quarta-feira, 23 de outubro de 2019

A escandalosa falta de ética no Brasil



  
. Artigo de Leonardo Boff

REVISTA IHU ON-LINE

"Para superarmos a crise da ética não bastam apelos, mas uma transformação da sociedade. Antes de ser ética, a questão é política, pois esta é estruturada em relações profundamente anti-eticas", escreve Leonardo Boff, filósofo, teólogo e escritor.

Eis o artigo.

O país, sob qualquer ângulo que o considerarmos, é contaminado por uma espantosa falta de ética. O bem é só bom quando é um bem para mim e para os outros; não é um valor buscado e vivido, mas o que predomina é a esperteza, o dar-se bem, o ser espertinho, o jeitinho e a lei de Gerson.

Os vários escândalos que se deram a conhecer, revelam um falta de consciência ética alarmante. Diria, sem exagero, que o corpo social brasileiro está de tal maneira putrefato que onde quer que aconteça um pequeno arranhão já mostra sua purulência.

A falta de ética se revela nas mínimas coisas, desde as mentirinhas ditas em casa aos pais, a cola na escola ou nos concursos, o subordo de agentes da polícia rodoviária quando alguém é surpreendido numa infração de trânsito até em fazer pipi na rua.

Essa falta generalizada de ética deita raízes em nossa pré-história.É uma consequência perversa da colonização. Ela impôs ao colonizado a submissão, a total dependência à vontade do outro e a renúncia a ter a sua própria vida. Estava entregue ao arbítrio do invasor. Para escapar da punição, se obriga a mentir, a esconder intenções e a fingir. Isso leva a uma corrupção da mente.

A ética da submissão e do medo como mostrou J. Le Goff (O medo no Ocidente) leva fatalmente a uma ruptura com a ética, quer dizer, começa a faltar com a verdade, a nunca poder ser transparente e, quando pode, prejudica seu opressor. O colonizado se obrigou, como forma de sobrevivência, a mentir e a encontrar um “jeitinho” de burlar a vontade do senhor.

A Casa Grande e a Senzala são um nicho, produtor de falta de ética: pela relação desigual de senhor e de escravo. O ethos do senhor é profundamente anti-ético: ele pode dispor do outro como quiser, abusar sexualmente das escravas e vender seus filhos pequenos para que não tivessem apego a eles. Nada de mais cruel e anti-ético que isso.

Esse tipo de ética desumana cria hábitos e práticas que, de uma forma ou de outra, continuam,no inconsciente coletivo de nossa sociedade.

A abolição da escravatura ocasionou uma maldade ética inimaginável: deu-se liberdade aos escravos, mas sem fornecer-lhes um pedacinho de terra, uma casinha e um instrumento de trabalho. Foram lançados diretamente na favela. E hoje por causa de sua cor e pobreza são discriminados, humilhados e as primeiras vítimas da violência policial e social.

A situação, em sua estrutura, não mudou com a República. Os antigos senhores coloniais foram substituídos pelos coronéis e senhores de grandes fazendas e capitães da indústria. Aí as pessoas eram ultra-exploradas e feitas totalmente dependentes. Os comportamentos não eram éticos, de respeito às pessoas e garantia de seus direitos mínimos. Eram carvão para a produção.

As relações de produção capitalista que se introduziram no Brasil pelo processo de industrializção e modernização foram selvagens. Nosso capitalismo nunca foi civilizado: guardou sua voracidade de acumulação como nas origens no século XVIII e XIX. A exploração impiedosa da força de trabalho, os baixos salarios são situações eticamente condenáveis. Como superar essa situação que nos envergonha?

Antes de fazer qualquer sugestão minima, importa fazer uma auto-crítica. Que educação deram as centenas de escolas católicas e cristas e as 16 universidades católicas (pontifícias ou não) a seus alunos? Bastava terem ensinado o mínimo da mensagem de Jesus de amor aos pobres contra sua pobreza para supercar os níveis de miséria atual. Elas se transformaram em chocadeiras dos opressores. Criaram um cristianismo cultural de crença mas não de uma fé engajada pela justiça. Por isso seus alunos raramente possuem uma incidência social. São antes pela manutenção do status quo do que por mudanças.

Para superarmos a crise da ética não bastam apelos, mas uma transformação da sociedade. Antes de ser ética, a questão é política, pois esta é estruturada em relações profundamente anti-eticas.

Para ser brevíssimos: tudo deve começar na família. Criar caráter (um dos sentidos de ética) nos filhos, formá-los na busca do bem e da verdade e não se deixar seduzir pela lei de Gerson e evitar, sistematicamente, o jeitinho. Princípio básico: tratar sempre humanamente o outro. Tomar absolutamente sério a lei áurea: “não faça ao outro o que não quer que te façam a ti”. Siga o princípio de Kant: que o princípio que te leva fazer o bem, seja válido para também para os outros. Oriente-se pelos dez mandamentos que são universais. Traduzidos para hoje: o “não matar” significa, venere a vida, cultive uma cultura da não violência. O “não roubar”: aja com justiça e correção e lute por uma ordem econômica justa. O “não cometer adultério”: amem-se e respeitem-se, e obriguem-se a uma cultura da igualdade e pareceria entre o homem e a mulher.

Isso é o mínimo que podemos fazer para arejar a atmosfera ética de nosso país. Repetindo o grande Aristóteles:”não refletimos para saber o que seja a ética, mas para tornarmo-nos pessoas éticas”.

Pertença religiosa numa era secular. Desafios e possibilidades



A partir de dados de uma experiência centrada no Hemisfério Norte, especificamente no Canadá, Estados Unidos e Europa, o filósofo Charles Taylor proferiu sua conferência de encerramento no ciclo de debates promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU com o apoio do PPG em Filosofia da Unisinos. No Anfiteatro Padre Werner, lotado de estudantes e professores, o pensador teceu considerações na noite de 29-04-2013 sobre a questão da secularização e seus impactos sobre a religião em nosso tempo.

A reportagem é de Márcia Junges.
Atualmente, comenta Taylor, a sociedade não é mais “dominada” pela religião. Houve uma mudança profunda no último meio século no lugar da religião e da vida social e espiritual dos indivíduos. Podemos ver desta forma: há um século, a situação padrão em muitos países do Atlântico Norte era de que os Estados eram confessionais. É o caso da Alemanha, Itália, França e países escandinavos, em sua maioria luteranos. Pertencer àquele Estado era pertencer àquela igreja. Até meados do século passado, os habitantes do Quebec de língua francesa tinham o sentimento de que ser cidadãos dessa cidade e serem católicos era uma equação direta.

Já nos EUA a sociedade permite uma variedade de confissões. Contudo, em 1820, era diferente. Havia uma percepção de que este era um país protestante cristão. Houve um desenvolvimento muito lento no EUA com a aceitação dos credos gradualmente.

Cosmovisão abalada

Se voltarmos até a Europa medieval, ser membro de uma cidade era sinal de ser católico e  participar de uma sociedade. Essa sociedade era conectada com o cosmo, visto em termos morais e metafísicos. O que vemos no Ocidente foi um afastamento gradativo da quíntupla pertença: pertença ao cosmo, sociedade, religião, moralidade e civilização. Isso começa, naturalmente, com um rompimento da unidade da Europa medieval católica com a Reforma. Tal coisa significava que não havia sociedades somente católicas, mas luteranas e calvinistas.

Depois veio o desafio que chamamos de Iluminismo, com o desenvolvimento de certa alternativa ao cristianismo. As luzes tiveram impacto também no Brasil, porque uma das formas que essa filosofia do progresso tomou foi o slogan “ordem e progresso”. Essa concepção acabou eliminando a dimensão cósmica. Para ter sociedades baseadas em ordem e progresso, estas tinham que estar baseadas em torno de uma filosofia que todos deveriam aceitar, como o que ocorreu na União Soviética com a revolução comunista, “um espelho invertido de estado confessional”, assinalou Taylor. Esse tipo de situação, com certa margem de tolerância, existiu até pouco tempo.

A religião cedeu espaço para concepções como o marxismo leninismo, com uma outra cosmovisão. Isso foi rompido na segunda metade do século XX. Em certo sentido, houve um rompimento tanto para as versões crentes quanto para as não crentes, que defendiam o progresso racional. Desde o Iluminismo até o século XX essas teorias coexistiam. Havia uma influência profunda sobre as cidades cristãs que resultou dessa ideia de progresso.

Ética da autenticidade

No Hemisfério Norte nas décadas de 1960 e 1970 se disseminou a ética da autenticidade. O processo começou no século XVIII e sua ideia básica é que somos todos seres humanos e temos nossa própria forma de sermos humanos. O que devemos fazer é realizar nossa humanidade de modo geral, mas de modo específico e pessoal. A questão é qual é a direção que darei à minha caminhada, que identidade assumirei? Minha identidade será suprimida ou eliminada porque sou forçado a me conformar? Ou poderei realizar minha identidade, questionou Taylor.

Esse conjunto de concepções teve muito poder entre minorias do século XIX. A arte pós-romântica de modo geral enfatizava a originalidade, e a ética da autenticidade é um reflexo. Fazer algo original era louvável. Na década de 1960 do século XX, essa ética se tornou generaliza da entre a população. Nos EUA as pessoas começaram a dizer que deveria ser feito algo que mostrasse o que a pessoa realmente era. Tal ética minoritária tornou-se, desse modo, generalizada. Talvez isso tenha ocorrido primeiro nos EUA, se espalhando no mundo ocidental rapidamente.

Essa autenticidade é uma ética acompanhada na década de 1960 por uma revolução nos costumes sexuais. As pessoas deixaram de lado a moralidade sexual anterior e pediram mais margem de liberdade e contestação. A revolução sexual se vinculou diretamente à questão da autenticidade. As pessoas defendiam comportamentos sexuais com base nesse pensamento. Na década de 1970 a linguagem para defender a causa da libertação gay foi muito particular. No início do século XX, se alguém dissesse que era negativo fazer as pessoas sofrerem por serem homossexuais, seriam mal vistas.

Pertença despedaçada

Igualmente, as pessoas iniciaram a buscar por si mesmas sua orientação espiritual, mas sem querer um pertencimento institucional. As pessoas pensam que seu compromisso com o Estado é diferente daquele que têm com a Igreja. A pertença geral se despedaça e o sujeito se insere em diferentes âmbitos da ética, política e comportamento individual.

O resultado disso, em termos religiosos, é uma cultura na qual as pessoas, sobretudo os jovens, se veem como pessoas em busca. Buscam um caminho espiritual. Dizem que querem seguir esse caminho porque ele as atrai. “Para a nova geração, é estranho concordar com certos dogmas de um credo. Para grande parte da população do Hemisfério Norte, sobretudo, há uma grande mudança cultural em curso. Um deslocamento no próprio lugar da religião na vida das pessoas, uma mudança na forma como crer e não crer é colocada”, observou Taylor.

