Artigos
- 21/10/2019
Por Lineide Salvador Mosca, professora do Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP
Editorias: Artigos - URL Curta: jornal.usp.br/?p=280184
Lineide do Lago Salvador Mosca
Os sucessivos pronunciamentos do presidente denotam ausência
de argumentação dialógica, que é um modo de gestão discursiva do desacordo e do
conflito. Falta a ele o exercício do diálogo, em que várias vozes se cruzam e
em que a voz única é expressão de autoritarismo. Os seus destinatários não são
a gama variada da população do país, seu discurso destinando-se àqueles que o
endossam e em que os demais figuram como adversários e até mesmo como inimigos.
Não se pode esquecer o valor simbólico das palavras dos
governantes, tanto no cenário nacional como internacional, onde tudo funciona
de modo interdependente. Na gestão dos interesses e das diferenças de opinião
reside o papel diplomático do líder em nossos dias, a fim de promover
confluências e soluções, a ele cabendo um papel decisório na condução das
razões de Estado, respeitadas todas as instâncias que constituem os poderes. Do
estadista espera-se uma posição que envolva credibilidade e confiança, o que
exige maleabilidade, numa esfera de interação, mesmo diante do confronto e do
dissenso. O que se busca é a convivência possível num cenário de diversidade e
de respeito a todas as posições. A ele cabe, pois, moderação e certa contenção
em nome dessa convivência, quando os ânimos se acirram.
As duas vozes básicas a conduzir esse processo são exercidas
pela ciência e pela política, esta encarada como o bem comum, em seu sentido
original, aquela que representa o ethos coletivo. A noção de ethos, que vem da
retórica antiga, apresenta-se como o modo de o orador se comportar em seu
discurso, em sua fala e o que revela ao exprimir-se por esse meio. Quando não
ocorre a projeção de uma imagem favorável de si mesmo, há que consertá-la a
todo momento, com reformulações, autocorreções, explicações e justificativas, o
que já denota a falência dos argumentos apresentados.
Dentro desse quadro, quando se anuncia um pronunciamento do
chefe da nação, espera-se um ato comunicativo solene e que represente a voz
mais ampla da população. Não é isso, entretanto, o que tem ocorrido. O que
aflora é o domínio das paixões, como o repúdio, a raiva. A pergunta mais
frequente que se ouve a respeito é: “o que vem por aí? qual a próxima?”. Tem-se
um número enorme de distorções e falácias, advindas do mau manejo das frases,
do léxico injurioso e das figuras retóricas de nível rude, que se afastam
bastante daquilo que se consideravam na Antiguidade as qualidades do bom
orador: clareza, concisão, propriedade e adequação, entre outras. Não basta
dizer “sou flexível”, “não sou autoritário” quando as atitudes não correspondem
ao dizer e não produzem o efeito que se enuncia.
Nos pronunciamentos presidenciais, sejam quais forem as
circunstâncias, há certa ritualização, com procedimentos já consagrados nos
grandes discursos e falas institucionais, passando-se por diversos registros,
do mais formal ao desenvolto, sem resvalar, no entanto, para o insulto e as
ofensas em geral. Há também toda uma tradição, como a que ocorre nos discursos
da ONU, desde a sua criação em 1945, após o término da Segunda Guerra Mundial,
com o intuito de evitar novo conflito. É conhecida e reconhecida a atuação do
Brasil diante do privilégio que este tem ao lhe ser atribuído o discurso de
abertura do conclave, por ter sido o primeiro país a aderir a esta nova
organização. Causa, pois, espanto e decepção qualquer afastamento do que se
espera do país em tão importante ocasião.
Entram também as regras de polidez, vigentes na comunidade,
não se podendo dizer o que se quer e como se quer em quaisquer circunstâncias,
sob pena de se cometer um ato de grosseria e de ser considerado tosco, até
mesmo pelas pessoas mais simples. O mitigar o confronto e amenizar as afrontas
deveriam estar à frente das atitudes presidenciais.
Entra aqui a relação com a imprensa, uma importante voz
nesse contexto, à qual cabe a apuração dos dados, a informação, que
possibilitarão o trabalho interpretativo à população em geral, não só aos
especialistas. Nosso presidente é versado em cortar a palavra aos jornalistas,
não lhes dando oportunidade de fazer as perturbadoras e temidas questões. Dizer
que se trata de um tom e estilos próprios não resolve a situação. O baixo calão
na linguagem não é bem-vindo e muito menos as esquisitices escatológicas,
lembrando que estas se referem a expressões, ditos, anedotas, pilhérias, orais
ou escritas, que giram em torno da noção de fezes e outras afins. A etimologia
aponta que skatos, do grego, remonta a “excrementos” (ex. “porrada”,
“ejaculação precoce”, “cocô” e outras). Essas só servem para gerar chacota e
desprestígio, explorados abundantemente pelos cartunistas e articulistas de
humor.
O sistema democrático nos coloca diante dessas situações por
vezes aberrantes, que incluem as meias-verdades, as falsidades, a hipocrisia,
os enganos e os equívocos, mas nos cabe encará-las e não deixar que estratégias
diversionistas retirem o foco das questões vitais. Nisso reside a ética dos
valores e dos princípios que aprimoram a espécie humana e que constituem o
sistema de valores válidos naquela comunidade. Temos que esperar por melhores
tempos diante do que estamos vivenciando, uma vez que a democracia tem um custo
alto e caminha muitas vezes à revelia dela mesma. Por outro lado, ela é um
antídoto à violência crescente em nossos dias. É quase impossível detectar
todas as contradições, mas cabe apontá-las à população e trazer reflexões que
minimizem esse estado lamentável de coisas. Que a virulência ceda lugar ao
entendimento e que se possa contribuir para o aperfeiçoamento da espécie
humana.
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