(A motivação para contar essa história - que parece
fantasiosa, mas que é real - veio da polêmica atual sobre as manifestações de
rua e seus desdobramentos em violência. Desde os meus 15 anos acho – e continuo
achando ainda hoje – que a violência é caminho para lugar nenhum. Quer mudar o
mundo? Ótimo. Entre no grêmio estudantil, filie-se a um sindicato ou a um
partido, funde uma banda de rock, participe de um cineclube e veja muitos
filmes, leia muito livros, estude bastante. São várias as opções. Pense em projetos
e programas que possam beneficiar muita gente. E, se a oportunidade aparecer,
não a perca.)
A comemoração, na próxima segunda-feira, dos dez anos do
programa “Luz para todos” instituído pelo Decreto 4.873, de 11/11/2003, do
então presidente Lula e da ministra de Energia Dilma Rousseff, me traz algumas
lembranças que quero compartilhar com os amigos.
Corria o ano de 2002, último ano do segundo governo de FHC
e, em março de 2002, o Ministério do Planejamento lançou a concorrência para o
Estudo de Atualização do Portfólio dos Eixos Nacionais de Integração e
Desenvolvimento (2004-2011). Este visava renovar os projetos de infraestrutura
que poderiam ser do interesse do setor privado e de parcerias público-privado
na concepção desenvolvimentista do então governo federal. Continha também um
esforço meritório de planejamento do país por meio de grandes projetos de
infraestrutura e estudos de logística realizados por profissionais experientes.
Participamos da concorrência respondendo pelo portfólio de
projetos de Energia (já tinha feito o portfólio de projetos de Energia para a
Região Amazônica no estudo anterior) pelo Consórcio Monitor/Boucinhas. Ganhamos
a licitação e começamos a trabalhar na seleção de projetos de usinas de
geração, linhas de transmissão e gasodutos para o país.
Ao iniciar os trabalhos, tendo que produzir um texto sobre a
situação nacional na perspectiva do setor elétrico, oferta & demanda,
aparecia como uma nódoa gigantesca a borrar o mapa nacional o número de
brasileiros ainda sem acesso à energia elétrica, em pleno século XXI: algo como
10 milhões de pessoas! Nas trevas, ou quase. Isso me incomodava e desviava a
minha atenção do portfólio de projetos. Comecei a pensar se não havia uma forma
de “driblar” o escopo do projeto que eu tinha sido contratado para fazer,
introduzindo, de alguma forma, a questão da população não atendida pelos
serviços de eletricidade nas áreas rurais do país.
Vinha de uma gratificante experiência quando, dez anos antes
na CESP, em São Paulo, tinha sido um dos artífices de um programa de
eletrificação rural que atendeu as populações carentes do Vale do Ribeira,
Pontal do Paranapanema e do fundo do Vale do Paraíba.
A eletrificação rural no país estava se desenrolando, de
forma lenta, por meio de programas das concessionárias federais e de algumas
empresas estaduais, sendo o maior deles o Luz no Campo (Eletrobras e
subsidiárias). Como responsável por um portfólio de projetos de Energia para o
Brasil, se eu conseguisse transformar a questão da eletrificação das moradias
nas áreas rurais em um programa de governo, uno e nacional, daria um enorme
passo no sentido da verdadeira universalização do acesso à energia elétrica a
todos os brasileiros. Um único programa! Passo fundamental que romperia o
“dique” setorial e traria o assunto para a responsabilidade do governo federal!
Um programa de governo e não de empresas!
Comecei a trabalhar. Consultei, em primeiro lugar, Lucia
Pilla (parceira em muitos projetos!), economista brilhante, que também estava
no Consórcio, e conhecida por resolver problemas complexos. Perguntei-lhe de
forma objetiva: será que você consegue o número de moradias rurais brasileiras
que não possuem acesso à eletricidade? E ela, que adora desafios, respondeu: de
todos os municípios brasileiros? E eu: sim, de todos, só serve se for de todos!