Ordem impessoal e sincretismo

Para os jovens não há só duas opções religiosas. Elas são muitas e crescem em número. O caminho aumenta e é adotado com elementos sincréticos, inclusive. Esse não é o tipo de mundo do passado, em que as opções religiosas eram organizadas. Segundo Taylor, vivemos num mundo “no qual as pessoas buscam sua senda espiritual, e elas se envolvem na busca por conta própria”.

Hoje se pensa que o cosmo não tem uma finalidade, e que pode ser explicado pela causação eficiente. Esse mundo não apoia qualquer crença metafísica ou religiosa sobre o universo. Sabemos que nossas sociedades foram construídas pelos sujeitos que nela vivem. Podemos olhar para trás e apontar que essas sociedades foram construídas. Existe a percepção de viver em uma ordem impessoal - o imaginário social moderno da moldura imanente. O primeiro desafio provém dessa situação, observa o filósofo: muitas pessoas que acompanham isso são mais velhas, e se sentem à vontade no molde anterior, no qual o pertencimento religioso estava ligado ao pertencimento social e político. Elas se sentem profundamente abaladas, insultadas e preocupadas com esse fenômeno da ética da autenticidade e suas repercussões.

Alguns desses jovens, de forma compreensível, veem a fé cristã com outro olhar. Assim, querem fazer parte da fé, mas às identidades religiosas é difícil de aderir. Leia-se nesse contexto o fundamentalismo protestante no Brasil, que toma a Bíblia como literalmente verdadeira. Nos EUA se dá algo semelhante. Parte da hostilidade da política americana provém da batalha entre pessoas que querem se apegar à forma anterior da religião, que pretensamente demonstram um compromisso maior com o país. A identidade americana tem a ver com esse tipo de cristianismo.
Do lado católico, temos uma hierarquia que, de modo geral, se colocou contra esse tipo de autocompreensão. Temos essa rejeição de que muitos católicos têm essa nova orientação e convivem com outros católicos com outras compreensões.

O primeiro grande desafio das igrejas cristãs é como superar essa guerra civil virtual. A Igreja Católica tem dificuldade de falar, reagir, responder, agir e lidar com jovens que estão em busca. Há um hiato que precisa ser superado entre esses jovens e a instituição.

Religião como marcador político

Outro desafio que surge dessa ruptura das formas antigas de pertencimento é quase o oposto: quando a religião se torna central para o pertencimento político. De uma forma estranha isso pode acontecer sem ser acompanhado por qualquer compromisso profundo da fé ou da prática de confissões específicas. Isso remonta ao passado, nos últimos séculos, quando havia uma mobilização política a partir da qual a sociedade se pautava desde tempos imemoriais. No nacionalismo moderno, vemos o esforço de mobilizar as pessoas a se agruparem em torno de ideias comuns. Isso deve ser tornado com o compromisso central dessa sociedade. Muitas vezes a mobilização se coloca em termos de marcadores religiosos.

A religião foi entronizada como marcador político. É o caso de um certo tipo de islamismo, que não representa o Islã, em absoluto. É como se a honra do profeta tivesse sido ultrajada em função de algumas atitudes de alguns fieis. Isso distorce profundamente a religião, tirando dela grande parte de sua tradição. No Senegal 95% das pessoas são muçulmanas, e não aceitam dinheiro da Arábia Saudita para construir escolas, exemplificou Taylor. Os senegaleses convivem bem com a minoria de 5% de católicos. Como poderemos ter abertura e ver o que há de bom nas outras crenças? Ainda não estamos à altura desse desafio.


Uma fé mais autêntica

"O terceiro desafio surge a partir da situação que descrevi antes, na qual temos as três ramificações da secularização. Temos o desenvolvimento de um Estado neutro, além do fenômeno da mobilização religiosa que cria muitos conflitos. Nas democracias temos o problema de erigir leis laicistas, laicas. Temos que desenvolver formas de laicidade com as quais possamos mesmo conviver sem que qualquer filosofia específica assuma o controle e reprima outras", disse Taylor.

Segundo ele, "o desafio da convivência deve ser enfrentado em termos nacionais e internacionais, com liberdade para se praticar o tipo de religião que se deseja professar. Vivemos numa era nova. Não podemos interpretar esses fenômenos com as categorias anteriores".

“É preciso uma fé mais autêntica. E precisamos compreender que a fé é uma jornada, uma caminhada”, completou Taylor.

O filósofo explicou, também, a diferença entre os termos secularização e laicização. Por secularização devemos entender um processo social, com um Estado neutro, que oferece uma explicação factual da evolução da sociedade. Já a laicização é uma proposta legal de estabelecer estruturas jurídicas em que haja papéis claros para a religião.


Charles Taylor: características e interfaces da secularização nos dias de hoje




As características e interfaces da secularização foram o tema abordado pelo filósofo canadense Charles Taylor no quarto dia de sua jornada na Unisinos, em 29-04-2013, às 14h30min, a convite do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A reportagem é de Márcia Junges.

Autor do mundialmente conhecido Uma era secular (São Leopoldo: Unisnos, 2010), Taylor afirmou que a modernidade tem em seu bojo a secularização no sentido do declínio da fé e da sua prática. Havia duas formas de conceber isso, parecendo um processo inevitável. Primeiramente, a ciência mostra que as ideias religiosas não tinham mais validade, e que o desenvolvimento da ciência eliminaria a fé religiosa. Em segundo lugar, as religiões do passado estavam ligadas a certas formas sociais, a comunidades hierárquicas. Pensava-se que quando essas estruturas desaparecessem, a religião desaparecia junto. “Meu livro foi uma tentativa de iniciar um novo conjunto de ideias, e pressupõe a bancarrota da tese original da secularização e pergunta como a entendemos hoje”, disse aos ouvintes na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros.

E acrescentou: “Um aspecto do que quero dizer é que a própria secularização é mais complexa e multifacetada do que simplesmente o declínio da fé ou da prática religiosa. Tem havido dados significativos no Hemisfério Norte desses aspectos, mas isso não se encaixa com a modernidade porque há uma diferença tremenda na forma da prática e fé religiosa entre os vários países dessa parte do mundo, que eram todos modernos e tinham características progressivas. O impacto sobre a vida religiosa disso foi muito diferenciado”.

Entretanto, continua Taylor, sua obra é uma tentativa de ampliar o quadro do que a secularização poderia significar. “Sugeri que ela não era apenas o declínio da fé religiosa, mas havia outros aspectos em jogo”. Havia outras facetas da vida dos países que poderiam ser vistas em termos de secularização, como a evolução de uma forma de sociedade em que se concebe como normal que o Estado não esteja alinhado com nenhuma confissão específica, ou como era no passado nos EUA, com o cristianismo protestante. O Estado, portanto, não está mais alinhado com ideologia leiga ou antirreligiosa.

A secularização era uma tentativa de se ter uma sociedade na qual as opções metafísicas e religiosas fossem livres e iguais e houvesse liberdade de expressão. Taylor ressalvou que a obra Uma era secular foi escrita tendo como horizonte o Hemisfério Norte, e não cobre as singularidades da Índia, China e sociedades islâmicas, por exemplo.

Ética da autenticidade

Outra dimensão da secularização se pode descrever como a situação cambiante da vida religiosa na sociedade, observa Taylor. Essa nova forma de olhar a religião muda em termos de que cessamos de entender esses desdobramentos de modo linear. Está claro que o tipo de vida religiosa da Idade Média iria mudar de forma radical, entre católicos e protestantes. Floresceu então uma nova forma de religião depois desse momento histórico. “Novos desafios vieram, e isso será infinito”, observou.

Nos séculos XVII e XVIII entra em voga uma noção de desconexão da ordem cósmica, e os pensadores sugerem que as pessoas vivem em sociedade graças aos contratos que firmam para se agruparem. Isso abriu a possibilidade para que se dissesse que muitas das exigências das igrejas eram desnecessárias e inválidas - particularmente as lutas da Igreja Católica ocorreram a partir dessa constatação. Na verdade, muitas vezes, a Igreja Católica combatia os protestantes que iam nessa direção. Se dá, assim, um solapamento das formas religiosas, que se reconstruíram no presente. Esse foi o primeiro impulso moral e político da secularização.

No século XIX, depois que o pensamento religioso inicial tinha se estruturado em torno do design inteligente, com a ideia de um criador benevolente, essa concepção e Deus como o projetista de um universo perfeitamente benigno, vem a teoria da evolução de Darwin. Outra crise surge mais recentemente, e que afeta a nós hoje, no Hemisfério Norte: trata-se do desenvolvimento na segunda metade do século XX do que eu chamaria de ética da autenticidade. É uma transposição ou mudança numa estrutura do marco de referência ético ocidental, no qual concebemos que o ser humano deve realizar certas essencialidades. A chave para isso é a razão.

O cristianismo introduziu um modelo de igualdade entre todos os seres humanos, o que também foi acompanhado por um modelo de diversidade. São Paulo fala nos carismas, e os portadores desses dons são iguais, juntos na mesma igreja. Não se trata apenas de sermos seres humanos, mas de prestar atenção à forma própria, particular, de ser humano, os critérios culturais particulares que não fogem da questão ética.

O que é notável é que na segunda metade do século XX essa ética, que costumava ser das elites culturais desde o fim do século XVIII, passa a ser difundida no Hemisfério Norte. Nos EUA as pessoas falam de ser quem se é de verdade, e isso se tornou algo muito fundamental na sociedade atual. Isso se desdobrou na moralidade dos costumes sexuais, como na década de 1960 do século XX. Para os defensores de causas como o casamento gay, por exemplo, as identidades devem ser respeitadas. Para eles, eliminar as diferenças é inaceitável.

Buscadores, espiritualidade e não religiosidade

As pessoas se concebem como buscadoras: não há mais uma sociedade com uma só confissão. Pelo contrário, a diversificação é notável, na qual as pessoas jovens buscam outras coisas que seus pais sequer sonharam antigamente. Em meio a essa cultura híbrida, se está consciente de que novas possibilidades são acrescentadas o tempo todo. Muitas pessoas se veem como espiritualizadas, mas não religiosas. O que está na mente de alguém assim? As pessoas não querem que alguém diga o que devem fazer e pensar, mas estão buscando algum tipo de direção espiritual e prática que permita se mover em direção daquela prática espiritual. Esse foi um dos questionamentos mais recentes, assinalou o filósofo.

Outro aspecto apontado por Taylor é que no Hemisfério Norte existe uma cisão entre as pessoas que se envolveram em alguma busca espiritual e entraram alguma espécie de cristianismo e outras que tomaram uma direção diversa. Há pessoas que ainda querem viver o cristianismo que seus pais e avós professavam. Há um hiato enorme, diz Taylor, que muitas vezes se expressa em termos de hostilidade. A própria Igreja Católica está cindida. A situação de crer e não crer é muito diferente do passado. No século XVIII havia a polaridade entre católicos e protestantes. Atualmente, isso não se reconhece entre os jovens, no qual o número de possibilidades não está definido com clareza. É uma secularização que não implica em sociedade rígida em termos de pertença religiosa. Isso coloca desafios tremendos.

