"Somos todos passageiros de um trem suicida que se
chama civilização capitalista moderna", argumenta Michael Löwy, citando
Walter Benjamin.
sábado, 2 de abril de 2016
A criminalização da resistência
A criminalização da resistência de apenas um dos lados dessa
disputa mostra o quanto nosso sistema político é incapaz de entender o que é,
de fato, uma democracia.
Chamar de chantagem toda forma de protesto com a qual não
concordamos é, no mínimo, infantil.
A oposição não vai admitir, mas a quantidade de pessoas que
têm ido às ruas para criticar a forma como está sendo conduzido o processo de
impeachment (atenção, não confundir com ir às ruas para apoiar esse governo)
foi maior que a esperada. À frente de muitas delas, está o MTST e a Frente Povo
sem Medo, que se mantém bastante críticos ao governo.
A partir daí, a narrativa para a criminalização de
movimentos sociais tem sido anabolizada na mídia, nas redes sociais, nos
espaços políticos. Narrativas que querem inverter os sentidos das palavras e
transformar resistência popular em ameaça à democracia e à governabilidade.
Guilherme Boulos é liderança do principal movimento social
de massa deste país em termos de centralidade da pauta, capacidade de
mobilização e visão de atuação hoje. Um movimento com uma agenda antiga, mas
com uma equipe que sabe se comunicar e influenciar a disputa simbólica da
narrativa, pela mídia, pelas redes sociais.
E vem exatamente do posicionamento crítico adotado contra a
atual administração federal o respeito de vários setores da esquerda para com o
movimento e com Boulos. Esse respeito e essa capacidade de mobilização, que
consegue colocar dezenas de milhares de militantes nas ruas quando preciso,
assusta muita gente. Que prefere ver ele preso do que articulando com outros
movimentos ou em cima de um caminhão de som.
O pedido de investigação criminal de Guilherme Boulos é uma
amostra do que acontecerá com parte da esquerda brasileira se o macarthismo à
brasileira se instalar como ação sistemática de limpeza ideológica. Já estamos
vendo, aqui e ali, a perseguição a quem usa roupas vermelhas e a agressão em
espaços públicos contra quem defende determinado ponto de vista. Até o
juramento de Hipócrates foi rasgado por médicos que acham normal não prestar
atendimento a alguém que não compartilha da mesma opinião política que eles.
Daqui para a caça nas ruas, escolas e empresas é um pulo.
Apesar de conquistas sociais obtidas na última década, o
governo não atendeu às pautas históricas propostas pelos movimentos sociais – o
que, do meu ponto de vista, não seria nenhuma “revolução'', mas melhoraria a
vida de milhões de brasileiros que se mantêm excluídos. Pelo contrário, em nome
da “governabilidade'' fez alianças espúrias, apoiando forças econômicas e
políticas que eram contrárias a esses interesses populares, ignorando o suporte
oferecido por esses mesmos movimentos para um mandato que significasse uma
mudança de paradigma.
E nada indica que, se sobreviver à convulsão, irá fazer a
“guinada à esquerda'', mítico desejo da militância, que passa frio no barraco
de lona na beira da rodovia, que convive com ratos em prédios ocupados em
grandes cidades, que sente medo de ser despejado de sua terra tradicional, que
vive as condições de trabalho precarizadas em nome do progresso.
Mas todos os movimentos sociais sabem o que é serem
considerados criminosos simplesmente por lutarem pelos direitos que lhes são
garantidos pela Constituição. Sabem o que é levar cacete por representar o que
está em desacordo com a visão hegemônica de “progresso'' e crescimento
econômico, seja no campo ou na cidade. E ainda guardam na memória as cicatrizes
deixadas pelos anos de governo Fernando Henrique Cardoso, temendo que voltem a
ser caçados dependendo de quem assuma o poder ou do clima político do país.
Você pode não gostar de Guilherme Boulos. Mas, se preza pela
liberdade, deveria repudiar a sua criminalização e dos movimentos sociais
populares, da mesma forma que deve ser repudiada a criminalização de qualquer
liderança social, de direita ou esquerda.
Pois, hoje é com ele. Depois, com uns comunistas,
sindicalistas, operários, jornalistas… Amanhã, quem sabe, se não vai ser com
você?
(Leonardo Sakamoto --
http://jornalggn.com.br/…/a-hipocrisia-na-criminalizacao-de…)
Materialismo Dialético
"O marxismo-leninismo é uma doutrina monolítica,
completa, na qual todas as partes — o comunismo científico, a economia política
e a filosofia — se acham organicamente ligadas entre si. (...) O
marxismo-leninismo ensina que, embora as leis objetivas da História determinem
a atividade dos homens, não atuam por si mesmas, mas pressupõem a atividade
dinâmica dos homens. A necessidade objetiva no desenvolvimento social não
exclui, mas, ao contrário, pressupõe a participação criadora dos homens".
( Academia de Ciências da URSS)
"Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores"
Marx:
19.03.2016
Operários,
É um fato assinalável que a miséria das massas operárias não
tenha diminuído de 1848 a 1864; e, contudo, este período não tem rival quanto
ao desenvolvimento da indústria e ao crescimento do comércio. Em 1850, um órgão
moderado da classe média britânica, de informação superior à média, predizia
que se as exportações e as importações da Inglaterra viessem a elevar-se 50 por
cento, o pauperismo inglês cairia para zero. Infelizmente, em 7 de abril de
1864, o Chanceler do Tesouro Público [Chancellor of the Exchequer] deliciava a
sua audiência parlamentar com a afirmação de que o comércio total de importação
e exportação da Inglaterra se tinha elevado em 1863 “a 443 955 000 libras! soma
assombrosa cerca de três vezes superior ao comércio da época comparativamente
recente de 1843!”.
Apesar de tudo isto, foi eloquente acerca da “pobreza”.
“Pensai”, exclamava ele, “nos que estão na fronteira dessa região”, nos “salários...
não aumentados»; na “vida humana... que em nove casos sobre dez não é senão uma
luta pela existência!” Não falou do povo da Irlanda, gradualmente substituído
pela maquinaria no Norte e por pastagens de carneiros no Sul, ainda que mesmo
os carneiros, nesse país infeliz, estejam a diminuir, é verdade que não a uma
taxa tão rápida como os homens. Não repetiu o que tinha então acabado de ser
denunciado, num súbito acesso de terror, pelos mais altos representantes dos
dez mil da alta. Quando o pânico da garrotte alcançou um certo auge, a Câmara
dos Lordes ordenou que se fizesse um inquérito e que se publicasse um relatório
acerca da deportação e servidão penal. A verdade veio ao de cima no volumoso
Livro Azul de 1863, e ficou provado por factos e números oficiais que os piores
criminosos condenados, os forçados de Inglaterra e Escócia, trabalhavam muito
menos arduamente e passavam de longe melhor do que os trabalhadores agrícolas
da Inglaterra e da Escócia. Mas, isto não foi tudo. Quando, em consequência da
Guerra Civil na América, os operários do Lancashire e do Cheshire foram
lançados para as ruas, a mesma Câmara dos Lordes enviou para os distritos
manufatureiros um médico encarregado de investigar qual a mais pequena
quantidade possível de carbono e de nitrogénio a ser ministrada da forma mais
barata e mais simples que, em média, pudesse apenas bastar para “prevenir
doenças [causadas] pela fome”. O Dr. Smith, o delegado médico, averiguou que 28
000 grãos de carbono e 1330 grãos de nitrogénio eram o abono semanal que
manteria um adulto médio... apenas acima do nível das doenças [causadas] pela
fome e descobriu, além disso, que essa quantidade estava muito perto de
coincidir com a alimentação escassa a que a pressão de uma miséria extrema
tinha efetivamente reduzido os operários do algodão. Mas, vede agora! O mesmo
sábio doutor foi, mais tarde, delegado de novo pelo alto funcionário médico do
Conselho Privado[N5] para examinar a alimentação das classes trabalhadoras mais
pobres. Os resultados das suas investigações estão contidos no Sixth Report on
Public Health [Sexto Relatório sobre Saúde Pública] publicado por ordem do
Parlamento no decurso do presente ano. O que é que o doutor descobriu? Que os
tecelões de sedas, as costureiras, os luveiros de pelica, os tecelões de meias,
etc, nem sequer recebiam, em média, a ração miserável dos operários do algodão,
nem sequer [recebiam] o montante de carbono e nitrogénio "apenas
suficiente para prevenir as doenças [causadas] pela fome".
“Além disso” – citamos o relatório – “no que toca às
famílias da população agrícola examinadas, verifica-se que mais de um quinto
tinha menos do que a estimada suficiência de alimentação carbonada, que mais de
um terço tinha menos do que a suficiência estimada de alimentação nitrogenada e
que em três condados (Berkshire, Oxfordshire e Somersetshire) a insuficiência
de alimentação nitrogenada era a dieta local média”. “É preciso não esquecer” –
acrescenta o relatório oficial – “que a privação de alimentação é muito
relutantemente aguentada e que, em regra, uma grande pobreza de dieta só
sobrevirá quando outras privações a precederam... Mesmo a limpeza terá sido
considerada cara ou difícil e, se ainda houver esforços de respeito por si
próprio para a manter, cada esforço desses representará tormentos de fome
adicionais”. “Estas são reflexões dolorosas, especialmente, se não nos
esquecermos de que a pobreza a que aludem não é a pobreza merecida pela
ociosidade; em todos os casos, é a pobreza de populações trabalhadoras. De
facto, o trabalho que fornece a escassa ração de alimento é, para a maior
parte, excessivamente prolongado”.
O relatório exibe o facto estranho, e bastante inesperado,
de que: “De entre as partes do Reino Unido” – Inglaterra, Gales, Escócia e
Irlanda –, “a população agrícola da Inglaterra”, a parte mais rica, “é
consideravelmente a mais mal alimentada”; mas, de que mesmo os operários
agrícolas do Berkshire, Oxfordshire e Somersetshire passam melhor do que grande
número de hábeis operários do Leste de Londres que trabalham a domicílio.
São estas as declarações oficiais publicadas por ordem do
Parlamento em 1864, durante o milénio do comércio livre, numa altura em que o
Chanceler do Tesouro Público disse à Câmara dos Comuns que “a condição média do
trabalhador inglês melhorou num grau que sabemos que é extraordinário e sem
exemplo na história de qualquer país ou qualquer idade”.
Destas congratulações oficiais destoa a seca observação do
Relatório oficial sobre a Saúde Pública:
“A saúde pública de um país significa a saúde das suas
massas, e as massas dificilmente serão saudáveis, a menos que, até na sua
própria base, sejam pelo menos moderadamente prósperas”.
Deslumbrado pelo “Progresso da Nação”, com as estatísticas a
dançar diante dos seus olhos, o Chanceler do Tesouro Público exclama num êxtase
impetuoso:
“De 1842 a 1852 o rendimento coletável do país aumentou 6
por cento; nos oito anos de 1853 a 1861, aumentou 20 por cento, na base tomada
em 1853! o fato é tão espantoso que é quase inacreditável!... Este inebriante
aumento de riqueza e poder”, acrescenta o Sr. Gladstone, “está inteiramente
confinado às classes possuidoras!”
