. Nas sociedades em que vivemos ser socialista exige,
portanto, uma escolha de classe. Não importa a classe social na qual nascemos.
O que importa é a qual classe unimos nosso destino.
Acontece que nem todos os nossos amigos são camaradas, e nem
todos os camaradas são amigos. Porque amigos podem ter visões do mundo
diferentes. Amizades não devem ter como condição, necessariamente, uma mesma
visão do mundo. Por outro lado e, talvez, mais importante, podemos ser
camaradas de militantes que não conhecemos tão bem. Só em pequenas
organizações, núcleos de pouco mais do que cem militantes, é que é possível
conhecer todos os membros. Se a amizade pessoal for um critério de pertencimento,
uma organização revolucionária estará condenada à estagnação, ou a rupturas
recorrentes.
(...)
A violência verbal, seja na forma ou no conteúdo, é uma
maneira desonesta, intelectualmente, de tentar ganhar um debate a qualquer
preço. Acusações ad hominem são aquelas que são dirigidas às pessoas, e não às
ideias que elas defendem.
Coloca-se o caráter do adversário em dúvida, através de
ataques pessoais, para desqualificar suas ideias. Trata-se de uma tática
diversionista porque tenta desviar o tema da polêmica. Aqueles que recorrem a
este método retórico confessam, involuntariamente, que não têm confiança nos
seus argumentos. Precisam destruir o outro porque não conseguem refutar suas
ideias. Violência verbal através de acusações ad hominem é um método inaceitável,
porque diminui a importância das ideias, e só serve para a desmoralização dos
adversários.
Na esquerda revolucionária para o século XXI que queremos
construir devemos saber preservar amizades, apesar das diferenças políticas que
nos separam em distintas organizações, e aprender a distinguir os adversários
dos inimigos. Isso parece simples e elementar. Mas não é.