Outro desafio que está surgindo no bojo do novo desenvolvimento. Para Taylor, “no terceiro tipo de secularização você desconecta o que havia antes. Seu pertencimento político não tem nada a ver com a pertença religiosa. Há outro tipo de conexão e reconexão que está acontecendo, inclusive fora do Atlântico Norte”. O pertencimento confessional e político se torna um marcador em torno do qual as pessoas se agrupam. É o caso da Iugoslávia e da Irlanda do Norte, destacou.

Sobre o pentecostalismo, o filósofo mencionou que no início do século XX percebemos elementos muito ortodoxos e conectados com o passado. “Esse tipo de religião é tremendamente inventivo e abre espaço para as necessidades religiosas das pessoas em formas diversas. Sua organização não é tão hierárquica quanto a da Igreja Católica, por exemplo. E o pentecostalismo está crescendo tanto que tem quase meio bilhão de adeptos no mundo de hoje”. Isso é um produto desse tipo de modernidade secularizada, onde o peso e importância de igrejas com longa história estabelecida estão sendo questionadas. Para os adeptos dessas religiões, é importante encontrar seu próprio caminho e salvação. Existe sempre a perspectiva de encontrar uma salvação pessoal.

No momento do debate com o público, o teólogo Roque Junges, professor da Unisinos, apontou que a religião tem sido bem mais experiencial e sincrética, sobretudo no Brasil. Falou, ainda, sobre o peso da bancada evangélica em nosso país, solicitando que Taylor fizesse ponderações sobre esses aspectos. Assim, o filósofo refletiu sobre esse tema dizendo que o uso da religião como ferramenta de mobilização política é bastante perigoso. “Isso distorce a religião”. Quanto ao sincretismo, mencionou que por muitos séculos na Índia havia um sincretismo claro e que convivia de forma harmoniosa. “Penso que o clamor contra o sincretismo leva a distorções como a violência. E isso é desnecessário”, argumentou.

Respondendo à pergunta de Taís Pereira, doutoranda do curso de Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, Taylor argumentou que o conceito de sagrado de Durkheim chegou ao limite em nossa era. “As sociedades antes eram muito unidas em torno do sagrado. Depois, deu-se uma guinada saindo do único tipo de sagrado que as unia. Assim, a teoria desse sociólogo chegou a um ponto em que a realidade se distanciou dela”.

Democracia e secularização

O desenvolvimento de algumas tecnologias aumenta o poder de certas ilusões, como o de que podemos facilmente podemos criar seres humanos através da engenharia genética. Isso é uma espécie de contrassenso, pontuou Taylor. “Os genes funcionam de forma muito mais holística”. Por outro lado, a revolução nas comunicações é outro aspecto importante da tecnologia, disse. Seus efeitos são importantes politicamente. Mas existe um incentivo a uma irresponsabilidade total, em função do anonimato a que se podem filiar as pessoas.

O filósofo canadense recuperou, também, a gênese do uso da palavra secularização, que foi adotada pela primeira vez na Alemanha, no século XVI. Ele pontuou que Herder e Humbolt valeram-se desse conceito, e disse que era possível, sim, pensar que as ideias de Paulo de Tarso sobre igualdade tenham sido transportas para o campo político através da democracia.




Peter Berger e a religião



"A reflexão sociológica de Peter Berger sobre a religião é extremamente rica, complexa e abrangente. Este autor trabalha com recursos teóricos de diversas procedências: sociologia, antropologia, filosofia, teologia, psicologia, biologia etc. Qualquer tentativa de síntese vem marcada por limites e imprecisões".

A análise é de Faustino Teixeira, teólogo, professor e pesquisador do PPG em Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora - MG, em artigo publicado em seu blog,  13-04-2010

Nota da IHU On-Line: Reproduzimos o artigo em virtude da morte de Peter Berger, sociólogo e teólogo luterano, em 27 de junho de 2017.


Introdução
No âmbito das pesquisas de sociologia da religião realizadas no mundo anglo-saxão, a extensa obra de Peter Berger revela-se de fundamental importância. Trata-se de um autor contemporâneo, mas que pode ser inserido entre os grandes clássicos da sociologia da religião. Nascido em Viena no ano de 1929, Peter Berger emigra para os Estados Unidos ao final da segunda guerra mundial, depois de passar um período de formação na Inglaterra. Ao início, intencionava aceder ao pastorado luterano, projeto que será abandonado depois dos estudos de filosofia e sociologia realizados na New Schooll for Social Research de Nova York. Neste centro de reflexão fará contato com autores que pontuarão decisivamente sua reflexão sociológica, como Alfred Schutz, Carl Mayer, Albert Salomon e Thomas Luckmann, seu colega de estudos.

O interesse pela sociologia da religião manifesta-se na temática de sua tese doutoral, defendida em 1954, onde abordou o seguinte tema: “Da seita à igreja: uma interpretação sociológica do Movimento Bahai”. Em sua carreira acadêmica passará por diversos centros de formação, dentre os quais a Universidade de Georgia, a Academia Evangélica de Bad Boll (Alemanha), Hartford Seminary Fundation, New Schooll for Social Research e Brooklyn College. No ano de 1980 obtém uma cátedra no Boston College e em seguida na Boston University, onde permanece atualmente como pesquisador.

As importantes reflexões de Berger a propósito da natureza da realidade social, bem como suas incursões no campo da sociologia da religião foram gestadas entre os anos de 1963 e 1970, quando então ensinava na New Schooll for Social Research e no Brooklyn College (Nova York). São deste período suas importantes obras: A construção social da realidade (1966 – escrito com Thomas Luckmann), O dossel sagrado (1969) e Rumor de Anjos (1969). Retornará posteriormente ao tema em duas outras obras: O imperativo herético (1979) e Uma glória remota (1992). [1]

O tema da religião ocupa um lugar de destaque na vasta obra de Peter Berger, mas sua contribuição teórica estende-se para outros setores da teoria sociológica em geral [2]. Segundo Cecília Mariz, “o grande mérito de sua teoria é oferecer um aparato conceitual capaz de integrar tanto a análise de problemas no nível micro da psicologia social com os do nível macro das ideologias e mudança cultural em geral” [3]. Trata-se de uma reflexão criativa, marcada por pressupostos teóricos diversificados. Quanto aos fundamentos do conhecimento na vida diária (sociologia do conhecimento), percebe-se o influxo de Alfred Schutz. Com respeito aos dados antropológicos, verifica-se a influência dos primeiros escritos de Karl Marx, bem como as implicações antropológicas da biologia humana, presentes nas obras de Helmuth Plessner e Arnold Gehlen. Para a elaboração teórica da natureza da realidade social, foram de fundamental importância os aportes de Durkheim, retomados numa perspectiva dialética com o influxo de Marx e a contribuição de Weber. Este complexo quadro teórico foi ainda complementado em âmbito da sócio-psicologia pela presença da reflexão de George Herbert Mead e da escola simbólico - interacionista da sociologia americana. [4]


1. O processo dialético fundamental da sociedade
A singular elaboração da teoria sociológica de Berger e as pistas fundamentais para a afirmação de sua sociologia da religião encontram-se delineadas nos livros de sua primeira fase acadêmica, ou seja, A construção social da realidade, O dossel sagrado e Um rumor de anjos. É sobretudo nestes trabalhos que o autor traduz sua concepção do processo dialético fundamental da sociedade. Esta tarefa é vista por ele como típica de uma sociologia do conhecimento [5]. Para Berger, a sociedade é um fenômeno eminentemente dialético, que traduz simultaneamente a dimensão de realidade produzida pelo sujeito, mas que reage continuamente ao seu produtor.

Para a elaboração desta reflexão, Berger serve-se de uma “conjunção sutil e original” de Marx, Durkheim e Weber. Os conceitos de auto-produção humana mediante a externalização (ou exteriorização) e da objetivação são tomados do jovem Marx, que proporcionou a aplicação de tais conceitos hegelianos aos fenômenos coletivos. O influxo de Durkheim se fará sentir na sua abordagem da objetividade do mundo institucional. Tal abordagem será, porém, equilibrada com a interação do significado subjetivo da ação. E aqui entra a presença de Weber, mostrando que em toda a objetividade do mundo institucional há a participação da significatividade humana que a introduziu. Com base neste autor, Berger sublinhará que esta objetividade é “produzida e construída pelo homem”. Esta peculiar síntese teórica das abordagens dos clássicos da sociologia, favorece a Berger a manutenção da intenção fundamental dos autores analisados, sem cair, porém, em dois possíveis riscos: a distorção idealista do fenômeno social ou a reificação sociológica. [6] Segundo Berger, “o mundo institucional é a atividade humana objetivada, e isso em cada instituição particular. Noutras palavras, apesar da objetividade que marca o mundo social na experiência humana ele não adquire por isso um status ontológico à parte da atividade humana que o introduziu” [7].

O processo dialético da sociedade define-se para Berger em três momentos: externalização, objetivação e internalização. A primeira etapa, da externalização, indica o processo de “contínua efusão do ser humano sobre o mundo, quer na atividade física quer na atividade mental dos homens” [8]. Trata-se do momento de expressão do ser humano no mundo, de ruptura de seu isolamento mediante o ato da imaginação e da criação. Esta dinâmica de exteriorização corresponde para Berger a uma necessidade antropológica fundamental. O homo sapiens, diferentemente de outros mamíferos superiores, encontra-se permanentemente diante de um mundo aberto, provocado ao desafio contínuo de “tornar-se homem”, desenvolvendo sua personalidade e assimilando a cultura.

A segunda etapa expressa o momento de objetivação do mundo humanamente produzido. Nesta etapa, os produtos exteriorizados ganham autonomia com respeito ao seu criador, adquirindo um grau de distinção específico. Os instrumentos, valores, regras, leis e instituições produzidos ganham agora um caráter de realidade objetiva, que se revelam opacos para o seu produtor e passam a confrontar-se com ele como um “lá fora” da consciência. Seguindo as pistas abertas por Durkheim, Berger busca sublinhar neste momento o dado da facticidade externa da sociedade, subjetivamente opaca e coercitiva. As operações da sociedade escapam ao entendimento dos sujeitos, e revelam-se coercitivas na forma mesma como se constituem e se impõem como realidade. Para exemplificar sua reflexão, o autor identifica a objetividade que vem caracterizar os elementos não-materiais da cultura: “O homem inventa uma língua e descobre que a sua fala e o seu pensamento são dominados pela gramática. O homem produz valores e verifica que se sente culpado quando os transgride. O homem forja instituições, que o enfrentam como estruturas controladoras e intimidatórias do mundo externo” [9]

Para Berger, é a percepção da sociedade como realidade objetiva que favorece ao ser humano um mundo para habitar. Trata-se da afirmação de um quadro referencial com plausibilidade [10] coletiva. Na visão deste autor, “a própria vida do indivíduo só aparecerá como objetivamente real, a ele próprio e aos outros, localizada no interior de um mundo social que tem o caráter de realidade objetiva” [11]. Para que isto ocorra é necessário um terceiro passo, de internalização desta mesma realidade objetiva. Na visão de Berger, a internalização é o momento do processo dialético onde o mundo social vem reintroduzido na consciência mediante a dinâmica de socialização. Cabe agora ao indivíduo apreender e assumir os diversos elementos do mundo objetivado. [12] Para que esta assunção do mundo objetivado seja realizada com sucesso é necessário que o mesmo seja dotado de sentido para o sujeito. Daí a importância do processo de socialização primária e secundária, que se traduz na “ampla e consistente introdução de um indivíduo no mundo objetivado de uma sociedade ou de um setor dela” [13]. O sucesso desta socialização depende do potencial de simetria que se consegue estabelecer entre o mundo objetivado da sociedade e o mundo subjetivo.