Se se quiser saber em que condições de saúde arruinada, de
moral manchada e de ruína mental esse “inebriante aumento de riqueza e poder
inteiramente confinado às classes possidentes” foi e está a ser produzido pelas
classes do trabalho, olhe-se para o quadro das oficinas de alfaiates,
impressores e costureiras traçado no último Relatório sobre a Saúde Pública!
Compare-se com o Report of the Children's Employment Commission de 1863, onde é
afirmado, por exemplo, que:
“Os oleiros como classe, tanto os homens como as mulheres,
representam uma população muito degenerada, tanto fisicamente como
mentalmente”, que “a criança não saudável é, por sua vez, um pai não saudável”,
que “uma deterioração progressiva da raça tem de continuar” e que “a
degenerescência da população de Staffordshire ainda seria maior se não fosse o
recrutamento constante da região adjacente e os casamentos mistos com raças
mais saudáveis”.
Dê-se uma olhadela ao Livro Azul do Sr. Tremenheere sobre os
“Agravos de que se queixaram os oficiais de padaria”. E quem é que não
estremeceu com a declaração paradoxal feita pelos inspetores de fábricas, e
ilustrada pelo Registrar General, de que os operários do Lancashire estavam
efetivamente a melhorar em saúde, quando ficaram reduzidos à ração miserável de
alimento, em virtude da sua exclusão temporária da fábrica de algodão por falta
de algodão e de que a mortalidade das crianças estava a diminuir porque agora,
enfim, era às suas mães permitido darem-lhes em vez do cordial de Godfrey, os
seus próprios peitos.
Veja-se mais uma vez o reverso da medalha! Os Relatórios do
Imposto sobre Rendimento e Propriedade, apresentados perante a Câmara dos
Comuns em 20 de Julho de 1864, mostram-nos que às pessoas com rendimentos
anuais avaliados pelo coletor de impostos em 50 000 libras e mais se tinham
juntado, de 5 de Abril de 1862 a 5 de Abril de 1863, uma dúzia mais uma, tendo
o seu número crescido nesse único ano de 67 para 80. Os mesmos Relatórios
desvendam o facto de que cerca de 3000 pessoas dividem entre si um rendimento
[income] anual de cerca de 25 000 000 de libras esterlinas, bastante mais do
que o rendimento [revenue] total repartido anualmente por toda a massa dos
trabalhadores agrícolas de Inglaterra e Gales. Abri o censo de 1861, e
descobrireis que o número dos proprietários de terras masculinos de Inglaterra
e Gales diminuiu de 16 934 em 1851 para 15 066 em 1861, de tal modo que a
concentração de terras cresceu em dez anos 11 por cento. Se a concentração do
solo do país em poucas mãos se processar à mesma taxa, a questão da terra
ficará singularmente simplificada, tal como ficou no Império Romano, quando
Nero sorriu com a descoberta de que metade da Província de África era possuída
por seis senhores. Insistimos tanto tempo nestes «factos tão espantosos que são
quase inacreditáveis », porque a Inglaterra está à cabeça da Europa do comércio
e da indústria. Estaremos lembrados de que, há uns meses atrás, um dos filhos
refugiados de Louis Philippe felicitou publicamente o trabalhador agrícola
inglês pela superioridade da sua sorte sobre a do seu camarada menos
florescente do outro lado do Canal. Na verdade, com as cores locais alteradas e
numa escala algo contraída, os factos ingleses reproduzem-se em todos os países
industriosos e progressivos do Continente. Em todos eles, teve lugar, desde
1848, um inaudito desenvolvimento da indústria e uma inimaginável expansão das
importações e exportações. Em todos eles, «o aumento de riqueza e poder
inteiramente confinado às classes possidentes» foi verdadeiramente
«inebriante». Em todos eles, tal como em Inglaterra, uma minoria das classes
operárias viu os seus salários reais algo aumentados; embora, na maioria dos
casos, a subida monetária dos salários denotasse tanto um acesso real ao
conforto como o facto do hóspede do asilo de mendicidade ou do orfanato da
metrópole, por exemplo, em nada ser beneficiado por os seus meios de primeira
necessidade custarem 9£ 15s. e 8d. em 1861 contra 7£ 7s. e 4d. em 1852. Por
toda a parte, a grande massa das classes operárias se estava a afundar mais,
pelo menos à mesma taxa que as acima delas subiam na escala social. Em todos os
países da Europa, tornou-se agora uma verdade demonstrável a todo o espírito
sem preconceitos e apenas negada por aqueles cujo interesse está em confinar os
outros a um paraíso de tolos que nenhum melhoramento da maquinaria, nenhuma
aplicação da ciência à produção, nenhuns inventos de comunicação, nenhumas
novas colónias, nenhuma emigração, nenhuma abertura de mercados, nenhum
comércio livre, nem todas estas coisas juntas, farão desaparecer as misérias
das massas industriosas; mas que, na presente base falsa, qualquer novo
desenvolvimento das forças produtivas do trabalho terá de tender a aprofundar
os contrastes sociais e a agudizar os antagonismos sociais. A morte por fome,
na metrópole do Império Britânico, elevou-se quase ao nível de uma instituição,
durante esta época inebriante de progresso económico. Essa época fica marcada
nos anais do mundo pelo regresso acelerado, pelo âmbito crescente e pelo efeito
mais mortífero da peste social chamada crise comercial e industrial.
Após o fracasso das Revoluções de 1848, todas as
organizações partidárias e jornais partidários das classes operárias foram, no
Continente, esmagados pela mão de ferro da força, os mais avançados filhos do
trabalho fugiram desesperados para a República Transatlântica e os sonhos
efémeros de emancipação desvaneceram-se ante uma época de febre industrial, de
marasmo moral e de reação política. A derrota das classes operárias
continentais, em parte, devida à diplomacia do Governo inglês, agindo, então
tal como agora, em solidariedade fraterna com o Gabinete de São Petersburgo,
cedo espalhou os seus efeitos contagiosos para este lado do Canal. Enquanto a derrota
dos seus irmãos continentais desanimou as classes operárias inglesas e quebrou
a sua fé na sua própria causa, restaurou para o senhor da terra e para o senhor
do dinheiro a sua confiança algo abalada. Retiraram insolentemente concessões
já anunciadas. As descobertas de novas terras auríferas conduziram a um imenso
êxodo, que deixou um vazio irreparável nas fileiras do proletariado britânico.
Outros dos seus membros anteriormente ativos foram apanhados pelo suborno
temporário de mais trabalho e salários melhores e tornaram-se «fura-greves
políticos» [political blacks]. Todos os esforços feitos para manter ou
remodelar o Movimento Cartista falharam assinalavelmente; os órgãos de imprensa
da classe operária foram morrendo um a um pela apatia das massas e, de facto,
nunca antes a classe operária inglesa tinha parecido tão inteiramente
reconciliada com um estado de nulidade política. Se, então, não tinha havido
qualquer solidariedade de ação entre as classes operárias britânica e
continental, havia, para todos os efeitos, uma solidariedade de derrota.
E, contudo, o período que passou desde as Revoluções de 1848
não deixou de ter os seus aspectos compensadores. Apontaremos aqui apenas para
dois grandes fatos.
Após uma luta de trinta anos, travada com a mais admirável
perseverança, as classes operárias inglesas, aproveitando uma discórdia
momentânea entre os senhores da terra e os senhores do dinheiro, conseguiram
alcançar a Lei das Dez Horas. Os imensos benefícios físicos, morais e
intelectuais daí resultantes para os operários fabris, semestralmente
registados nos relatórios dos inspetores de fábricas, de todos os lados são
agora reconhecidos. A maioria dos governos continentais teve de aceitar a Lei
Fabril [Factory Act] inglesa em formas mais ou menos modificadas e o próprio
Parlamento inglês foi cada ano compelido a alargar a sua esfera de ação.
Mas, para além do seu alcance prático, havia algo mais para
realçar o maravilhoso sucesso desta medida dos operários. Através dos seus
órgãos de ciência mais notórios — tais como o Dr. Ure, o Professor Sénior e
outros sábios desse cunho —, a classe média tinha predito, e a contento dos
seus corações, provado, que qualquer restrição legal às horas de trabalho teria
de dobrar a finados pela indústria britânica que, qual vampiro, não podia senão
viver de chupar sangue, e ainda por cima sangue de crianças. Em tempos idos, o
assassínio de crianças era um rito misterioso da religião de Moloch, mas só era
praticado em algumas ocasiões muito solenes, uma vez por ano, talvez, e, mesmo
assim, Moloch não tinha uma propensão exclusiva para os filhos dos pobres. Esta
luta acerca da restrição legal das horas de trabalho enfureceu-se tanto mais
ferozmente quanto, à parte a avareza assustada, ela se referia, na verdade, à
grande contenda entre o domínio cego das leis da oferta e da procura que formam
a economia política da classe média e a produção social controlada por previsão
social, que forma a economia política da classe operária. Deste modo, a Lei das
Dez Horas não foi apenas um grande sucesso prático; foi a vitória de um
princípio; foi a primeira vez que em plena luz do dia a economia política da
classe média sucumbiu à economia política da classe operária.
Mas, estava reservada uma vitória ainda maior da economia
política do trabalho sobre a economia política da propriedade. Falamos do
movimento cooperativo, especialmente, das fábricas cooperativas erguidas pelos
esforços, sem apoio, de algumas «mãos» ousadas. O valor destas grandes
experiências sociais não pode ser exagerado. Mostraram com factos, em vez de
argumentos, que a produção em larga escala e de acordo com os requisitos da
ciência moderna pode ser prosseguida sem a existência de uma classe de patrões
empregando uma classe de braços; que, para dar fruto, os meios de trabalho não
precisam de ser monopolizados como meios de domínio sobre e de extorsão contra
o próprio trabalhador; e que, tal como o trabalho escravo, tal como o trabalho
servo, o trabalho assalariado não é senão uma forma transitória e inferior,
destinada a desaparecer ante o trabalho associado desempenhando a sua tarefa
com uma mão voluntariosa, um espírito pronto e um coração alegre. Em
Inglaterra, os gérmenes do sistema cooperativo foram semeados por Robert Owen;
as experiências dos operários, tentadas no Continente, foram, de facto, o
resultado prático das teorias, não inventadas, mas proclamadas em alta voz, em
1848.
Ao mesmo tempo, a experiência do período de 1848 a 1864
provou fora de qualquer dúvida que o trabalho cooperativo – por mais excelente que
em princípio [seja] e por mais útil que na prática [seja] –, se mantido no
círculo estreito dos esforços casuais de operários privados, nunca será capaz
de parar o crescimento em progressão geométrica do monopólio, de libertar as
massas, nem sequer de aliviar perceptivelmente a carga das suas misérias. É
talvez por esta precisa razão que nobres bem-falantes, filantrópicos
declamadores da classe média e mesmo agudos economistas políticos,
imediatamente se voltaram todos com cumprimentos nauseabundos para o preciso
sistema de trabalho cooperativo que em vão tinham tentado matar à nascença,
ridicularizando-o como Utopia do sonhador ou estigmatizando-o como sacrilégio
do Socialista. Para salvar as massas industriosas, o trabalho cooperativo
deveria ser desenvolvido a dimensões nacionais e, consequentemente, ser
alimentado por meios nacionais. Contudo, os senhores da terra e os senhores do
capital sempre usarão os seus privilégios políticos para defesa e perpetuação
dos seus monopólios económicos. Muito longe de promover, continuarão a colocar
todo o impedimento possível no caminho da emancipação do trabalho. Lembremo-nos
do escárnio com o qual, na última sessão, Lord Palmerston deitou abaixo os
defensores da Lei dos Direitos dos Rendeiros Irlandeses [Irish Tenants' Right
Bill]. A Câmara dos Comuns, gritou ele, é uma casa de proprietários de terras.