Ela retrucou: se os dados existirem, consigo! E lhe expliquei o que pretendia.
Com a informação e com custos das obras de eletrificação rural em andamento no
país, que eu tinha como obter, poderíamos fazer orçamentos médios
regionalizados e obter o custo muito aproximado de quanto precisaríamos para um
programa de UNIVERSALIZAÇÃO da energia elétrica para o país. Poderia ser
viável!
Conseguimos os dados, todos. O projeto estava andando e,
muito importante, identifiquei que poderíamos, a partir de uma ação do governo,
usar os recursos da Reserva Global de Reversão (RGR), recursos abundantes do
próprio setor elétrico, para executar o programa. Ou seja, tínhamos os dados e
a fonte de recursos. Precisava, agora, dar o segundo passo: convencer o
Consórcio que o programa de UNIVERSALIZAÇÃO de acesso à eletricidade que
estávamos desenvolvendo, apesar de não fazer parte do escopo contratado,
merecia estar no estudo pelo seu caráter “estruturante do ponto de vista
social”. Batalha.
Estava no Consórcio, como um dos coordenadores, o sociólogo
Carlos Alberto Doria e fui consultá-lo sobre o assunto. Doria, um consultor
experiente na relação com governos, homem de grande inteligência e
sensibilidade, poderia ajudar na viabilização do programa. Mostrei a ele o que
pretendíamos. Ele achou a ideia excelente e disse que claro, claro que sim,
ajudaria a colocar o programa no portfólio de projetos. E assim o fez. Na
reunião de coordenadores e responsáveis pelos vários portfólios, apresentei a
ideia e Doria foi decisivo no convencimento do Prof. Paulo Haddad - economista
mineiro, ex-ministro da Fazenda, homem muito educado, gentil e
coordenador-geral dos trabalhos - a apoiar a inclusão do programa no nosso
estudo.
Próximo passo, Brasília. Restrições, pois o programa não era
“novidade” e não tinha apelo para atrair o capital privado. Com paciência fui
explicando que a “abordagem” era nova, que a execução do programa movimentaria
dezenas de empresas privadas produtoras de postes, cabos elétricos e transformadores
e inúmeros pequenos empreiteiros. E que os benefícios sociais seriam enormes.
Fomos conquistando adeptos. No final, surgiram pequenos óbices formais,
relacionados com a aventada, por técnicos do MP, possível necessidade de um
aditivo ao contrato pela inclusão do novo trabalho. Afastamos o problema
dizendo que não seria necessário qualquer acréscimo ao contrato, que os
homens-hora gastos nos estudos do programa seriam absorvidos por nós sem custos
para o contratante.
E assim concluímos o estudo. Cerca de 2.150.000 moradias sem
energia elétrica existentes no país poderiam ser atendidas a um custo de R$
6.297.780.000,00 (Reais de outubro de 2002). Sim, era possível. No texto de
justificativa do programa, que encaminhamos para o Ministério do Planejamento,
o batizei. LUZ PARA TODOS! Programa de universalização do acesso à energia
elétrica.
FHC se despedia. Lula assumiria o governo em 1/1/2003. Dilma
foi nomeada para o Ministério de Energia. A sensibilidade social de ambos tirou
o programa da prateleira do Ministério do Planejamento e o transformou em plano
de governo. Os últimos números que tive acesso mostram que cerca de 15 milhões
de brasileiros foram beneficiados pelo programa até meados de 2013!
Pequena ironia da história: um dos maiores programas sociais
da era Lula foi gestado nos estertores do governo de FHC. Não por tucanos, nem
por petistas. E sim por consultores independentes. Pessoas que sempre estiveram
no “campo” da esquerda democrática, ”três mosqueteiros” lutando aqui e ali,
aproveitando os espaços existentes para ousar um pouquinho visando à construção
de uma sociedade mais justa e igualitária.Por Claudio Guedes