Esta tarefa de construção social do mundo não é, porém, um empreendimento isento de dificuldades. Enquanto processo de ordenação e nomização da experiência ele pressupõe o estabelecimento e manutenção de uma conversação permanente do sujeito com os outros significativos implicados no processo de socialização. A conversação ocupa para Berger um lugar decisivo na afirmação da plausibilidade do mundo socialmente construído. [14] É através dela que ocorre a apropriação do mundo objetivo pelo sujeito, bem como a manutenção deste mundo como real para ele. [15] Como forma de manter viva a conservação da realidade subjetiva, esta conversação deve ser contínua e coerente e, nos momentos de crise, explícita e intensa. Segundo Berger, a manutenção da realidade subjetiva depende essencialmente de estruturas específicas de plausibilidade [16], ou seja, de estruturas que conferem a base social para a conservação da realidade, eliminando o risco dissolvedor da dúvida. É com base em tal plausibilidade que o conhecimento da vida cotidiana pode manter-se como tal. Para exemplificar este dado, Berger indica: “Enquanto meu conhecimento funciona satisfatoriamente em geral estou disposto a suspender qualquer dúvida a respeito dele” [17].

As estruturas de plausibilidade constituem, assim, base social fundamental para a “suspensão da dúvida”. A aplicação desta tese ao campo religioso faculta perceber a importância essencial da comunidade religiosa para a manutenção do sentimento de sua plausibilidade. Recorrendo ao tradicional adágio da teologia católica, extra ecclesiam nulla salus (fora da igreja não há salvação), Berger busca mostrar que o mais difícil não é ter uma experiência de conversão, mas a possibilidade de conservá-la como plausível ao longo do tempo. Quando menciona este axioma, traduz o termo salus não com o seu sentido literal salvação, mas como “a realização empiricamente bem sucedida da conversão”. Nesse sentido, o que garante a permanência da conversão é a recorrente presença e participação, ou seja conversação, no contexto da comunidade religiosa. [18]

O imperativo antropológico de construção de um mundo humano esbarra, porém, na provisoriedade das estruturas que regem a dinâmica cultural, “inerentemente precárias e predestinadas a mudar”. Instaura-se uma tensão entre “o imperativo cultural da estabilidade e o caráter de instabilidade inerente à cultura”. Como indica Berger, o ser humano depara-se com o imperativo de construir um mundo humano, mas enfrenta a grande dificuldade de manter este mundo funcionando satisfatoriamente. [19]

A manutenção da realidade subjetiva do mundo depende assim do “tênue fio da conversação”, daí ser sua continuidade um dos imperativos mais decisivos da ordem social. A inserção positiva no mundo social implica o exercício de uma vida ordenada e significativa. A quebra desta ordenação significa a potencialização da anomia e o risco da perda de sentido. Para fazer frente ao risco da anomia e da ameaça das “situações limite” que podem provocar no sujeito a suspeita da consistência do mundo de sentido socialmente construído, é que a sociedade organiza mecanismos de proteção da ordem social. A manutenção do nomos, ou da ordem significativa, é um dos imperativos essenciais de engenharia social.

Na visão de Berger, a socialização exerce um papel importante de garantia de um consenso duradouro a propósito do oscilante edifício da ordem social. Mas a seu lado devem atuar outros mecanismos fundamentais de manutenção do nomos, entre os quais destaca o processo de legitimação e de controle social. Por legitimação entende Berger “o ‘saber’ socialmente objetivado que serve para explicar e justificar a ordem social” [20]. Trata-se de um processo cognitivo de justificação da ordem institucional, que confere “dignidade normativa” a seus procedimentos práticos. Berger visualiza diferentes níveis de legitimação, entre os quais a legitimação incipiente já presente no processo de transmissão de um sistema de objetivações linguísticas, a legitimação rudimentar das proposições teóricas vigentes nos provérbios e máximas morais, a legitimação das teorias explícitas e a legitimação dos universos simbólicos. Para Berger, é neste último nível que se afirma de forma mais sólida a integração unificadora dos processos sociais. Quanto aos mecanismos de controle social, Berger sublinha por exemplo o papel importante concedido às práticas terapêuticas, ou seja, as “práticas organizadas destinadas a silenciar dúvidas e prevenir lapsos de convicção” [21]. As diversas “agências terapêuticas” são instrumentos importantes de auxílio para a sociedade no encaminhamento daqueles que vivem uma experiência de “dissonância cognitiva”. Estas diversas formas de legitimação e controle social destinam-se na prática “a convencer o povo que aquilo que lhe é dito não é só a coisa sensata mas também a única certa e salutar” [22].

Embora os mecanismos específicos de manutenção do mundo e de afirmação de sua plausibilidade sejam vigorosos, nem sempre eles surtem o efeito esperado. Em sua reflexão, Berger sublinhou que o processo de transmissão do universo simbólico de uma geração para outra é complexo e às vezes problemático. E isto em razão das dificuldades que acompanham a realização da socialização. Nem todos “habitam” o universo transmitido da mesma maneira. Há peculiaridades e variações no processo de concepção do universo, e nem sempre a internalização corresponde ao desejado. Este problema intensifica-se sobretudo quando emergem as dissonâncias cognitivas, ou seja, quando “versões divergentes do universo simbólico” passam a ser partilhadas pelos “habitantes” de um mesmo ambiente. Esta disparidade pode ocorrer quando no próprio universo emergem grupos minoritários de dissidentes (minorias cognitivas), mas também quando uma sociedade defronta-se com outra marcada por diverso universo simbólico. No primeiro caso, a ameaça pode ser contida por medidas de controle social, como a reafirmação da realidade tida como oficial contra os competidores. A questão se complexifica no segundo caso, pois a visibilidade de um outro universo simbólico traduz na prática a constatação empírica da não inevitabilidade do universo particular. Neste caso o “enfrentamento” exige um mecanismo conceitual mais elaborado [23].


2. Religião e Sociedade
A abordagem sociológica da religião realizada por Berger segue um horizonte de orientação claramente definido pelo autor. Segundo a proposta de sua teoria sociológica, a religião vem entendida “como projeção humana, baseada em infra-estruturas específicas da história humana” [24]. Sem negar o valor de outras abordagens possíveis sobre o tema, como a teológica (que vislumbra a religião sub specie aeternitatis), este autor busca se mover no âmbito da teoria sociológica empírica, para a qual a religião deve ser sempre considerada sub specie temporis.

A compreensão fundamental da sociologia da religião de Berger encontra-se presente no seu livro O dossel sagrado, publicado originalmente em 1967. Neste livro, o autor busca aplicar sua teoria da construção social da realidade ao tema da religião. Para Berger, a religião é um dos sistemas de símbolos fundamentais dos seres humanos. Trata-se de um “edifício de representação simbólica” elaborado pelos seres humanos, e que para eles parece elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana, garantindo-lhe uma nomização peculiar. Entendida como um empreendimento humano de cosmificação sagrada, que transcende e inclui o ser humano, a religião exerce de fato para os que a ela aderem uma ordenação da realidade, servindo de um potente escudo contra o terror da anomia. Para Berger a religião consiste na “ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo” [25].

A esta dimensão nomizadora da religião vêm acrescentadas por Berger outras funções exercidas pela religião na sociedade. Em primeiro lugar, a função de legitimação. Na visão de Berger, a religião “foi historicamente o instrumento mais amplo e efetivo de legitimação” [26]. A grande eficácia da legitimação religiosa consiste em fundar na realidade transcendente as precárias construções da realidade humanamente construída. [27] Com base nesta relação instaurada, a religião acaba servindo para manter a realidade do mundo socialmente construído. Trata-se para Berger de um processo de alienação, na medida em que as instituições humanas acabam ganhando com a religião um status ontológico de validade suprema. Prejudica-se, assim, a compreensão da relação dialética entre o indivíduo e seu mundo, que acaba ficando ocultada e perdida para a consciência. Em razão desta operação, o indivíduo “ ‘esquece’ que este mundo foi e continua a ser co-produzido por ele” [28].

Em segundo lugar, Berger sublinha a função religiosa de integração das experiências marginais ou limites. A religião exerce um importante papel de integração das experiências anômicas, facultando um significado para as crises biográficas. Há nela uma capacidade única de “situar os fenômenos humanos em um quadro cósmico de referência” [29]. Diante da situação limitada e de impermanência que marca a condição humana, a religião funciona como um dossel sagrado protetor do nomos, possibilitando interpretações que satisfazem não apenas o campo teorético, mas sobretudo aquele da “sustentação interior para enfrentar a crise do sofrimento e da morte” [30]. A teodicéia religiosa ocupa, assim, um lugar fundamental, ao proporcionar a “localização” do sofrimento e da morte. [31]

Berger vislumbrou ainda uma outra função da religião, ou seja, de desalienação. Embora muitas vezes a religião exerça uma influência de justificação da ordem humana, concedendo-lhe uma solidez fundada em razões meta-históricas, ela pode igualmente, e em nome da mesma transcendência, exercer um papel diverso. Sublinhando a unilateralidade de uma certa interpretação marxista, Berger indica a real possibilidade de uma atuação relativizadora da religião sobre as formações precárias da história humana, uma vez que a mesmas são encaradas sub specie aeternitatis. Em afinidade com a dimensão cômica, a religião vem animada de uma “qualidade relativizadora, desmascaradora, desencantadora das pretensões do poder humano”, podendo em situações específicas colocar em questão o status mesmo do mundo empírico. [32]


3. Religião e Modernidade
A reflexão sobre a relação da religião com a modernidade [33] vem ocupando a atenção teórica de Peter Berger desde seus primeiros trabalhos. Em seu livro O dossel sagrado (1967) dedicará três capítulos ao tema da secularização. A atenção teórica do autor volta-se, na ocasião, para a “crise de credibilidade” da religião e o seu deslocamento do horizonte da vida cotidiana de setores significativos da população. Por secularização, o autor entende “o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos” [34]. Em sua visão, a secularização atua em dois níveis: no nível subjetivo da consciência e no nível da sociedade e da cultura. Por um lado, há o processo de privatização da religião, ou seja, sua redução ao domínio do indivíduo ou dos pequenos grupos. Por outro, o processo de pluralismo religioso, resultado da ruptura do monopólio religioso e a instauração de uma situação de competição entre definições distintas da realidade. [35]

Enquanto boa parte da história humana os estabelecimentos religiosos atuaram como monopólios na sociedade, com o controle assegurado do pensamento e da ação, esta situação modifica-se nos tempos modernos com a afirmação da secularização e do pluralismo. O traço característico desta nova situação é a perda da antiga segurança das estruturas religiosas que garantiam a submissão de suas populações. As adesões seguem agora um ritmo voluntário, e não mais decorrente de uma imposição de autoridade. Berger mostrou com acuidade como as antigas estruturas de plausibilidade, que garantiam o ancoradouro das visões de mundo em certezas subjetivas, acabam se enfraquecendo na medida em que vai se instaurando a moderna sociedade industrial.