Conquistar poder político tornou-se, portanto, o grande
dever das classes operárias. Parecem ter compreendido isto, porque em
Inglaterra, Alemanha, Itália e França tiveram lugar renascimentos simultâneos e
estão a ser feitos esforços simultâneos para a reorganização política do
partido dos operários.
Possuem um elemento de sucesso – o número; mas o número só
pesa na balança se unido pela combinação e guiado pelo conhecimento. A
experiência passada mostrou como a falta de cuidado por este laço de
fraternidade, que deve existir entre os operários de diferentes países e
incitá-los a permanecer firmemente ao lado uns dos outros em toda a sua luta
pela emancipação, será castigada pela derrota comum dos seus esforços
incoerentes. Este pensamento incitou os operários de diferentes países,
congregados em 28 de setembro de 1864 numa reunião pública em St. Martin's
Hall, a fundar a Associação Internacional.
[Uma] outra convicção influenciou [ainda] esta reunião.
Se a emancipação das classes operárias requer o seu concurso
fraterno, como é que irão cumprir essa grande missão, com uma política externa
que persegue objetivos criminosos, joga com preconceitos nacionais e dissipa em
guerras piratas o sangue e o tesouro do povo? Não foi a sabedoria das classes
dominantes, mas a resistência heroica das classes operárias de Inglaterra à sua
loucura criminosa, que salvou o Ocidente da Europa de mergulhar de cabeça numa
cruzada infame pela perpetuação e propagação da escravatura do outro lado do
Atlântico. A aprovação desavergonhada, a simpatia trocista ou a indiferença
idiota com que as classes superiores da Europa assistiram a que a fortaleza de
montanha do Cáucaso caísse como presa da Rússia e a heroica Polônia fosse
assassinada pela Rússia; as imensas e irresistidas usurpações desse poder
bárbaro, cuja cabeça está em São Petersburgo e cujos braços estão em todos os
Gabinetes da Europa, ensinaram às classes operárias o dever de dominarem elas
próprias os mistérios da política internacional, de vigiarem os atos
diplomáticos dos seus respectivos Governos, de os contra-atacarem, se
necessário, por todos os meios ao seu dispor, [o dever de,] quando incapazes de
o impedirem, se juntarem em denúncias simultâneas e de reivindicarem as simples
leis da moral e da justiça, que deveriam governar as relações dos indivíduos
privados, como as regras supremas do comércio das nações.
O combate por semelhante política externa faz parte da luta
geral pela emancipação das classes operárias.
Proletários de todos os países, uni-vos!
Documento escrito por Karl Marx para a fundação da
Associação Internacional dos Trabalhadores, em 28 de Setembro de 1864 numa
reunião pública, realizada em St. Martin's Hall, Long Acre, Londres
TEMAS:
Karl Marx
Marxismo-leninismo
"O Partido Socialista e o Revolucionarismo sem Partido"
Lenin:
02.04.2016
O movimento revolucionário da Rússia, ao abarcar rápidamente
novos e novos setores da população, está criando toda uma série de organizações
à margem dos partidos. A necessidade de união manifesta-se com força tanto
maior quanto mais tempo foi contida e perseguida. As organizações, de uma ou de
outra forma, se bem que frequentemente ainda não cristalizadas, surgem sem
cessar, o seu caráter é extremamente original. Aqui não há limites nitidamente
assinalados semelhantes aos das organizações europeias. Os sindicatos adquirem
caráter político. A luta política funde-se com a econômica — por exemplo, sob a
forma de greves —, criando tipos mistos de organizações temporárias ou mais ou
menos permanentes.
Qual é o significado desse fenômeno? Qual deve ser a atitude
da social-democracia diante dele?
O rigoroso espírito de partido é consequência e resultado de
uma luta de classes altamente desenvolvida. E, ao contrário, no interesse de
uma ampla e aberta luta de classes é necessário o desenvolvimento de um
rigoroso espírito de partido. Por isso, o partido do proletariado consciente, a
social-democracia, combate sempre com absoluta razão a ideia de se situar à
margem dos partidos, esforçando-se invariavelmente para criar um Partido Operário
Socialista coeso e fiel aos princípios. Esse trabalho tem êxito entre as massas
à medida em que o desenvolvimento do capitalismo divide todo o povo, cada vez
mais profundamente, em classes, aguçando as contradições entre elas.
É perfeitamente compreensível que a presente revolução na
Rússia tenha engendrado e engendre tantas organizações situadas à margem dos
partidos. Por seu conteúdo econômico-social, esta revolução é democrática ou,
melhor, burguesa. Essa revolução derruba o regime autocrático-feudal, abrindo
campo livre ao regime burguês, satisfazendo assim as reivindicações de todas as
classes da sociedade burguesa, sendo, nesse sentido, uma revolução de todo o
povo. Isso não significa, é claro, que nossa revolução não tenha caráter de
classe; naturalmente que o tem. Mas esta revolução é dirigida contra as classes
e castas que caducaram ou estão caducando do ponto de vista da sociedade
burguesa, classes e castas estranhas a essa sociedade e que impedem o seu
desenvolvimento. E como toda a vida econômica do país já é burguesa em todos os
seus traços fundamentais, como a imensa maioria da população já vive de fato em
condições burguesas de existência, os “contrarrevolucionários são, portanto,
insignificantes em número, são na realidade “um punhado” em comparação com “o
povo”. O caráter de classe da revolução burguesa manifesta-se, pois,
inevitavelmente, no seu caráter “popular”. E por isso, à primeira vista, sem
caráter de classe, mas como luta de todas as classes da sociedade burguesa
contra a autocracia e a servidão.
A época da revolução burguesa distingue-se, tanto na Rússia
como em outros países, por um desenvolvimento relativamente incompleto das
contradições de classe da sociedade capitalista. É verdade que na Rússia o
capitalismo está, hoje, muito mais desenvolvido do que na Alemanha de 1848, sem
falar da França de 1789; mas não há dúvida de que as contradições puramente
capitalistas ainda estão bastante encobertas em nosso país pelas contradições
entre a “cultura” e o asiatismo, o europeísmo e o tartarismo, o capitalismo e o
regime de servidão, isto é, no primeiro plano se apresentam reivindicações cuja
satisfação impulsionará o desenvolvimento do capitalismo, o depurará da escória
do feudalismo e melhorará as condições de vida e de luta, tanto do proletariado
como da burguesia.
Com efeito, se examinarmos o número infinito de
reivindicações, exigências e doléances (queixas) hoje formuladas na Rússia em
cada fábrica ou escritório, em cada regimento, seção da guarda municipal,
paróquia, centro de ensino, etc, etc, comprovaremos facilmente que a imensa
maioria delas são, se é possível exprimir-se assim, reivindicações de caráter
estritamente “cultural”. Quero dizer que não são, propriamente falando,
reivindicações específicas de classe, mas exigências de sentido
fundamentalmente jurídico, exigências que, longe de destruir o capitalismo,
colocam-nos nos marcos do europeísmo e libertam-no da barbárie, da selvageria,
do suborno e de outros restos “russos” do regime de servidão. Na realidade,
também as reivindicações proletárias limitam-se, na maioria dos casos, a exigir
transformações plenamente realizáveis nos limites do capitalismo. O
proletariado da Rússia reclama, hoje, de maneira imediata, não o que mina o
capitalismo, mas o que o purifica e o que acelera e impulsiona seu
desenvolvimento.
Naturalmente, a situação especial do proletariado na
sociedade capitalista faz com que a inclinação dos operários para o socialismo,
a união dos operários com o partido socialista, abra caminho espontaneamente
nas próprias fases iniciais do movimento. Mas as reivindicações nitidamente
socialistas são ainda coisa do futuro, e na ordem-do-dia figuram as
reivindicações democráticas dos operários na política; bem como as
reivindicações econômicas dentro dos limites do capitalismo, no terreno da
economia. Inclusive o proletariado faz a revolução, por assim dizer, dentro dos
limites do programa mínimo e não do programa máximo. Não é nem mesmo preciso
falar do campesinato, dessa gigantesca massa da população, esmagadora por seu
número. Seu “programa máximo”, seus objetivos finais, não vão além das
fronteiras do capitalismo, que se desenvolveria com mais amplitude e força se
toda a terra passasse às mãos dos camponeses e de todo o povo. A revolução
camponesa é atualmente uma revolução burguesa, por muito que essas palavras
“ofendam” o ouvido sentimental dos cavalheiros sentimentais de nosso socialismo
pequeno-burguês.
O caráter bem delimitado da revolução em desenvolvimento
origina organizações à margem dos partidos, em um processo inteiramente
natural. Todo o movimento, em seu conjunto, adquire inevitavelmente o selo da
independência externa em relação aos partidos, a aparência da falta de filiação
política; mas, está claro, somente a aparência. A necessidade de uma vida “humana”
e culta, da união, da defesa da própria dignidade e dos direitos do homem e do
cidadão abarca tudo e todos, agrupa todas as classes, diminui com gigantesco
ímpeto qualquer limite partidário, perturba as pessoas que ainda estão muito
longe de ser capazes de se elevar até às posições partidárias. A urgência da
conquista dos direitos e reformas imediatas, fundamentalmente necessárias,
relega, por assim dizer, a segundo plano, qualquer ideia e pensamento sobre o
que virá mais tarde. A paixão pela luta atual, necessária e legítima, sem o que
não seria possível o êxito, obriga a idealizar esses objetivos imediatos e
elementares, pinta-os de cor-de-rosa e inclusive envolve-os às vezes em
roupagem fantástica; o simples democratismo, o vulgar democratismo burguês, é
confundido com o socialismo e classificado como socialismo. Tudo é, ao que
parece, “independente dos partidos”; tudo se funde, por assim dizer, em um só
movimento “libertador” (que, na realidade, liberta toda a sociedade burguesa);
tudo adquire um leve verniz superficial de “socialismo”, principalmente graças
ao papel de vanguarda do proletariado socialista na luta democrática.
A ideia da posição independente na luta dos partidos não
pode deixar de, pelo menos, alcançar, em tais condições, determinadas vitórias
passageiras. A independência em relação aos partidos não pode, pelo menos,
deixar de passar a ser uma palavra de ordem da moda, pois a moda se agarra
impotente ao reboque dos acontecimentos, e uma organização sem cunho partidário
aparece precisamente como o fenômeno mais “comum” da superfície política;
democratismo à margem dos partidos, movimento grevista à margem dos partidos,
revolucionarismo à margem dos partidos.
Pergunta-se agora: qual tem que ser, diante desse fato, a
posição independente com respeito aos partidos, e diante dessa ideia da
independência com respeito aos partidos, a atitude dos partidários e
representantes das diferentes classes? Não no sentido subjetivo, mas objetivo,
isto é, não no sentido de qual deva ser a atitude diante desse fato, e sim no
sentido de que atitude se impõe inevitavelmente subordinada aos interesses e
aos pontos de vista das diferentes classes.
II
Como já indicamos, a independência a respeito dos partidos é
um produto ou, se quereis, uma expressão do caráter burguês de nossa revolução.
A burguesia não pode deixar de, pelo menos, tender para essa independência,
pois a ausência de partidos entre os que lutam pela liberdade da sociedade
burguesa significa a ausência de uma nova luta contra esta mesma sociedade
burguesa. Quem desenvolve uma luta “independente dos partidos” pela liberdade,
ou não compreende o caráter burguês da liberdade, ou consagra esse regime
burguês, ou adia para as calendas gregas a luta contra ele, o “aperfeiçoamento”
do referido regime. E, pelo contrário, quem consciente ou inconscientemente se
mantém ao lado da ordem de coisas burguesas, não pode deixar de, pelo menos,
sentir inclinação pela ideia de se situar à margem dos partidos.
Numa sociedade baseada em classes, a luta entre as classes
hostis converte-se de maneira infalível, numa determinada fase de seu
desenvolvimento, em luta política. A luta entre os partidos é a expressão mais
perfeita, completa e acabada da luta política entre as classes. A falta de
cunho político significa indiferença diante da luta dos partidos. Mas essa
indiferença não equivale à neutralidade, à omissão na luta, pois na luta de
classes não pode haver neutros, na sociedade capitalista não é possível
“abster-se” de participar da troca de produtos ou da força de trabalho. E essa
troca engendra infalivelmente a luta econômica e, a seguir, a luta política.
Por isso, a indiferença diante da luta não é, na realidade, inibição diante da luta,
abstenção dela ou neutralidade. A indiferença é o apoio tácito ao forte, ao que
domina. Quem era indiferente na Rússia diante da autocracia antes de sua queda
durante a Revolução de Outubro apoiava tacitamente a autocracia. Quem é
indiferente na Europa contemporânea diante do domínio da burguesia, apoia,
tacitamente, a burguesia. Quem mantém uma atitude de indiferença diante da
ideia do caráter burguês da luta pela liberdade, apoia, tacitamente, o domínio
da burguesia nesta luta, o domínio da burguesia na nascente Rússia livre. A
indiferença política não é outra coisa senão a saciedade política. Aquele que
está farto é “indiferente” e “insensível” diante do problema do pão de cada
dia; porém o faminto será sempre um homem “de partido” nessa questão. A “indiferença
e insensibilidade” de uma pessoa diante do problema do pão de cada dia não
significa que não necessite de pão, mas que o tem sempre garantido, que nunca
precisa dele, que se acomodou bem no “partido” dos que estão saciados. A
posição negativa diante dos partidos na sociedade burguesa não é senão uma
expressão hipócrita, velada e passiva de quem pertence ao partido dos que estão
empanturrados, o partido dos que dominam, o partido dos exploradores.
A posição negativa diante dos partidos é uma ideia burguesa.
O espírito de partido é uma ideia socialista. Essa tese, em geral, é aplicável
a toda a sociedade burguesa. Naturalmente, é preciso saber aplicar esta verdade
geral às diferentes questões e casos particulares. Mas esquecer essa verdade em
certos momentos em que a sociedade burguesa em seu conjunto se lança contra a
servidão e a autocracia, significa renunciar de fato e por completo à crítica
socialista da sociedade burguesa.
A revolução russa, apesar de encontrar-se ainda em sua fase
inicial, já proporciona material suficiente para comprovar as considerações
acima expostas. O rigoroso espírito de partido foi e é defendido,
exclusivamente, pela social-democracia, pelo partido do proletariado
consciente. Nossos liberais, representantes dos pontos de vista da burguesia,
não podem transigir com o espírito socialista de partido, nem querem ouvir
falar da luta de classes: recordem-se, pelo menos, os discursos recentes do
senhor Roditchev, que repetiu pela enésima vez o que já havia sido dito e
repetido, tanto por Osvobojdenie, editado no estrangeiro, como pelos inúmeros e
submissos órgãos do liberalismo russo. Por último, a ideologia da classe média,
da pequena burguesia, foi claramente expressa nos pontos de vista dos
“radicais” russos de diferentes matizes, começando por Nasha Jizn, os
“radical-democratas”, e terminando pelos “socialistas revolucionários”. Onde
esses últimos confirmaram com maior clareza sua mescla de socialismo e
democratismo foi na questão agrária, e precisamente na palavra de ordem de
“socialização” (da terra, sem socialização do capital). É sabido também que são
transigentes com o radicalismo burguês e intransigentes com a ideia do espírito
social-democrático de partido.
Em nosso tema não entra como se refletem os interesses das
diferentes classes no programa e a tática dos liberais e radicais russos de
todos os matizes. Abordamos, aqui, somente de passagem, esse interessante
problema, e devemos passar agora às conclusões políticas práticas sobre a
atitude de nosso Partido diante das organizações sem cunho partidário.
É admissível a participação dos socialistas nas organizações
situadas à margem dos partidos? Se é, em que condições? Que tática é preciso
seguir nessas organizações?
A primeira pergunta não pode ser respondida com um não
absoluto, baseado nas considerações de princípios. Seria erro afirmar-se não
ser admissível, em nenhum caso e em nenhuma circunstância, a participação dos
socialistas nas organizações situadas à margem dos partidos (quer dizer,
burguesas, mais ou menos consciente ou inconscientemente). Na época da
revolução democrática, a renúncia a participar em organizações independentes
dos partidos equivaleria, em certos casos, a renunciar em participar na
revolução democrática. Mas, sem dúvida, os socialistas devem circunscrever
estreitamente esses “certos casos”, só admitindo essa participação em condições
determinadas e limitadas de modo rigoroso. Pois se as organizações
independentes dos partidos são engendradas, como já dissemos, por um nível
relativamente baixo de desenvolvimento da luta de classes, de outro lado, o
rigoroso espírito de partido é uma das condições que transformam a luta de
classes numa luta consciente, clara, precisa e fiel aos princípios.
A salvaguarda da independência ideológica e política do
partido do proletariado é obrigação constante, invariável e incondicional dos
socialistas. Quem não cumpre esta obrigação, deixa de fato de ser socialista,
por mais sinceras que sejam suas convicções “socialistas” (socialistas de
palavras). Para um socialista, a participação nas organizações sem cunho
partidário é permissível só como exceção. E os próprios fins desta participação
e seu caráter, as condições que ela exige, etc, devem estar inteiramente
subordinados à tarefa fundamental preparar e organizar o proletariado
socialista para a direção consciente da revolução socialista.
As circunstâncias podem obrigar-nos a participar em
organizações independentes dos partidos, sobretudo na época da revolução
democrática, e, em particular, de uma revolução democrática em que o
proletariado desempenhe papel relevante. Tal participação pode ser necessária,
por exemplo, para propagar o socialismo entre um auditório democrático não
definido, ou em benefício da luta conjunta de socialistas e democratas
revolucionários diante da contrarrevolução. No primeiro caso, a participação
será um meio de tornar os nossos pontos de vista conhecidos; no segundo, um
pacto de luta visando à realização de determinados objetivos revolucionários.
Em ambos os casos, a participação só pode ser temporária. Em ambos os casos, a
participação só é admissível com a condição de se resguardar inteiramente a
independência do partido operário e sob a condição de que todo o Partido, em
seu conjunto, controle e dirija obrigatoriamente os seus membros e grupos
“delegados” às associações ou conselhos situados à margem dos partidos.
Quando a atividade de nosso Partido era secreta, a
realização desse controle e dessa direção ofereciam enormes dificuldades, às
vezes quase insuperáveis. Agora, quando a atividade do Partido é cada vez mais
aberta, esse controle e essa direção podem e devem ser efetuados com a maior
amplitude, e indiscutivelmente não apenas pela “cúpula”, mas também pela “base”
do Partido, por todos os operários organizados que integram o Partido. Os
informes sobre a atuação dos social-democratas nas associações ou conselhos
independentes dos partidos e sobre as condições e os objetivos dela, bem como
as resoluções de qualquer tipo de organizações do Partido a propósito da
referida atuação devem, imediatamente, começar a fazer parte do trabalho
prático do partido operário. Só uma tal participação real do Partido em seu
conjunto, uma participação na orientação de todas as atividades desse caráter,
pode contrapor de fato o trabalho verdadeiramente socialista ao trabalho
democrático geral.
Que tática devemos aplicar nas associações independentes dos
partidos? Em primeiro lugar, aproveitar toda possibilidade para estabelecer
nossos próprios vínculos e para propagar nosso programa socialista na íntegra.
Em segundo lugar, determinar as tarefas políticas imediatas do momento, do
ponto de vista da realização mais completa e decidida da revolução democrática,
colocar palavras de ordem políticas na revolução democrática, formular o
“programa” das transformações que a democracia revolucionária em luta deve
levar a cabo, de modo diverso da tratante democracia liberal.
Só colocando o problema dessa maneira pode ser admissível e
fecunda a participação dos membros de nosso Partido nas organizações
revolucionárias independentes dos partidos, hoje criadas pelos operários,
amanhã pelos camponeses, depois de amanhã pelos soldados, etc. Só colocando
dessa maneira o problema estaremos em condições de cumprir a dupla tarefa do
partido operário na revolução burguesa: levar até o fim a revolução
democrática, ampliar e reforçar os quadros do proletariado socialista, que
necessita de liberdade para desencadear uma luta impiedosa pela derrubada do
domínio do capital.
por Lenin, publicado no Novaia Jizn, n.“ 22 e 27, 26 de
novembro e 2 de dezembro de 1905
TEMAS:
Marxismo-leninismo
Lênin
"Barbárie e Civilização"
Engels:
Acompanhamos o processo de dissolução da gens nos três
grandes exemplos particulares dos gregos, romanos e germanos. Para concluir,
pesquisaremos as condições econômicas gerais que na fase superior da barbárie
minavam já a organização gentílica da sociedade, e acabaram por fazê-la
desaparecer, com a entrada em cena da civilização. Para isso, O Capital de Marx
vai nos ser tão necessário quanto o livro de Morgan.
Nascida a gens na fase média do estado selvagem, e
desenvolvida na fase superior, ela alcançou seu apogeu, segundo nos permitem
julgar os documentos de que dispomos, na fase inferior da barbárie. Por essa
última, portanto, começaremos a nossa investigação.
Nela, onde os peles-vermelhas americanos vão-nos servir de
exemplo, encontramos a constituição gentílica completamente desenvolvida. Uma
tribo se divide em diversas gens, comumente em duas; com o aumento da população,
cada uma das gens primitivas se subdivide em várias gens filhas, para as quais
a gens-mãe persiste como fratria; a própria tribo se subdivide em várias
tribos, em cada uma das quais, na maioria dos casos, vamos achar as antigas
gens; uma confederação, pelo menos em certos casos, une as tribos aparentadas.
Essa organização simples é inteiramente adequada às condições sociais que a
engendraram. Não é mais do que um agrupamento espontâneo, capaz de dirimir
todos os conflitos que possam nascer no seio da sociedade a que corresponde. Os
conflitos exteriores são resolvidos pela guerra, que pode resultar no
aniquilamento da tribo, mas nunca em sua escravização. A grandeza do regime da
gens — e também a sua limitação — é que nele não cabiam a dominação e a servidão.