“O indivíduo moderno existe numa pluralidade de mundos migrando de um lado a outro entre estruturas de plausibilidade rivais e muitas vezes contraditórias, cada uma sendo enfraquecida pelo simples fato de sua coexistência involuntária com outras estruturas de plausibilidade. Além dos ‘outros significantes’ que confirmam a realidade, há sempre e em toda a parte ‘aqueles outros’, incômodos refutadores, descrentes – talvez o incômodo moderno por excelência” [36].

Estas reflexões de Berger sobre os temas da secularização e do pluralismo, por ele considerados “fenômenos intimamente aparentados”, ganharam continuidade em obras posteriores como O imperativo herético (1979). Nesta obra, Berger desenvolve a complexa questão da modernidade como universalização da heresia. Em sua visão, a consciência moderna vem acompanhada de uma tendência “potencialmente relativizante” [37]. Com a pluralidade de mundividências e a decorrente multiplicação de opções que se colocam para o sujeito moderno, torna-se extremamente difícil a garantia das certezas subjetivas. A pluralização institucional da modernidade provoca uma instabilidade das estruturas de plausibilidade. No lugar das antigas certezas religiosas, instaura-se a dúvida. O enfraquecimento das estruturas de plausibilidade provoca a perda de evidência do mundo religioso, anteriormente garantido pela tradição, e isto repercute no âmbito da consciência subjetiva. O que antes era considerado realidade evidente, só pode ser agora atingido mediante um esforço deliberado. Na modernidade a escolha (heresia) torna-se um imperativo. [38]

Mas sua reflexão atual ganha uma elaboração mais aperfeiçoada ao tratar da relação entre modernidade e religião. Vale destacar sua posição mais complexa e nuançada sobre a teoria da secularização. [39] Para Berger, a ideia tradicional de que a modernização leva necessariamente ao declínio da religião encontra resistências bem vivas no campo empírico contemporâneo. Ele admite, por um lado, os efeitos secularizantes que acompanharam a modernização, ainda que observados de forma diversificada. Sublinha, porém, a simultaneidade da presença de vigorosos movimentos de contra-secularização. Aprofundando a questão dos dois níveis de atuação da secularização, o societal e o da consciência individual, destaca o dado de sua desvinculação:

“Algumas instituições religiosas perderam poder e influência em muitas sociedades, mas crenças e práticas religiosas antigas ou novas permaneceram na vida das pessoas, às vezes assumindo novas formas institucionais e às vezes levando a grandes explosões de fervor religioso. Inversamente, instituições religiosamente identificadas podem desempenhar um papel social ou político mesmo quando muito poucas pessoas confessam ou praticam a religião que essas instituições representam” [40]

Quando Berger abordou o tema da situação pluralista na sua clássica obra de sociologia da religião, em 1969, reconheceu com pertinência que uma tal situação engendrou não apenas a “era do ecumenismo”, mas igualmente a “era das redescobertas das heranças confessionais” [41]. O pluralismo moderno aciona novos mecanismos de conversação, leva a “sistemas abertos de conhecimento” e possibilita uma “consciência ecumênica”. [42] Mas, ao mesmo tempo, provoca a ênfase de afirmação identitária e de diferenciação. Os desdobramentos teóricos desta questão serão tratados por Berger no seu livro Uma glória remota (1992), onde busca abordar a questão da fé na época do pluralismo. Uma das questões que busca desenvolver ao longo de sua obra refere-se às diversas reações religiosas ao pluralismo. Berger reconhece que o pluralismo faculta um certo grau de tolerância, mas acentua igualmente as dissonâncias cognitivas:

“O pluralismo cria uma condição de incerteza permanente com respeito ao que se deveria crer e ao modo como se deveria viver; mas a mente humana abomina a incerteza, sobretudo no que diz respeito ao que se conta verdadeiramente na vida. Quando o relativismo alcança uma certa intensidade, o absolutismo volta a exercitar um grande fascínio” [43].

Particularizando sua reflexão no domínio das comunidades cristãs, embora sua aplicação caiba a outras comunidades religiosas, Berger aponta três posicionamentos de reação ao pluralismo moderno. Aborda primeiramente a negociação cognitiva. Não há como negar a presença de uma “contaminação cognitiva” que opera no mundo moderno. Nas sociedades pós-tradicionais a conversação, o intercâmbio, a convivência de estilos diversos de vida, valores e crenças, constituem dados incontestáveis. A opção pela negociação cognitiva implica a assunção de uma perspectiva de abertura e diálogo. Trata-se de uma opção desafiadora, mas que pode, segundo Berger, alargar-se de tal forma a conduzir a um difuso relativismo. Experiências teológicas realizadas no campo do diálogo com o mundo moderno, como a teologia liberal protestante, acabaram, segundo Berger, reforçando a dúvida e o laicismo moderno. [44] Para este autor, o desafio maior consiste em garantir as convicções fundamentais, distanciando-se seja do risco do relativismo como dos falsos absolutismos.

Uma outra reação possível ao pluralismo vem identificada por Berger com a capitulação cognitiva. Trata-se de uma escolha que evita a dolorosa troca de concessões recíprocas. A título de simplificação do trabalho cognitivo alça-se a bandeira branca da rendição identitária. O resultado imediato é um alívio cognitivo, mas com consequências bem previsíveis. Acaba-se aceitando com reduzidas reservas o espírito da época. Para Berger, a teologia da morte de Deus, presente no cristianismo americano, significou um estilo específico de capitulação ao laicismo moderno. [45]

Uma terceira reação ao pluralismo, muito recorrente no atual momento histórico, é a redução cognitiva. Trata-se de uma perspectiva precisa de desafio ao risco da dúvida, com o intuito de reafirmação ortodoxa. Esta escolha pode tomar duas formas precisas. Pode ocorrer como redução cognitiva defensiva ou ofensiva. No primeiro caso, manifesta-se como opção em favor de um fechamento comunitário. Face ao risco da dissolvência plural, opta-se pela estratégia do gheto. Neste caso, trata-se de preservar a todo custo uma sub-cultura e exorcizar a contaminação cognitiva do pluralismo. Na visão de seus aderentes, “basta deixar uma pequena fissura e o vento impetuoso da cultura pluralista entra assoviando”. [46] No segundo caso, adota-se a estratégia da cruzada, ou seja, o caminho da reconquista da sociedade em nome da tradição religiosa particular.

O fascínio que os diversos fundamentalismos exercem sobre as pessoas hoje em dia encontra certa explicação no clima de incerteza e insegurança relacionados com a dinâmica do pluralismo moderno. O fundamentalismo é a expressão de uma “tradição sitiada” e o clamor pela afirmação de um absoluto ameaçado. Há na base dos fundamentalismos uma “forte paixão religiosa” e uma reação viva e substantiva contra as forças secularizantes. Berger tem razão quando sustenta que “na cena religiosa internacional, são os movimentos conservadores, ortodoxos ou tradicionalistas que estão crescendo em quase toda parte. Esses movimentos são justamente aqueles que rejeitaram o aggiornamento à modernidade tal como é definida pelos intelectuais progressistas” [47].


4. Os rumores da transcendência
Retomando atualmente a sua antiga proposta de “relativizar os relativizadores”, Peter Berger contesta os pensadores mais radicais do iluminismo e seus descendentes intelectuais. Para estes grupos de analistas, a modernidade levaria inexoravelmente ao declínio da religião. O que se percebe, entretanto, é uma vigorosa presença da religião no mundo contemporâneo e, como afirma Berger, “não há razão para pensar que o mundo do século XXI será menos religioso do que o mundo atual” [48].

Ao analisar este cenário religioso, Berger visualiza a presença de duas grandes forças florescentes: a islâmica e a evangélica. Dos diversos movimentos religiosos em curso, estes dois apresentam-se como os mais dinâmicos , embora distintos quanto ao conteúdo religioso e à presença no mundo. Apresentam em comum não apenas uma “inspiração inequivocamente religiosa”, mas a proposta de reelaboração da identidade e a promessa segura ao apelo generalizado por segurança e certeza cognitivo-existencial. Embora o termo fundamentalismo não possa ser aplicado pertinentemente a tais movimentos, eles apresentam características que se aproximam do fenômeno, como a “forte paixão religiosa, um desafio ao que foi tido como o Zeitgeist, e uma volta às fontes tradicionais de autoridade religiosa” [49].

A vigorosa presença da religião no mundo contemporâneo não exclui a existência de bolsões secularizadores que, segundo Berger, afirmam-se na Europa Ocidental e na cultura de elite globalizada. A tradicional teoria da secularização encontra guarita nos índices europeus de crenças expressadas e de comportamento eclesial. Esta teoria vigora também no mundo da academia, afirmando-se como uma “subcultura internacional”. Trata-se de uma visão partilhada por certa elite intelectual, composta não apenas por sociólogos e antropólogos da religião, mas por outros atores sociais influentes e responsáveis pela definição “oficial” da realidade [50].

Os dados empíricos confirmam, porém, a tradicional tese de Durkheim, que indica a presença de algo eterno na religião e o equívoco presente entre aqueles que a consideram uma realidade meramente ilusória. Mesmo num período de forte afirmação secularizadora, no ano de 1969, Berger já vislumbrava a presença de sinais de transcendência na sociedade moderna. Os sinais tornaram-se hoje rumores que desafiam o olhar de qualquer analista que queira de fato perceber com riqueza a realidade.

“O impulso religioso, a busca de um sentido que transcenda o espaço limitado da existência empírica neste mundo, tem sido uma característica perene da humanidade (isto é uma afirmação antropológica, e não teológica – um filósofo agnóstico ou mesmo ateu pode muito bem concordar com ela). Seria necessário algo como uma mutação de espécie para suprimir para sempre esse impulso”. [51]



Conclusão
A reflexão sociológica de Peter Berger sobre a religião é extremamente rica, complexa e abrangente. Este autor trabalha com recursos teóricos de diversas procedências: sociologia, antropologia, filosofia, teologia, psicologia, biologia etc. Qualquer tentativa de síntese vem marcada por limites e imprecisões. O que se tentou apresentar aqui foi apenas um breve esboço de alguns dos traços importantes de sua abordagem sociológica da religião. Há que reconhecer que o pensamento deste autor é objeto de diversificados questionamentos, enquanto teórico da sociologia [52], sendo que as críticas mais contundentes referem-se à sua visão política conservadora. A pertinência das críticas não pode, porém, apagar o valor de suas reflexões, que permanecem válidas e atuais, ainda que controvertidas. O horizonte do debate, da discussão e da crítica permanece aberto. Mas não há como negar a importância de sua contribuição para a reflexão sobre o tema da religião no mundo contemporâneo.