Internamente, não existem diferenças, ainda, entre direitos e deveres; para o
índio não existe o problema de saber se é um direito ou um dever tomar parte
nos assuntos de interesse social, executar uma vingança de sangue ou aceitar
uma compensação; tal problema lhe pareceria tão absurdo quanto a questão de
saber se comer, dormir e casar é um dever ou um direito. Nem podia haver, na
gens ou na tribo, divisão em diferentes classes sociais. E isso nos leva ao
exame da base econômica dessa ordem de coisas.
A população fica muito dispersa e só é relativamente densa
no local de residência da tribo, ao redor do qual se estende uma vasta região
para a caça, à qual se segue a zona neutra de bosques protetores que separam as
tribos umas das outras. A divisão do trabalho é absolutamente espontânea: só
existe entre os dois sexos. O homem vai à guerra, incumbe-se da caça e da
pesca, procura as matérias-primas para a alimentação, produz os instrumentos
necessários para a consecução dos seus fins. A mulher cuida da casa, prepara a
comida e confecciona as roupas: cozinha, fia e cose. Cada um manda em seu
domínio: o homem na floresta, a mulher em casa. Cada um é proprietário dos
instrumentos que elabora e usa: o homem possui as armas e os petrechos de caça
e pesca, a mulher é dona dos utensílios caseiros. A economia doméstica é
comunista, abrangendo várias e amiúde numerosas(1) famílias. O resto é feito e
utilizado em comum, é de propriedade comum: a casa, as canoas, as hortas. É
aqui e somente aqui que nós vamos encontrar "a propriedade fruto do
trabalho pessoal", que os jurisconsultos e economistas atribuem à
sociedade civilizada e que é o último subterfúgio jurídico em que se apoia,
hoje, a propriedade capitalista.
Mas não foi em todas as partes que os homens permaneceram
nessa etapa. Na Ásia, encontraram animais que se deixaram domesticar e puderam
ser criados no cativeiro. Antes, era preciso ir à caça para capturar a fêmea do
búfalo selvagem; agora, domesticada, ela dava uma cria a cada ano e
proporcionava, ainda por cima, leite. Certas tribos mais adiantadas — os árias
e os semitas, e talvez os turanianos — fizeram da domesticação e da criação do
gado a sua principal ocupação. As tribos pastoras se destacaram do restante da
massa dos bárbaros. Esta foi a primeira grande divisão social do trabalho.
Estas tribos pastoris não só produziam víveres em maior quantidade como também
em maior variedade do que o resto dos bárbaros. Tinham sobre eles a vantagem de
possuir mais leite, lacticínios e carnes; além disso, dispunham de peles, lãs,
couros de cabra, fios e tecidos, cuja quantidade aumentava na medida em que
aumentava a massa das matérias-primas. Isso tornou possível, pela primeira vez,
o intercâmbio regular de produtos. Nas fases de evolução anteriores apenas
podiam ser realizadas trocas ocasionais. É verdade que uma habilidade
excepcional no fabrico de armas e instrumentos pode produzir uma divisão
transitória de trabalho. Assim, foram encontrados em muitos lugares restos de
oficinas para a fabricação de instrumentos de pedra, procedentes dos últimos
tempos da Idade da Pedra. Os artífices que desenvolveram sua habilidade nessas
oficinas hão de ter trabalhado por conta da comunidade, como o fazem, ainda
hoje, os artesãos das comunidades gentílicas da Índia. De qualquer modo, nessa
fase de desenvolvimento, só podia haver troca no seio mesmo da tribo, e ainda
assim em caráter excepcional. Mas quando as tribos pastoras se destacaram do
resto dos selvagens, encontramos inteiramente formadas as condições necessárias
para a troca entre membros de tribos diferentes e para o desenvolvimento e
consolidação do comércio como uma instituição regular. A princípio, as trocas
se fizeram entre as tribos através dos chefes gentílicos; mas, quando os
rebanhos começaram pouco a pouco a ser propriedade privada, a troca entre
indivíduos foi predominando mais e mais, até chegar a ser a forma única. O
principal artigo oferecido pelas tribos pastoras aos seus vizinhos era o gado;
o gado chegou a ser a mercadoria pela qual todas as demais eram avaliadas,
mercadoria que era recebida com satisfação em troca de qualquer outra; em uma
palavra: o gado desempenhou as funções de dinheiro, e serviu como tal, já
naquela época. Foi com essa necessidade e rapidez que se desenvolveu, no início
mesmo da tioca de mercadorias, a exigência de uma mercadoria que servisse de,
dinheiro.
A horticultura, provávelmente desconhecida dos asiáticos da
fase inferior da barbárie, apareceu entre eles mais tarde, na fase média, como
precursora da agricultura. O clima dos piar r.altos turanianos não permite a
vida pastoril, a não ser com provisões de forragem para um longo e rigoroso
inverno; foi preciso cultivar ali, portanto, os prados e os cereais. O mesmo
pode ser dito das estepes situadas ao norte do Mar Negro. Mas, se a princípio o
grão foi recolhido para o gado, não tardou a ser também um alimento para o
homem. A terra cultivada continuou sendo propriedade da tribo, entregue em
usufruto, primeiro à gens, depois às comunidades de famílias, e por último aos
indivíduos estes devem ter tido certos direitos de posse — nada além disso.
Entre os descobrimentos industriais dessa fase, há dois
especialmente importantes: o primeiro é o tear, o segundo é a fundição de
minerais e o trabalho com metais fundidos. O cobre, o estanho e o bronze — este
combinação dos dois primeiros — eram os mais importantes; com o bronze eram
fabricados instrumentos e armas, que, entretanto, não podiam substituir os de
pedra. Isso só seria possível com o ferro, mas ainda não se sabia de que modo
consegui-lo. O ouro e a prata começaram a ser empregados em joias e enfeites, e
provavelmente logo alcançaram valor bem mais elevado que o cobre e o bronze.
O desenvolvimento de todos os ramos da produção — criação de
gado, agricultura, ofícios manuais domésticos — tornou a força de trabalho do
homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção. Ao
mesmo tempo, aumentou a soma de trabalho diário correspondente a cada membro da
gens, da comunidade doméstica ou da família isolada. Passou a ser conveniente
conseguir mais força de trabalho, o que se logrou através da guerra; os
prisioneiros foram transformados em escravos. Dadas as condições históricas
gerais de então, a primeira grande divisão social do trabalho, ao aumentar a
produtividade deste, e por conseguinte a riqueza, e ao estender o campo da
atividade produtora, tinha que trazer consigo — necessariamente — a escravidão.
Da primeira grande divisão social do trabalho, nasceu a primeira grande divisão
da sociedade em duas classes: senhores e escravos, exploradores e explorados.
Continuamos ignorando, até agora, quando e como os rebanhos
deixaram de ser propriedade comum da tribo ou da gens e passaram a ser
patrimônio dos diferentes chefes de família; mas a mudança, no essencial, deve
ter ocorrido nessa fase. E, com a aparição dos rebanhos e outras riquezas
novas, operou-se uma revolução na família. O providenciar a alimentação fora
sempre assunto do homem; e os instrumentos necessários para isso eram
produzidos por ele e de sua propriedade ficavam sendo. Os rebanhos constituíam
nova fonte de alimentos e utilidades; sua domesticação e sua ulterior criação
competiam ao homem. Por isso o gado lhe pertencia, assim como as mercadorias e
os escravos que obtinha em troca dele. Todo o excedente deixado agora pela
produção pertencia ao homem; a mulher tinha participação no consumo, porém não
na propriedade. O "selvagem" — guerreiro e caçador — se tinha
conformado em ocupar o segundo lugar na hierarquia doméstica e dar precedência
à mulher; o pastor, mais "suave", envaidecido com a riqueza, tomou o
primeiro lugar, relegando a mulher para o segundo. E ela não podia reclamar. A
divisão do trabalho na família havia sido a base, para a distribuição da
propriedade entre o homem e a mulher. Essa divisão do trabalho na família
continuava sendo a mesma, mas agora transtornava as relações domésticas, pelo
simples fato de ter mudado a divisão do trabalho fora da família. A mesma causa
que havia assegurado à mulher sua anterior supremacia na casa — a exclusividade
no trato dos problemas domésticos — assegurava agora a preponderância do homem
no lar: o trabalho doméstico da mulher perdia agora sua importância, comparado
com o trabalho produtivo do homem; este trabalho passou a ser tudo; aquele, uma
insignificante contribuição. Isso demonstra que a emancipação da mulher e sua
equiparação ao homem são e continuarão sendo impossíveis, enquanto ela
permanecer excluída do trabalho produtivo social e confinada ao trabalho
doméstico, que é um trabalho privado. A emancipação da mulher só se torna
possível quando ela pode participar em grande escala, em escala social, da
produção, e quando o trabalho doméstico lhe toma apenas um tempo
insignificante. Esta condição só pode ser alcançada com a grande indústria
moderna, que não apenas permite o trabalho da mulher em grande escala, mas até
o exige, e tende cada vez mais a transformar o trabalho doméstico privado em
uma indústria pública.
A supremacia efetiva do homem na casa tinha posto por terra
os últimos obstáculos que se opunham ao seu poder absoluto. Esse poder absoluto
foi consolidado e eternizado pela queda do direito materno, pela introdução do
direito paterno e a passagem gradual do matrimônio sindiásmico à monogamia. Mas
isso abriu também uma brecha na antiga ordem gentílica: a família individual
tornou-se uma potência e levantou-se ameaçadoramente frente à gens.
O seguinte marco de progresso é o que nos leva à fase
superior da barbárie — período em que todos os povos civilizados viveram sua
época heroica; período da espada de ferro, mas também do arado e do machado de
ferro. Ao pôr este metal a seu serviço, o homem se fez dono da última e mais
importante das matérias-primas que tiveram, na história, um papel
revolucionário; a última, se excetuarmos a batata. O ferro tornou possível a
agricultura em grande escala e a preparação, para o cultivo, de grandes áreas
de florestas; deu aos artesãos um instrumento cuja dureza e cujo fio jamais
haviam podido ter pedra alguma ou qualquer metal. Tudo isso foi acontecendo aos
poucos: o primeiro ferro era frequentemente mais mole do que o bronze. Por isso
foi lenta a desaparição das armas de pedra; machados de pedra ainda eram usados
em combate no Canto de Hildebrando e até na batalha de Hastmgs, em 1066, O
progresso, contudo, era irresistível, menos intermitente e mais célere. A
cidade, encerrando casas de pedra ou de tijolo dentro das suas muralhas de
pedra com torres e ameias, transformou-se na residência central da tribo ou da
confederação de tribos. Isso marca um notável progresso na arquitetura, mas é
também um sinal do perigo crescente e da necessidade de defesa. A riqueza
aumentava com rapidez, mas sob a forma de riqueza individual; a arte de tecer,
o trabalho com os metais e outros ofícios de crescente especialização, deram
variedade e perfeição sempre maior à produção; a agricultura principiou a
fornecer, além de cereais, legumes e frutas, azeites e vinhos, cuja preparação
já tinha sido aprendida. Um trabalho tão variado já não podia ser realizado por
um só indivíduo e se produziu a segunda grande divisão social do trabalho: o
artesanato se separou da agricultura. O constante crescimento da produção, e
com ela da produtividade do trabalho, aumentou o valor da força de, trabalho do
homem; a escravidão, ainda em estado nascente e esporádico na fase anterior,
converteu-se em elemento básico do sistema social. Os escravos deixaram de ser
meros auxiliares e eram levados às dezenas para trabalhar nos campos e nas
oficinas. Ao dividir-se a produção nos dois ramos principais — agricultura e
oficios manuais — surgiu a produção diretamente para a troca, a produção
mercantil, e com ela o comércio, não só no interior e nas fronteiras da tribo
como também por mar. Tudo isso ainda estava pouco desenvolvido; os metais
preciosos apenas começaram a se converter na mercadoria-moeda preponderante e
universal; mas as moedas ainda não eram cunhadas, os metais eram trocados por
peso.
A diferença entre ricos e pobres veio somar-se à diferença
entre homens livres e escravos; a nova divisão do trabalho acarretou uma nova
divisão da sociedade em classes. A diferença de riqueza entre os diversos
chefes de família destruiu as antigas comunidades domésticas comunistas, em
toda parte onde estas ainda subsistiam; acabou-se o trabalho comum da terra por
conta daquelas comunidades. A terra cultivada foi distribuída entre as famílias
particulares, a princípio por tempo limitado, depois para sempre; a transição à
propriedade privada completa foi-se realizando aos poucos, paralelamente à
passagem do matrimônio sindiásmico à monogamia. A família individual principiou
a transformar-se na unidade econômica da sociedade.
A crescente densidade da população exigiu maior união, tanto
interna como externamente. Torna-se uma necessidade, em toda parte, a
confederação de tribos consanguíneas, e logo a sua fusão; por isso, seus
territórios se fundiram no território comum do povo. O chefe militar do povo —
rex, basileu, thiudans — veio a tornar-se um funcionário permanente e
indispensável. A assembleia do povo foi criada onde ainda não existia. O chefe
militar, o conselho e a assembleia do povo constituíam os órgãos da democracia
militar egressa da sociedade gentílica. E essa democracia era militar porque a
guerra e a organização para a guerra eram, agora, funções regulares na vida do
povo. As riquezas dos vizinhos excitavam a ambição dos povos, que já começavam
a encarar a aquisição de riquezas como uma das finalidades precípuas da vida.
Eram bárbaros: o saque lhes parecia mais fácil e até mais honroso do que o
trabalho produtivo. A guerra, feita anteriormente apenas para vingar uma
agressão ou com o objetivo de ampliar um território que se tornara
insuficiente, era empreendida agora sem outro propósito que o do saque, e se
transformou em um negócio permanente. Não era por acaso que se erigiam
formidáveis muralhas em torno das novas cidades fortificadas; seus fossos eram
o túmulo da gens e suas torres alcançavam já a civilização. Internamente,
deu-se o mesmo. As guerras de rapina aumentavam o poder do supremo chefe
militar e também dos chefes inferiores; a eleição habitual dos seus sucessores
nas mesmas famílias, sobretudo a partir da introdução do direito paterno,
passou gradualmente a ser sucessão hereditária — tolerada a princípio, em
seguida exigida, e finalmente usurpada; com isso, foram assentados os alicerces
da monarquia e da nobreza hereditária. Dessa forma, os órgãos da constituição
gentílica foram sendo arrancados de suas raízes populares, raízes na gens, na
fratria e na tribo, com o que todo o regime gentílico acabou por se transformar
em seu contrário: de uma organização de tribos para a livre regulamentação de
seus próprios assuntos, fez-se, uma organização para o saque e a opressão dos
vizinhos; e, correspondentemente, seus órgãos deixaram de ser instrumentos da
vontade do povo, convertendo-se em órgãos independentes, para dominar e oprimir
seu próprio povo. Isso nunca teria sido possível se a cobiça das riquezas não
houvesse dividido os membros da gens em ricos e pobres,
"se as diferenças de propriedade no seio de uma mesma
gens não tivessem transformado a comunhão de interesses em antagonismo entre os
membros da gens" (Marx)
e se o incremento da escravidão já não tivesse começado a
fazer considerar o trabalho para ganhar a vida como algo para escravos, mais
desonroso do que a pilhagem.
★ ★ ★
Chegamos aos umbrais da civilização, que se inicia por outro
progresso na divisão do trabalho. No período inferior, os homens produziam
somente para as suas necessidades diretas; as trocas reduziam-se a casos
isolados e tinham por objeto os excedentes obtidos por acaso. Na fase média da
barbárie já nos defrontamos com uma propriedade em forma de gado, entre os
povos pastores, e, quando os rebanhos são bastante grandes, com uma produção
com excedente regular sobre o consumo próprio; ao mesmo tempo, verificamos uma
divisão do trabalho entre os povos pastores e as tribos mais atrasadas, que não
tinham rebanhos; e daí dois diferentes graus de produção coexistindo, o que
implica em condições para uma certa regularidade de troca. A fase superior da
barbárie nos traz uma divisão ainda maior do trabalho: a divisão entre a
agricultura e o artesanato; e daí a produção cada vez maior de objetos
fabricados diretamente para a troca, e a elevação da troca entre produtores
individuais à categoria de necessidade vital da sociedade. A civilização
consolida e aumenta todas essas divisões do trabalho já existentes, acentuando
sobretudo o contraste entre a cidade e o campo (contraste Que permitiu à cidade
dominar economicamente o campo — como na antiguidade — ou ao campo dominar
economicamente a cidade, como na Idade Média), e acrescenta uma terceira
divisão do trabalho, peculiar a ela e de importância primacial, criando uma
classe que não se ocupa da produção e sim, exclusivamente, da troca dos
produtos: os comerciantes.
Até aqui, apenas a produção havia determinado os processos
de formação de classes novas; as pessoas que tomavam parte nela se dividiam em
diretores e executores, ou em produtores em grande e pequena escala. Agora,
surge uma classe que, sem tomar absolutamente parte na produção, conquista a
direção geral da mesma e avassala economicamente os produtores: uma classe que
se transforma no intermediário indispensável entre dois produtores, e os
explora a ambos. Sob o pretexto de poupar aos produtores as fadigas e os riscos
da troca de produtos, de encontrar saída para os produtos até nos mercados mais
distantes, tornando-se assim a classe mais útil da sociedade, forma-se uma
classe de aproveitadores, uma classe de verdadeiros parasitas sociais, que, em
compensação por seus serviços, na realidade insignificantes, retira a nata da
produção nacional e estrangeira, concentra rapidamente em suas mãos riquezas
enormes e adquire uma influência social correspondente a estas, ocnmndo, por
isso mesmo, no decurso desse período de civilização, posição de mais e mais
destaque, logrando um domínio sempre maior sobre a produção, até gerar um
produto próprio: as crises comerciais periódicas.
É verdade que, no estágio de desenvolvimento que estamos
analisando, a nascente classe dos comerciantes ainda não suspeitava das grandes
coisas que lhe estavam reservadas. Mas se formou e se tornava indispensável — e
isso era suficiente. Com ela, veio o dinheiro-metal, a moeda cunhada, novo meio
para que o não-produtor dominasse o produtor e sua produção. Havia sido
encontrada a mercadoria por excelência, que encerra em estado latente todas as
demais, o instrumento mágico que se transforma, à vontade, em todas as coisas
desejadas e desejáveis. Quem o possuía era dono do mundo da produção. E quem o
possuiu antes de todos? O comerciante. Era suas mãos, o culto do dinheiro
estava garantido. O comerciante tratou de tornar claro que todas as
mercadorias, e com elas os seus produtores, deveriam prosternar-se ante o
dinheiro. Provou de maneira prática que as demais formas de riqueza não
passavam de quimeras, em face dessa genuína encarnação da riqueza como tal. De
então para cá, nunca c poder do dinheiro se manifestaria com tanta brutalidade
e violência primitiva como naquele período de sua juventude. Em seguida à
compra de mercadorias por dinheiro, vieram os empréstimos, e com eles os juros
e a usura. Nenhuma legislação posterior submete, de maneira tão dura e
irremissível, o devedor ao credor usurário, como o faziam as leis da antiga
Atenas o da antiga Roma; e, nos dois casos, essas leis nasceram
espontaneamente, sob a forma de direito consuetudinário, não sujeitas a outra
compulsão que a economia.
Ao lado da riqueza em mercadorias e escravos, ao lado da
riqueza em dinheiro, apareceu a riqueza em terras. A posse de parcelas do solo,
concedida primitivamente pela gens ou pela tribo aos indivíduos, fortalecera-se
a tal ponto que a terra já podia ser transmitida por herança. O que nos últimos
tempos eles exigiam antes de tudo era ficarem livres dos direitos que as
comunidades gentílicas tinham sobre essas parcelas, direitos que para eles se tinham
transformado em obstáculos. O obstáculo desapareceu, mas em pouco tempo também
desaparecia a nova propriedade territorial. A propriedade livre e plena do solo
significava não só a posse integral do mesmo, sem nenhuma restrição, como,
ainda, a faculdade de aliená-lo. Esta faculdade não existiu quando o solo era
propriedade da gens. Quando, porém, o obstáculo da propriedade suprema da gens
e da tribo foi suprimido pelo novo proprietário, em caráter definitivo, se
rompeu também o vínculo que unia indissoluvelmente o proprietário ao solo. O
que isto significava ensinou-lhe o dinheiro, que se inventou justamente ao
tempo do advento da propriedade privada da terra. A terra, agora, podia
tornar-se mercadoria, podia ser vendida ou penhorada. Logo que se introduziu a
propriedade privada da terra, criou- se a hipoteca (vide Atenas). Tal como o
heterismo e a prostituição pisam os calcanhares da monogamia, a hipoteca adere
à propriedade imóvel. Não quiseste a plena, livre e alienável propriedade do
solo? Pois aqui a tens. "Tu l’as voulu, Georges Dandin!"(2)
Com a expansão do comércio, o dinheiro, a usura, a
propriedade territorial e a hipoteca, progrediram rapidamente a centralização e
a concentração das riquezas nas mãos de uma classe pouco numerosa, o que se fez
acompanhar do empobrecimento das massas e do aumento numérico dos pobres. A
nova aristocracia da riqueza acabou por isolar a antiga nobreza tribal, em
todos os lugares onde não coincidiu com ela (em Atenas, em Roma e entre os
germanos). E essa divisão de homens livres em classes, de acordo com seus bens,
foi seguida, sobretudo na Grécia, de um extraordinário aumento no número dos
escravos,(3) cujo trabalho forçado constituía base de todo o edifício social.