Notas:

[1] Tomaremos como base da reflexão as traduções da obra de Berger para o português ou o italiano: Peter L. BERGER & Thomas LUCKMANN. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1973, Peter L. BERGER. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985; Peter L. BERGER. Rumor de anjos: a sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1997, Peter L. BERGER. L´imperativo eretico: possibilità contemporanee di affermazione religiosa. Torino: Elle Di Ci, 1987; Peter L. BERGER. Una gloria remota: avere fede nell´epoca del pluralismo. Bologna: Il Mulino, 1994.

[2] Dentre outras obras podem ser aqui mencionadas: Peter L. BERGER. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. Petrópolis: Vozes, 1973; Peter L. BERGER & Brigitte BERGER. Sociologia: la dimensione sociale della vita quotidiana. Bologna: Il Mulino, 1995; Peter L. BERGER. Le piramidi del sacrificio: etica politica e trasformazione sociale. Torino: Einaldi, 1981; Peter L. BERGER. Homo ridens: la dimensione comica dell´esperienza umana. Bologna: Il Mulino, 1999.

[3] Cecília Loreto MARIZ. Peter Berger: uma visão plausível da religião. In: Francisco Cartaxo ROLIM (Org.). A religião numa sociedade em transformação. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 91.

[4] Peter L. BERGER. A construção social da realidade. Op.cit., p. 31-32.

[5] Para Berger, a sociologia do conhecimento tem por objeto não somente a “multiplicidade empírica do ‘conhecimento’ nas sociedades humanas”, mas também os “processos pelos quais qualquer corpo de ‘conhecimento’ chega a ser socialmente estabelecido como ‘realidade’”: Id. A construção social da realidade, p. 13-14 e 30.

[6] Id. O dossel sagrado. Op.cit., p. 16.

[7] Id. A construção social da realidade, p. 87.

[8] Id. O dossel sagrado, p. 16 e tb. 17-22.

[9] Id. O dossel sagrado, p. 22-23.

[10] Trata-se de um conceito fundamental na obra de Berger, apropriado da sociologia do conhecimento. Segundo Berger, “uma das proposições fundamentais da sociologia do conhecimento é que a plausibilidade, no sentido daquilo que as pessoas realmente acham digno de fé, das idéias sobre a realidade depende do suporte social que estas idéias recebem”: Id. Rumor de anjos, p. 65. Para que uma concepção de mundo permaneça aceitável para o sujeito, é necessário que o mesmo permaneça inserido numa “estrutura de plausibilidade” que reforce, mediante a convesa, a afirmação deste mundo.

[11] Id. O dossel sagrado, p. 26.

[12] Id. O dossel sagrado, p. 28 e Id. A construção social da realidade, p. 173-174. Para sua reflexão sobre o tema da internalização (ou interiorização) Berger serviu-se, sobretudo, do aporte teórico de George Herbert Mead e da escola simbólico-interacionista da sociologia americana.

[13] Id. A construção social da realidade, p. 175.

[14] No quadro teórico de Berger, os termos “conversa” ou “aparelho de conversa” encontram um lugar de destaque. Em sua visão, é mediante a conversa, tomada “no sentido mais vasto do termo, que construímos e fazemos prosseguir nossa visão sobre o mundo”: Peter L. BERGER. Rumor de anjos, p. 66 Id. A construção social da realidade, 202-204; Id. O dossel sagrado, p. 29-30.

[15] Este “aparelho de conversa” pode também, segundo Berger, modificar e reconstruir a realidade subjetiva. É o que ocorre, por exemplo, na experiência da conversão (alternação), quando o sujeito reorganiza o seu aparato conversacional com outros novos significativos. Cf. Peter L. BERGER. A construção social da realidade, p. 211. Para uma boa aplicação da reflexão de Berger ao tema da conversão cf. Rubem ALVES. Protestantismo e repressão. São Paulo: Ática, 1979, p. 50-81.

[16] Id. A construção social da realidade, p. 205-206; Id. Rumor de anjos, p. 65-66.

[17] Id. A construção social da realidade, p. 65.

[18] Id. A construção social da realidade, p. 209-210. Não há como deixar de lembrar a aqui a influência de Durkheim, para o qual “as crenças só são ativas quando compartilhadas”. Para este clássico da sociologia, não é o simples esforço pessoal que mantém acesa a conservação das crenças, mas o exercício de conversação comunitária: “Para reafirmar sentimentos que, abandonados a si mesmos, arrefeceriam, basta aproximar e colocar em relações mais estreitas e mais ativas aqueles que os experimentam”: Émile DURKHEIM. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, p. 503 e 264.

[19] Peter L. BERGER. O dossel sagrado, p. 19.

[20] Id. O dossel sagrado, p. 42.

[21] Id. Rumor de anjos, p. 66. O grande esforço será no sentido de facultar ao indivíduo a percepção do mundo social como “coisa óbvia” e evitar a todo custo o desgarre dos programas socialmente definidos. Para manter “encurralado o caos” serão acionados procedimentos específicos para ajudar os membros da sociedade a “ficar ‘orientados’ para a realidade’ (isto é, a ficar dentro da realidade como é definida ‘oficialmente’) e a ‘voltar à realidade’ (isto é, voltar das esferas marginais da ‘irrealidade’ ao nomos socialmente estabelecido)”: Id. O dossel sagrado, p. 37.

[22] Id. Rumor de anjos, p. 67.

[23] Id. A construção social da realidade, p. 144-147. Como sublinha Berger, “em situações nas quais existe competição entre diferentes instituições definidoras da realidade podem ser toleradas todos os tipos de relações entre os grupos secundários com os competidores, desde que existam, firmemente estabelecidas, relações de grupos primários em cujo interior uma determinada realidade é progressivamente reafirmada contra os competidores”: Id. A construção social da realidade, p. 202. Esta situação tende, porém, a se complexificar no momento de afirmação de uma sociedade plural, como veremos adiante.

[24] Id. O dossel sagrado, p. 186.

[25] Id. O dossel sagrado, p. 41.

[26] Id. O dossel sagrado, p. 45.

[27] Na visão de Berger, “a legitimação religiosa pretende relacionar a realidade humanamente definida com a realidade última, universal e sagrada. As construções da atividade humana, intrinsecamene precárias e contraditórias, recebem, assim, a aparência de definitiva segurança e permanência.”: Id. O dossel sagrado, p. 48-49.

[28] Id. O dossel sagrado, p. 97 e também pp. 46 e 99.

[29] Id. O dossel sagrado, p. 48.

[30] Id. Rumor de anjos, p. 54.

[31] Como indica Berger, “a morte estabelece também a mais aterrorizadora ameaça às realidades asseguradas da vida cotidiana. A integração da morte na realidade dominante da existência social tem portanto a maior importância para qualquer ordem institucional”: Id. A construção social da realidade, p. 138. Como bem observado por este autor, o que a teodicéia faculta não é em si a felicidade, mas significado. Indica que “nas situações de intenso sofrimento, a necessidade de significado é tão forte quanto a necessidade de felicidade”. Cf. Id. O dossel sagrado, p. 70. Em semelhante linha de reflexão, o antropólogo Clifford Geertz buscou mostrar que o significado da religião não é tanto o de evitar o sofrimento, mas fazer com que o mesmo seja algo tolerável e suportável. Cf. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p. 119. Ver ainda: Carmen Cinira MACEDO. Imagem do eterno: religiões no Brasil. 2 ed. São Paulo: Moderna, 1989, p. 25-26.

[32] Peter L. BERGER. Rumor de anjos, p. 214. Ver também: Id. O dossel sagrado, p. 108-109. Id. Homo ridens: la dimensione comica dell’esperienza umana. Bologna: Il Mulino, 1999, p. 301.

[33]O sentido de modernidade aqui trabalhado encontra analogia com sua aplicação filosófica, que se traduz como modernidade pós-renascentista. Um dos traços substantivos desta modernidade refere-se à “iniciativa teórica, até agora inédita na história humana, que propugna a imanentização dos termos da relação de transcendência, com a abolição da sua dimensão metafísica e a emergência do existente humano como fonte de movimento de autotranscendência desdobrando-se na esfera da imanência: nas instituições do universo político, na construção do mundo técnico, na concepção autônoma do agir ético, na fundamentação teórica, enfim, da visão de mundo”: Henrique Cláudio de LIMA VAZ. Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002, p. 16.

[34] Id. O dossel sagrado, p. 119.

[35] Id. O dossel sagrado, p. 139.

[36] Id. Rumor de anjos, p. 78-79. Sintetizando a posição de Berger sobre a situação de crise de plausibilidade da religião, Cecília Loreto Mariz afirmou: “A religião no mundo plural abandona sua ambição de unir toda uma sociedade ou de ditar a ética da vida pública. Segrega-se, então na vida privada. Berger descreve a situação atual como aquela onde a plausibilidade da religião na vida pública desmorona e na vida privada é constantemene ameaçada pelas religiões concorrentes”: Cecília Loreto MARIZ. Peter Berger: uma visão plausível da religião. In: Francisco Cartaxo ROLIM (Org.). A religião numa sociedade em transformação. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 103.

[37] Peter L. BERGER. L’imperativo eretico, p. 48. Comentando esta questão, Stefano Martelli sublinha que o processo de pluralização de escolhas que acompanha a modernidade “implica a relativização das pretensões de plausibilidade propostas por cada uma das instituições. Isso tem consequências particularmente graves para agências educativas, que são perturbadas pelos conflitos entre concepções pedagógicas diferentes, mas sobretudo para a Religião, cuja mensagem se caracteriza pela pretensão de verdade absoluta”: A religião na sociedade pós-moderna. São Paulo: Paulinas, 1995, p. 293.

[38] Peter L. BERGER. L’imperativo eretico. Torino: Editrice Elle Di Ci, 1987, p. 60-64. Segundo Berger, “a situação pluralista não só dá ao indivíduo uma oportunidade de escolha, mas o força a escolher. Justamente por isto, torna muito difícil a chegada à certeza religiosa. É instrutivo relembrar que o sentido literal da palavra haeresis é ‘escolha’. Num sentido muito real, toda comunidade religiosa numa situação pluralista se torna uma ‘heresia’, com toda a sutileza social e psicológica que o termo sugere”: Id. Rumor de anjos, p. 80.