Vejamos agora qual foi a sorte da gens no curso dessa
revolução social. Ela era impotente diante dos novos elementos que se tinham
desenvolvido sem o seu concurso. Sua primeira condição de existência era que os
membros de uma gens ou de uma tribo estivessem reunidos no mesmo território e
habitassem exclusivamente nele. Esse estado de coisas já tinha desaparecido há
muito. Gens e tribos se achavam misturadas em toda parte; em toda parte,
escravos, clientes e estrangeiros viviam no meio dos cidadãos. A vida
sedentária somente alcançada em fins da fase média da barbárie via-se alterada
com frequência pela movimentação e pelas mudanças de residência devidas ao
comércio, bem como pela mudança dos ocupantes e pelas vendas das terras. Os
membros das uniões gentílicas já não se podiam reunir para resolver assuntos
comuns; a gens ocupava-se apenas de coisas secundárias, como festas religiosas,
e com indiferença. Paralelamente às necessidades e interesses para cuja defesa
se tinham formado e eram aptas as uniões gentílicas, a revolução nas relações
econômicas e a consequente diferenciação social haviam criado novas
necessidades e novos interesses, não só estranhos, mas até opostos, em todos os
sentidos, à velha ordem da gens. Os interesses dos grupos de artesãos, nascidos
da divisão do trabalho, as necessidades específicas da cidade, opostas às do
campo, exigiam órgãos novos; mas cada um desses grupos se compunha de pessoas
pertencentes às mais diversas gens, fratrias e tribos, e até de estrangeiros.
Os novos órgãos, portanto, tinham que se formar necessariamente fora do regime
gentílico, independentemente dele — e, pois, em detrimento do mesmo. Em cada
corporação gentílica, por sua vez, se fazia sentir esse conflito de interesses,
que culminava quando se defrontavam pobres e ricos, usurários e devedores,
dentro da mesma gens e da mesma tribo. A tudo isso, vinha juntar-se a população
nova, estranha às associações gentílicas, que podia chegar a ser uma força no
país (como aconteceu em Roma) e que, ao mesmo tempo, era bastante numerosa para
poder ser admitida gradualmente nas estirpes e tribos consanguíneas. Em face
dessa população, as uniões gentílicas figuravam como corporações fechadas,
privilegiadas; a democracia primitiva, espontânea, transformara-se numa
detestável aristocracia. Em uma palavra: a constituição da gens, fruto de uma
sociedade que não conhecia antagonismos interiores, era adequada apenas para
semelhante sociedade. Ela não tinha outros meios coercitivos além da opinião
pública. Acabava de surgir, no entanto, uma sociedade que, por força das
condições econômicas gerais de sua existência, tivera que se dividir em homens
livres e escravos, em exploradores ricos e explorados pobres; uma sociedade em
que os referidos antagonismos não só não podiam ser conciliados como ainda
tinham que ser levados a seus limites extremos. Uma sociedade desse gênero não
podia subsistir senão em meio a uma luta aberta e incessante das classes entre
si. ou sob o domínio de um terceiro poder que, situado aparentemente por cima
das classes em luta, suprimisse os conflitos abertos destas e só permitisse a
luta de classes no campo econômico, numa forma dita legal. O regime gentílico
já estava caduco. Foi destruído pela divisão do trabalho que dividiu a
sociedade em classes, e substituído pelo Estado.
★ ★ ★
Já estudamos, uma a uma, as três formas principais de como o
Estado se erigiu sobre as ruínas da gens. Atenas apresenta a forma que podemos
considerar mais pura, mais clássica: ali, o Estado nasceu direta e
fundamentalmente dos antagonismos de classe que se desenvolviam no seio mesmo
da sociedade gentílica. Em Roma, a sociedade gentílica se converteu numa
aristocracia fechada, em meio a uma plebe numerosa e mantida à parte, sem
direitos mas com deveres; a vitória da plebe destruiu a antiga constituição da
gens, e sobre os escombros instituiu o Estado, onde não tardaram a se confundir
a aristocracia gentílica e a plebe. Entre os germanos, por fim, vencedores do
império romano, o Estado surgiu em função direta da conquista de vastos
territórios estrangeiros que o regime gentílico era impotente para dominar.
Como, porém, a essa conquista não correspondia uma luta séria com a antiga
população, nem uma divisão de trabalho mais avançada; como o grau de
desenvolvimento econômico de vencidos e vencedores era quase o mesmo — e por
conseguinte persistia a antiga base econômica da sociedade — a gens pôde
manter-se ainda por muitos séculos, sob uma forma modificada, territorial, na
constituição da marca, e até rejuvenescer durante certo tempo, sob uma forma
atenuada, nas famílias nobres e patrícias dos anos posteriores, e mesmo em
famílias camponesas, como em Dithmarschen.(4)
O Estado não é pois, de modo algum, um poder que se impôs à
sociedade de fora para dentro; tampouco é "a realidade da ideia
moral", nem "a imagem e a realidade da razão", como afirma
Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau
de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa
irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos
irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos,
essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não
consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado
aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e Este poder,
nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o
Estado.
Distinguindo-se da antiga organização gentílica, o Estado
caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo agrupamento dos seus súditos de acordo
com uma divisão territorial. As velhas associações gentílicas, constituídas e
sustentadas por vínculos de sangue, tinham chegado a ser, como vimos,
insuficientes em grande parte, porque supunham a ligação de seus membros a um
determinado território, o que deixara de acontecer há bastante tempo. O
território permanecera, mas os homens se haviam tomado móveis. Tomada a divisão
territorial como ponto de partida, deixou-se aos cidadãos o exercício dos seus
direitos e deveres sociais onde estivessem estabelecidos, independentemente das
gens e das tribos. Essa organização dos súditos do Estado conforme o território
é comum a todos os Estados. For isso nos parece natural; mas, em capítulos
anteriores vimos como foram necessárias renhidas e longas lutas antes que em Atenas
e Roma ela pudesse substituir a antiga organização gentílica.
O segundo traço característico é a instituição de uma força
pública, que já não mais se identifica com o povo em armas. A necessidade dessa
força pública especial deriva da divisão da sociedade em classes, que
impossibilita qualquer organização armada espontânea da população. Os escravos
integravam, também, a população; os 90 000 cidadãos de Atenas só constituíam
ama classe privilegiada em confronto com os 365 000 escravos. O exército popular
da democracia ateniense era uma força pública aristocrática contra os escravos,
que mantinha submissos; todavia, para manter a ordem entre os cidadãos, foi
preciso também criar uma força de polícia, como falamos anteriormente. Esta
força pública existe em todo Estado; é formada não só de homens armados como,
ainda, de acessórios materiais, os cárceres e as instituições coercitivas de
todo gênero, desconhecidos pela sociedade da gens. Ela pode ser pouco
importante e até quase nula nas sociedades em que ainda não se desenvolveram os
antagonismos de classe, ou em lugares distantes, como sucedeu em certas regiões
e em certas épocas nos Estados Unidos da América. Mas se fortalece na medida em
que se exacerbam os antagonismos de classe dentro do Estado e na medida em que
os Estados contíguos crescem e aumentam de população. Basta-nos observar a
Europa de hoje, onde a luta de classes e a rivalidade nas conquistas levaram a
força pública a um tal grau de crescimento que ela ameaça engolir a sociedade
inteira e o próprio Estado.
Para sustentar essa força pública, são exigidas
contribuições por parte dos cidadãos do Estado: os impostos. A sociedade
gentílica não teve ideia deles, mas nós os conhecemos muito bem. E, com os
progressos da civilização, os impostos, inclusive, chegaram a ser pouco; o
Estado emite letras sobre o futuro, contrai empréstimos, contrai dívidas do
Estado. A velha Europa está em condições de nos falar, por experiência própria,
também disso.
Donos da força pública e do direito de recolher os impostos,
os funcionários, como órgãos da sociedade, põem-se então acima dela. O respeito
livre e voluntariamente tributado aos órgãos da constituição gentílica já não
lhes basta, mesmo que pudessem conquistá-lo; veículos de um poder que se tinha
tornado estranho à sociedade, precisam impor respeito através de leis de
exceção, em virtude das quais gozam de uma santidade e uma inviolabilidade
especiais. O mais reles dos beleguins do Estado civilizado tem mais
"autoridade" do que todos os órgãos da sociedade gentílica juntos; no
entanto, o príncipe mais poderoso, o maior homem público, ou general, da
civilização pode invejar o mais modesto dos chefes de gens, pelo respeito
espontâneo e indiscutido que lhe professavam. Este existia dentro mesmo da
sociedade, aqueles veem-se compelidos a pretender representar algo que está
fora e acima dela.
Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo
das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por
regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente
dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe
politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da
classe oprimida. Assim, o instado antigo foi, sobretudo, o Estado dos senhores
de escravos para manter os escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão de
que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses
dependentes; e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve
o capital para explorar o trabalho assalariado. Entretanto, por exceção há
períodos em que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o Poder do
Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em face
das classes. Nesta situação, achava-se a monarquia absoluta dos séculos XVII e
XVIII, que controlava a balança entre a nobreza e os cidadãos; de igual
maneira, o bonapartismo do primeiro império francês, e principalmente do
segundo, que jogava com os proletários contra a burguesia e com esta contra
aqueles. O mais recente caso dessa espécie, em que opressores e oprimidos aparecem
igualmente ridículos, é o do novo império alemão da nação bismarckiana: aqui,
capitalistas e trabalhadores são postos na balança uns contra os outros e são
igualmente ludibriados para proveito exclusivo dos degenerados
"junkers" prussianos.
Além disso, na maior parte dos Estados históricos, os
direitos concedidos aos cidadãos são regulados de acordo com as posses dos
referidos cidadãos, pelo que se evidencia ser o Estado um organismo para a
proteção dos que possuem contra os que não possuem. Foi o que vimos em Atenas e
em Roma, onde a classificação da população era estabelecida pelo montante dos
bens. O mesmo acontece no Estado feudal da Idade Média, onde o poder político
era distribuído conforme a importância da propriedade territorial. E é o que
podemos ver no censo eleitoral dos modernos Estados representativos.
Entretanto, esse reconhecimento político das diferenças de fortuna não tem nada
de essencial; pelo contrário, revela até um grau inferior de desenvolvimento do
Estado. A república democrática — a mais elevada das formas de Estado, e que,
em nossas atuais condições sociais, vai aparecendo como uma necessidade cada
vez mais iniludível, e é a única forma de Estado sob a qual pode ser travada a
última e definitiva batalha entre o proletariado e a burguesia — não mais
reconhece oficialmente as diferenças de fortuna. Nela, a riqueza exerce seu
poder de modo indireto, embora mais seguro. De um lado, sob a forma de
corrupção direta dos funcionários do Estado, e na América vamos encontrar o
exemplo clássico; de outro lado, sob a forma de aliança entre o governo e a
Bolsa. Tal aliança se concretiza com facilidade tanto maior quanto mais cresçam
as dívidas do Estado e quanto mais as sociedades por ações concentrem em suas
mãos, além do transporte, a própria produção, fazendo da Bolsa o seu centro.
Tanto quanto a América, a nova república francesa é um exemplo muito claro
disso, e a boa e velha Suíça também traz a sua contribuição nesse terreno. Mas,
que a república democrática não é imprescindível para essa fraternal união
entre Bolsa e governo, prova-o, além da Inglaterra, o novo império alemão, onde
não se pode dizer quem o sufrágio universal elevou mais alto, se Bismarck, se
Bleichröder. E, por último, é diretamente através do sufrágio universal que a
classe possuidora domina.
Enquanto a classe oprimida — em nosso caso, o proletariado —
não está madura para promover ela mesma a sua emancipação, a maioria dos seus
membros considera a ordem social existente como a única possível e,
politicamente, forma a cauda da classe capitalista, sua ala da extrema
esquerda. Na medida, entretanto, em que vai amadurecendo para a
auto-emancipação, constitui-se como um partido independente e elege seus
próprios representantes e não os dos capitalistas. O sufrágio universal é,
assim, o índice do amadurecimento da classe operária. No Estado atual, não
pode, nem poderá jamais, ir além disso; mas é o suficiente. No dia em que o
termômetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de
ebulição, eles saberão — tanto quanto os capitalistas — o que lhes cabe fazer.