[39] Berger admite em reflexão recente que em período anterior acabou contribuindo para a afirmação de uma literatura em sintonia com a teoria da secularização. Sua visão atual vai em outra direção. Sem negar a presença de efeitos secularizantes que continuam em ação, argumenta que a suposição de que se vive atualmente num mundo secularizado é equivocada. Como ele mesmo indica, o mundo de hoje, consideradas algumas exceções, “é tão ferozmente religioso quanto antes, e até mais em certos lugares”: Cf. A dessecularização do mundo: uma visão global. Art.cit., p. 10. Segundo Cecília Loreto Mariz, este mea culpa de Berger deve ser relativizado, pois, de fato, ele nunca deixou de perceber a presença de sinais de transcendência na sociedade moderna. Só que agora tende a acentuar a presença mais destacada de uma busca de redenção e de transcendência, que ocorre muitas vezes em reação aos limites da secularização. Cf. Secularização e dessecularização: comentários a um texto de Peter Berger. In: Religião e Sociedade, v. 21, n. 1, p. 26, 2001. Ver ainda: Piergiorgio GRASSI. Secolarizzazione e teologia: la questione religiosa in Peter Berger. Urbino: QuattroVenti, 1992, p. 17-18.

[40] Peter L. BERGER. A dessecularização do mundo: uma visão global. In: Religião e Sociedade, v. 21, n. 1, p. 10, 2001.

[41] Id. O dossel sagrado, p. 159.

[42] O ecumenismo vem entendido por Berger “no sentido de uma colaboração amigável cada vez mais estreita entre os diferentes grupos envolvidos no mercado religioso”. Mas para ele, trata-se de uma necessidade de adequação à situação pluralista, de racionalização da competição na situação pluralista. Cf. O dossel sagrado, p. 153.

[43] Id. Una gloria remota: avere fede nell’epoca del pluralismo. Bologna: Il Mulino, 1994, p. 48.

[44] Id. Una gloria remota, p. 45. Ver também: Id. Rumor de anjos, p. 32 e 40. No caso da teologia liberal, a reação crítica veio contundente na reflexão de Karl Bart (teologia dialética), para o qual uma infinita diferença qualitativa separava a eternidade do tempo. Com Barth instaura-se na teologia protestante uma “total negação da continuidade afirmada pelo mundo liberal entre o humano e o divino”: Bruno FORTE. In ascolto dell’altro: filosofia e rivelazione. Brescia: Morcelliana, 1995, p. 44.

[45] Id. Una gloria remota, p. 46.

[46] Id. Una gloria remota, p. 46-47.

[47] Id. A dessecularização do mundo: uma visão global, Art. cit., p. 13. Berger sublinha o impulso conservador que vem atuando em várias tradições religiosas: no catolicismo, no protestantismo, na tradição ortodoxa, no judaísmo, no islamismo, hinduísmo e budismo. Ibidem, p. 13. A socióloga francesa, Danièle Hervieu-Leger, mencionou em trabalho recente o crescimento de uma modalidade específica da figura do convertido no cenário religioso contemporâneo. Trata-se do reafiliado, ou seja, do religioso que redescobre uma identidade religiosa até então mantida como formal, ou vivida minimamente. Um fenômeno que se relaciona com a busca existencial de novas condições comunitárias, que possam expressar uma experiência pessoal e fortemente emocional, de entrada num “regime forte de intensidade religiosa”: Le pèlerin et le converti: la religion en mouvement. Paris: Flammarion, 1999, p. 124-125.

[48] Peter L. BERGER. A dessecularização do mundo: uma visão global. Art.cit., p. 18.

[49] Ibidem, p. 13.

[50] Ibidem, p. 16-17.

[51] Ibidem, p. 19.

[52] Cecília Loreto MARIZ. Peter Berger: uma visão plausível da religião. In: Op.cit., p. 104-107.

Referências Bibliográficas

A) Obras de Berger

BERGER, Peter L. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. Petrópolis: Vozes, 1973.

BERGER, Peter L. & LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1973.

BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985.

____. Rumor de anjos: a sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

____. Le piramidi del sacrificio: etica politica e trasformazione sociale. Torino: Einaldi, 1981.

____. & BERGER, Brigitte. Sociologia: la dimensione sociale della vita quotidiana. Bologna: Il Mulino, 1995.

BERGER, Peter. L’imperativo eretico: possibilità contemporanee di affermazione religiosa. Torino: Editrice Elle Di Ci, 1987.

____. Una gloria remota: avere fede nell’epoca del pluralismo. Bologna: Il Mulino, 1994.

____. Homo ridens: la dimensione cosmica dell’esperienza umana. Bologna: Il Mulino, 1999.

____. A dessecularização do mundo: uma visão global. Religião e Sociedade, v. 21, n. 1, p. 9-23, 2001.

2) Sobre Berger

GRASSI, Piergiorgio. Secolarizzazione e teologia: la questione religiosa in Peter L. Berger. Urbino: Quattro Venti, 1992.

MARIZ, Cecília Loreto. Peter Berger: uma visão plausível da religião. In: ROLIM, Francisco Cartaxo (Org.) A religião numa sociedade em tranformação. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 91-111.

____. Secularização e dessecularização: comentários de um texto de Peter Berger. Religião e Sociedade, v. 21, n. 1, p. 25-39, 2001.

MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna. São Paulo: Paulinas, 1995, p. 287-295.

NICOLÒ, Giancarlo. Introduzione. In: BERGER, Peter L. L’imperativo eretico. Torino: Editrice Elle Di Ci, 1987, p. 5-35.

(Publicado no livro: Faustino TEIXEIRA (Org). Sociologia da religião: enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003, pp.218-246)


O discurso presidencial



Artigos
 - 21/10/2019

Por Lineide Salvador Mosca, professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP

Editorias: Artigos - URL Curta: jornal.usp.br/?p=280184

Lineide do Lago Salvador Mosca 

Os sucessivos pronunciamentos do presidente denotam ausência de argumentação dialógica, que é um modo de gestão discursiva do desacordo e do conflito. Falta a ele o exercício do diálogo, em que várias vozes se cruzam e em que a voz única é expressão de autoritarismo. Os seus destinatários não são a gama variada da população do país, seu discurso destinando-se àqueles que o endossam e em que os demais figuram como adversários e até mesmo como inimigos.
Não se pode esquecer o valor simbólico das palavras dos governantes, tanto no cenário nacional como internacional, onde tudo funciona de modo interdependente. Na gestão dos interesses e das diferenças de opinião reside o papel diplomático do líder em nossos dias, a fim de promover confluências e soluções, a ele cabendo um papel decisório na condução das razões de Estado, respeitadas todas as instâncias que constituem os poderes. Do estadista espera-se uma posição que envolva credibilidade e confiança, o que exige maleabilidade, numa esfera de interação, mesmo diante do confronto e do dissenso. O que se busca é a convivência possível num cenário de diversidade e de respeito a todas as posições. A ele cabe, pois, moderação e certa contenção em nome dessa convivência, quando os ânimos se acirram.

As duas vozes básicas a conduzir esse processo são exercidas pela ciência e pela política, esta encarada como o bem comum, em seu sentido original, aquela que representa o ethos coletivo. A noção de ethos, que vem da retórica antiga, apresenta-se como o modo de o orador se comportar em seu discurso, em sua fala e o que revela ao exprimir-se por esse meio. Quando não ocorre a projeção de uma imagem favorável de si mesmo, há que consertá-la a todo momento, com reformulações, autocorreções, explicações e justificativas, o que já denota a falência dos argumentos apresentados.

Dentro desse quadro, quando se anuncia um pronunciamento do chefe da nação, espera-se um ato comunicativo solene e que represente a voz mais ampla da população. Não é isso, entretanto, o que tem ocorrido. O que aflora é o domínio das paixões, como o repúdio, a raiva. A pergunta mais frequente que se ouve a respeito é: “o que vem por aí? qual a próxima?”. Tem-se um número enorme de distorções e falácias, advindas do mau manejo das frases, do léxico injurioso e das figuras retóricas de nível rude, que se afastam bastante daquilo que se consideravam na Antiguidade as qualidades do bom orador: clareza, concisão, propriedade e adequação, entre outras. Não basta dizer “sou flexível”, “não sou autoritário” quando as atitudes não correspondem ao dizer e não produzem o efeito que se enuncia.

Nos pronunciamentos presidenciais, sejam quais forem as circunstâncias, há certa ritualização, com procedimentos já consagrados nos grandes discursos e falas institucionais, passando-se por diversos registros, do mais formal ao desenvolto, sem resvalar, no entanto, para o insulto e as ofensas em geral. Há também toda uma tradição, como a que ocorre nos discursos da ONU, desde a sua criação em 1945, após o término da Segunda Guerra Mundial, com o intuito de evitar novo conflito. É conhecida e reconhecida a atuação do Brasil diante do privilégio que este tem ao lhe ser atribuído o discurso de abertura do conclave, por ter sido o primeiro país a aderir a esta nova organização. Causa, pois, espanto e decepção qualquer afastamento do que se espera do país em tão importante ocasião.

Entram também as regras de polidez, vigentes na comunidade, não se podendo dizer o que se quer e como se quer em quaisquer circunstâncias, sob pena de se cometer um ato de grosseria e de ser considerado tosco, até mesmo pelas pessoas mais simples. O mitigar o confronto e amenizar as afrontas deveriam estar à frente das atitudes presidenciais.

Entra aqui a relação com a imprensa, uma importante voz nesse contexto, à qual cabe a apuração dos dados, a informação, que possibilitarão o trabalho interpretativo à população em geral, não só aos especialistas. Nosso presidente é versado em cortar a palavra aos jornalistas, não lhes dando oportunidade de fazer as perturbadoras e temidas questões. Dizer que se trata de um tom e estilos próprios não resolve a situação. O baixo calão na linguagem não é bem-vindo e muito menos as esquisitices escatológicas, lembrando que estas se referem a expressões, ditos, anedotas, pilhérias, orais ou escritas, que giram em torno da noção de fezes e outras afins. A etimologia aponta que skatos, do grego, remonta a “excrementos” (ex. “porrada”, “ejaculação precoce”, “cocô” e outras). Essas só servem para gerar chacota e desprestígio, explorados abundantemente pelos cartunistas e articulistas de humor.

O sistema democrático nos coloca diante dessas situações por vezes aberrantes, que incluem as meias-verdades, as falsidades, a hipocrisia, os enganos e os equívocos, mas nos cabe encará-las e não deixar que estratégias diversionistas retirem o foco das questões vitais. Nisso reside a ética dos valores e dos princípios que aprimoram a espécie humana e que constituem o sistema de valores válidos naquela comunidade. Temos que esperar por melhores tempos diante do que estamos vivenciando, uma vez que a democracia tem um custo alto e caminha muitas vezes à revelia dela mesma. Por outro lado, ela é um antídoto à violência crescente em nossos dias. É quase impossível detectar todas as contradições, mas cabe apontá-las à população e trazer reflexões que minimizem esse estado lamentável de coisas. Que a virulência ceda lugar ao entendimento e que se possa contribuir para o aperfeiçoamento da espécie humana.





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Bem acima da Amazônia, uma batida e um céu vazio





Joe Sharkey
em São José dos Campos, Brasil

Era um vôo confortável, rotineiro.

Com o quebra-sol da janela fechado, eu estava descansando em meu assento de couro a bordo de um jato executivo de US$ 25 milhões, voando a mais de 11 mil metros acima da vasta floresta tropical Amazônica. Cada um dos sete a bordo do jato para 13 passageiros estava na sua.

Sem aviso, eu senti um solavanco e ouvi uma forte batida, seguida por um silêncio assustador, exceto pelo zunido dos motores.

E então vieram as três palavras que nunca esquecerei. "Fomos atingidos", disse Henry Yandle, um outro passageiro que estava em pé no corredor perto da cabine do jato Legacy 600 da Embraer.

"Atingidos? Pelo quê?" me perguntei. Eu levantei o quebra-sol. O céu estava claro; o sol baixo no céu. A floresta tropical parecia não acabar mais. Mas lá, na extremidade da asa, se encontrava uma aresta dentada, talvez de 30 centímetros de altura, onde uma winglet (ponta da asa) de 1,5 metro devia estar.

E assim começaram os mais angustiantes 30 minutos da minha vida. Me diriam várias vezes nos dias seguintes que ninguém jamais sobreviveu a uma colisão no ar. Eu tinha sorte de estar vivo - e apenas posteriormente é que tomaria conhecimento de que 155 pessoas, a bordo do Boeing 737 em um vôo doméstico que aparentemente se chocou conosco, não estavam.

Os investigadores ainda estão tentando descobrir o que aconteceu, e como - por algum milagre - nosso jato menor conseguiu se manter no ar enquanto o 737 que era mais longo, mais largo e três vezes mais pesado caiu do céu verticalmente.

Mas às 15h59 da tarde da última sexta-feira, tudo o que pude ver, tudo o que sabia, era que parte da asa tinha sido perdida. E estava claro que a situação piorava rapidamente. A borda da asa estava perdendo rebites e começando a se desfazer.

Surpreendentemente, ninguém entrou em pânico. Os pilotos calmamente começaram a estudar seus controles e mapas em busca de sinais de um aeroporto próximo ou, pela janela, um lugar para pousar.

Mas à medida que os minutos passavam, o avião continuava a perder velocidade. Àquela altura todos nós sabíamos que a situação era grave. Eu me perguntava quão dolorida seria uma aterissagem - um termo otimista para queda.

Eu pensei na minha família. Não havia sentido em tentar telefonar com meu celular - não havia sinal. E à medida que nossas esperanças diminuíam, alguns de nós escreveram bilhetes para esposas e entes queridos e os colocaram nas carteiras, na esperança de serem encontrados posteriormente.

Eu estava concentrado em notas diferentes quando o vôo teve início. Eu escrevo semanalmente a coluna "On the Road" para a seção de viagem de negócios do "New York Times", publicada às terças-feiras, há sete anos. Mas eu estava no Embraer 600 para um artigo freelance para a revista "Business Jet Travel".

Os demais passageiros incluíam executivos da Embraer e de uma empresa de vôos charter chamada ExcelAire, a nova dona do jato. David Rimmer, o vice-presidente sênior da ExcelAire, me convidou para pegar uma carona para casa no jato que sua empresa tinha acabado de adquirir na sede da Embraer aqui.

E a viagem até então tinha sido boa. Minutos antes da colisão, eu fui até a cabine para conversar com os pilotos, que disseram que o avião estava voando perfeitamente. Eu li o mostrador que apontava nossa altitude: 37 mil pés (11.277 metros).

Então o choque, que também arrancou parte da cauda de nosso avião.

Imediatamente após, não houve muita conversa.

Rimmer, um homem grande, estava debruçado no corredor à minha frente olhando pela janela para a asa danificada.

"Quão ruim ela está?" eu perguntei.

Ele se voltou para mim com olhar firme e disse: "Eu não sei".

Eu vi a linguagem corporal dos dois pilotos. Eles pareciam soldados de infantaria trabalhando em uma situação difícil, como foram treinados a fazer.

Nos 25 minutos seguintes, os pilotos, Joe Lepore e Jan Paladino, analisaram seus instrumentos à procura de um aeroporto. Nada aparecia.

Eles enviaram um pedido de socorro, que foi recebido por uma avião de carga em alguma parte da região. Não houve contato com nenhum outro avião e certamente não com um 737 no mesmo espaço aéreo.

Lepore então avistou uma pista em meio à mata escura.

"Eu consigo ver um aeroporto", ele disse.

Eles tentaram contatar a torre de controle, que era de uma base militar escondida Amazônia adentro. Ele fizeram uma curva acentuada para reduzir a pressão na asa.

Enquanto se aproximavam da pista, eles receberam o primeiro contato do controle de tráfego aéreo.

"Nós não sabíamos qual era a extensão da pista ou se tinha algo nela", disse Paladino posteriormente, naquela noite na base do Cachimbo na floresta.

A descida foi brusca e rápida. Eu assisti os pilotos lutarem com a aeronave porque muitos dos controles automáticos tinham se perdido. Eles conseguiram parar o avião restando ainda um bocado de pista. Nós cambaleamos para a saída.

"Bela pilotagem", eu disse aos pilotos ao passar por eles. Na verdade, eu inseri uma palavra impublicável entre "bela" e "pilotagem".

"Ao seu dispor", disse Paladino com um sorriso nervoso.

Posteriormente naquela noite, eles nos serviram cerveja gelada e comida na base militar. Nós especulamos interminavelmente sobre o que causou o impacto. Um balão meteorológico desgarrado? Um caça militar cujo piloto ejetou? Um avião nas proximidades que explodiu, lançado destroços contra nós?

Seja qual fosse a causa, ficou claro que estivemos envolvidos em uma colisão no ar da qual nenhum de nós devia ter sobrevivido.

Em um momento de humor negro no quartel onde dormiríamos, eu disse: "Talvez a gente esteja realmente morto e isto seja o inferno -revivendo papos furados de faculdade com uma lata de cerveja pela eternidade".

Por volta das 19h30, Dan Bachmann, um executivo da Embraer e o único entre nós que falava português, veio à mesa na sala com notícias do escritório do comandante. Um Boeing 737 com 155 pessoas a bordo tinha desaparecido no local onde fomos atingidos.

Antes daquele momento, nós todos estávamos brincando e rindo do apuro do qual escapamos. Nós éramos os 7 da Amazônia, vivendo agora um tempo precioso que não mais nos pertencia, mas que de alguma forma tínhamos adquirido. Nós nos encontraríamos anualmente para narrar que uso fizemos deste tempo.

Em vez disso, naquele momento nós baixamos nossas cabeças em um longo momento de silêncio, com o som de lágrimas abafadas.

Ambos os pilotos, com extensa experiência em jatos executivos, ficaram abalados com a situação. "Se alguém devia ter caído deveria ter sido nós", ficava repetindo Lepore, 42 anos, de Bay Shore, Nova York.

Paladino, 34 anos, de Westhampton, Nova York, mal conseguia falar. "Eu estou tentando digerir a perda de todas aquelas pessoas. Está realmente começando a doer", ele disse.

Yandle lhe disse: "Vocês são heróis. Vocês salvaram nossas vidas". Eles sorriram de forma abatida. Estava claro que o peso de tudo aquilo permaneceria com eles para sempre.

No dia seguinte, a base estava repleta de autoridades brasileiras investigando o acidente e dirigindo as operações de busca pelo 737, que um oficial me disse que se encontrava em uma área a menos de 160 quilômetros ao sul de onde estávamos, mas cujo acesso só era possível abrindo densa mata à mão.

Nós também tivemos acesso ao nosso avião, que estava sendo estudado minuciosamente pelos inspetores. Ralph Michielli, vice-presidente de manutenção da ExcelAire e um passageiro do vôo, me levou em um elevador para ver o dano na asa perto da winglet partida.

Um painel perto da borda da asa estava separado em mais de 30 centímetros. Manchas escuras perto da fuselagem mostravam que combustível tinha vazado. Partes do estabilizador horizontal na cauda foram esmagadas, um pedaço pequeno estava faltando no elevador esquerdo.

Um inspetor militar brasileiro ao lado me surpreendeu com sua disposição de conversar, apesar das limitações da conversa devido ao seu fraco inglês e meu português inexistente.

Ele especulava sobre o que tinha acontecido, mas foi isto o que ele disse: ambos os aviões estavam, inexplicavelmente, na mesma altitude e no mesmo espaço no céu. Os pilotos do 737 a caminho do sudeste avistaram nosso Legacy 600, que estava voando para noroeste rumo a Manaus, e fizeram uma manobra evasiva frenética. A asa do 737 -se precipitando no espaço entre nossa asa e a cauda alta, nos atingiu duas vezes, e o avião maior mergulhou em sua espiral fatal.

Soava como uma situação impossível, reconheceu o inspetor. "Mas eu acho que foi isto o que aconteceu", ele disse. Apesar de ninguém ainda ter dito ao certo como o acidente ocorreu, três outros oficiais brasileiros me disseram que foram informados que ambos os aviões estavam na mesma altitude.

Por que eu - o passageiro mais próximo do impacto - não ouvi nenhum som, nenhum barulho de um grande 737?

Eu perguntei a Jeirgen Prust, o piloto de teste da Embraer. Isto ocorreu no dia seguinte, quando fomos transferidos da base em uma aeronave militar para a sede da polícia em Cuiabá. Foi lá que as autoridades estabeleceram a jurisdição e onde pilotos e passageiros do Legacy 600, incluindo eu, seríamos interrogados até o amanhecer por um intenso comandante da polícia e seus tradutores.

Prust pegou uma calculadora e digitou, imaginando o tempo disponível para ouvir o barulho de um jato vindo na direção de outro jato, cada um voando a mais de 800 km/h em direções opostas. Ele me mostrou os números. "É bem menos do que uma fração de segundo", ele disse. Ambos olhamos para os pilotos desabados nos sofás do outro lado da sala.

"Eles e aquele avião salvaram nossas vidas", eu disse.

"Segundo meus cálculos", ele concordou.

Eu posteriormente pensei que talvez o piloto do avião comercial brasileiro tenha salvo nossas vidas, devido ao seu reflexo rápido. Pena que seus próprios passageiros não poderiam dizer o mesmo.

Na sede da polícia, nós fomos obrigados a escrever em uma folha de papel nossos nomes, endereços, datas de nascimento, ocupações e escolaridade, além do nome de nossos pais. Também fomos obrigados a passar por um exame com um médico de cabelo comprido, que vestia uma avental que chegava quase à sua canela. Nós fomos obrigados a nos despir até a cintura para fotografias de frente e costas.

Isto, explicou o médico, cujo nome eu não entendi mas que se descreveu como um "médico perito", era para provar que não tínhamos sido torturados.

O humor negro voltou apesar de nossas tentativas de contê-lo.

"Este sujeito é um legista", me explicou Yandle posteriormente, "eu acho que isto significa que nós estamos realmente mortos".

Mas os risos agora desapareceram, ao nos lembrarmos constantemente dos corpos ainda não recuperados na selva, e como suas vidas e as nossas se cruzaram, literal e metaforicamente, por uma terrível fração de segundo.

Tradução: George El Khouri Andolfato