Portanto, o Estado não tem existido eternamente. Houve
sociedades que se organizaram sem ele, não tiveram a menor noção do Estado ou
de seu poder. Ao chegar a certa fase de desenvolvimento econômico, que estava
necessariamente ligada à divisão da sociedade em classes, essa divisão tornou o
Estado uma necessidade. Estamos agora nos aproximando, com rapidez, de uma fase
de desenvolvimento da produção em que a existência dessas classes não apenas
deixou de ser uma necessidade, mas até se converteu num obstáculo à produção
mesma. As classes vão desaparecer, e de maneira tão inevitável como no passado
surgiram. Com o desaparecimento das classes, desaparecerá inevitavelmente o
Estado. A sociedade, reorganizando de uma forma nova a produção, na base de uma
associação livre de produtores iguais, mandará toda a máquina do Estado para o
lugar que lhe há de corresponder: o museu de antiguidades, ao lado da roca de
fiar e do machado de bronze.
★ ★ ★
De tudo que dissemos, infere-se, pois, que a civilização é o
estágio de desenvolvimento da sociedade em que a divisão do trabalho, a troca
entre indivíduos dela resultante, e a produção mercantil — que compreende uma e
outra — atingem seu pleno desenvolvimento e ocasionam uma revolução em toda a
sociedade anterior.
Em todos os estágios anteriores da sociedade, a produção era
essencialmente coletiva e o consumo se realizava, também, sob um regime de
distribuição direta dos produtos, no seio de pequenas ou grandes coletividades
comunistas. Essa produção coletiva era levada a cabo dentro dos mais estreitos
limites, mas ao mesmo tempo os produtores eram senhores de seu processo de
produção e de seus produtos. Sabiam o que era feito do produto: consumiam-no,
ele não saía de suas mãos. E, enquanto a produção se realizou sobre essa base,
não pôde sobrepor-se aos produtores, nem fazer surgir diante deles o espectro
de poderes estranhos, como sucede, regular e inevitavelmente, na civilização.
Nesse modo de produzir, porém, foi-se introduzindo
lentamente a divisão do trabalho. Minou a produção e a apropriação em comum,
erigiu em regra dominante a apropriação individual, criando, assim, a troca
entre indivíduos (já examinamos como, anteriormente). Pouco a pouco, a produção
mercantil tornou-se a forma dominante.
Com a produção mercantil — produção não mais para o consumo
pessoal e sim para a troca — os produtos passam necessariamente de umas para
outras mãos. O produtor separa-se de seu produto na troca, e já não sabe o que
é feito dele. Logo que o dinheiro, e com ele o comerciante, intervém como
intermediário entre os produtores, complica-se o sistema de troca e torna-se
ainda mais incerto o destino final dos produtos. Os comerciantes são muitos, e
nenhum deles sabe o que o outro está fazendo. As mercadorias agora não passam
apenas de mão em mão, mas também de mercado a mercado; os produtores já
deixaram de ser os senhores da produção total das condições de sua própria
vida, e tampouco os comerciantes chegaram a sê-lo. Os produtos e a produção
estão entregues ao acaso.
Mas o acaso não é mais que um dos polos de uma
interdependência, da qual o outro polo se chama necessidade. Na natureza, onde
também parece imperar o acaso, faz muito tempo que pudemos demonstrar, em cada
domínio específico, a necessidade imanente e as leis internas que se afirmam em
tal acaso. E o que é certo para a natureza também o é para a sociedade. Quanto
mais uma atividade social, uma série de processos sociais, escapam do controle
consciente do homem, quanto mais parecem abandonados ao puro acaso, tanto mais
as leis próprias, imanentes, do dito acaso se manifestam como uma necessidade
natural. Leis análogas também regem as eventualidades da produção mercantil e
da troca de mercadorias; frente ao produtor e ao comerciante isolados, aparecem
como forças estranhas e no início até desconhecidas, cuja natureza precisa ser
laboriosamente investigada e estudada. Estas leis econômicas da produção
mercantil modificam-se de acordo com os diversos graus de desenvolvimento dessa
forma de produção; mas todo o período da civilização, em geral, está regido por
elas. Até hoje, o produto ainda domina o produtor; até hoje, toda a produção
social ainda é regulada, não segundo um plano elaborado coletivamente, mas por
leis cegas que atuam com a força dos elementos, em última instância nas
tempestades dos períodos de crise comercial.
Vimos como, numa fase bastante primitiva do desenvolvimento
da produção, a força de trabalho do homem se tornou apta pari produzir
consideravelmente mais do que era preciso para a manutenção do produtor, e como
essa fase de desenvolvimento é, no essencial, a mesma em que nasceram a divisão
do trabalho e a troca entre indivíduos. Não se demorou muito a descobrir a
grande "verdade" de. que também o homem podia servir de mercadoria,
de que a força de trabalho do homem podia chegar a ser objeto de troca e
consumo, desde que o homem se transformasse em escravo. Mal os homens tinham
descoberto a troca e começaram logo a ser trocados, eles próprios. O ativo se transformava
em passivo, independentemente da vontade humana.
Com a escravidão, que atingiu o seu mais alto grau de
desenvolvimento sob a civilização, veio a primeira grande cisão da sociedade em
uma classe que explorava e outra que era explorada. Esta cisão manteve-se
através de todo o período civilizado. A escravidão é a primeira forma de
exploração, a forma típica da antiguidade: sucedem-na a servidão na Idade Média
e o trabalho assalariado nos tempos modernos. São as três formas de
avassalamento que caracterizam as três grandes épocas da civilização. A
civilização faz-se sempre acompanhar da escravidão — a princípio franca, depois
mais ou menos disfarçada.
O estágio da produção de mercadorias com que começa a
civilização caracteriza-se, do ponto-de-vista econômico, pela introdução:
da moeda metálica (e, com ela, o capital em dinheiro), dos
juros e da usura;
dos comerciantes como classe intermediária entre os
produtores;
da propriedade privada da terra e da hipoteca;
do trabalho escravo como forma predominante na produção.
A forma de família que corresponde à civilização e vence
definitivamente com ela é a monogamia, a supremacia do homem sobre a mulher, e
a família individual como unidade econômica da sociedade. A força de coesão da
sociedade civilizada é o Estado, que, em todos os períodos típicos, é
exclusivamente o Estado da classe dominante e, de qualquer modo, essencialmente
uma máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada. Também são
características da civilização: por um lado, a fixação da oposição entre a
cidade e o campo como base de toda a divisão do trabalho social e, por outro
lado, a introdução dos testamentos, por meio dos quais o proprietário pode
dispor de seus bens ainda depois de morto. Essa instituição, que era um golpe
direto na velha constituição gentílica, não foi conhecida em Atenas, mesmo no
tempo de Solon; foi introduzida bastante cedo em Roma, mas ignoramos em que
época,(5) Na Alemanha, implantaram-na os padres, para que os cândidos alemães
pudessem, sem dificuldade, deixar legados para a Igreja.
Baseada nesse regime, a civilização realizou coisas de que a
antiga sociedade gentílica jamais seria capaz. Mas as realizou pondo em
movimento os impulsos e as paixões mais vis do homem e em detrimento das suas
melhores disposições. A ambição mais vulgar tem sido a força motriz da
civilização, desde seus primeiros dias até o presente; seu objetivo
determinante é a riqueza, e outra vez a riqueza, e sempre a riqueza — mas não a
da sociedade, e sim de tal ou qual mesquinho indivíduo. Se, na busca desse
objetivo, a ciência tem-se desenvolvido cada vez mais e têm-se verificado
períodos de extraordinário esplendor nas artes, é porque sem isso teriam sido
impossíveis, na sua plenitude, as atuais realizações na acumulação de riquezas.
Desde que a civilização se baseia na exploração de uma
classe por outra, todo o seu desenvolvimento se opera numa constante
contradição. Cada progresso na produção é ao mesmo tempo um retrocesso na
condição da classe oprimida, isto é. da imensa maioria. Cada benefício para uns
é necessária- mente um prejuízo para outros; cada grau de emancipação
conseguido por uma classe é um novo elemento de opressão para a outra. A prova
mais eloquente a respeito é a própria criação da máquina, cujos efeitos, hoje,
são sentidos pelo mundo inteiro. Se entre os bárbaros, como vimos, é difícil
estabelecer a diferença entre os direitos e os deveres, com a civilização
estabelece-se entre ambos uma distinção e um contraste evidentes para o homem
mais imbecil, atribuindo-se a uma classe quase todos os direitos e à outra
quase todos os deveres.
Mas não deve ser assim. O que é bom para a classe dominante
deve ser bom para a sociedade, com a qual a classe dominante se identifica.
Quanto mais progride a civilização, mais se vê obrigada a encobrir os males que
traz necessariamente consigo, ocultando-os com o manto da caridade,
enfeitando-os ou simplesmente negando-os. Em uma palavra: elabora-se uma
hipocrisia convencional, desconhecida pelas primitivas formas de sociedade e
pelos primeiros estágios da civilização, que culmina com a declaração de que a
classe opressora explora a classe oprimida exclusiva e unicamente para o
próprio beneficio desta. E, se a classe oprimida não o reconhece, e até se
rebela, isso, além do mais, revela sua mais negra ingratidão para com seus
benfeitores, os exploradores.(6)
Para concluir, vejamos agora o julgamento da civilização por
Morgan:
"Desde o advento da civilização, chegou a ser tão
grande o aumente da riqueza, assumindo formas tão variadas, de aplicação tão
extensa, e tão habilmente administrada no interesse dos seus possuidores, que
ela, a riqueza, transformou-se numa força incontrolável, oposta ao povo. A
inteligência humana vê-se impotente e desnorteada diante de sua própria
criação. Contudo, chegará um tempo em que a razão humana será suficientemente
forte para dominar a riqueza e fixar as relações do Estado com a propriedade
que ele protege e os limites aos direitos dos proprietários. Os interesses da
sociedade são absolutamente superiores aos interesses individuais, e entre uns
e outros deve estabelecer-se uma relação justa e harmônica. A simples caça à
riqueza não é a finalidade, o destino da humanidade, a menos que o progresso
deixe de ser a lei no futuro, como tem sido no passado. O tempo que transcorreu
desde o início da civilização não passa de uma fiação ínfima da existência
passada da humanidade, uma fração ínfima das épocas vindouras. A dissolução da
sociedade ergue-se, diante de nós, como uma ameaça; é o fim de um período
histórico — cuja única meta tem sido a propriedade da riqueza — porque esse
período encerra os elementos de sua própria ruína. A democracia na
administração, a fraternidade na sociedade, a igualdade de direitos e a
instrução geral farão despontar a próxima etapa superior da sociedade, para a
qual tendem constantemente a experiência, a razão, e a ciência. Será uma
revivescência da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas gens, mas sob
uma forma superior." (Morgan, A Sociedade Antiga, pág. 502).
Capítulo IX do livro " A Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado",
escrito por Friedrich Engels
TEMAS:
Marxismo-leninismo
Engels
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