Engels:
24.12.2015
A história do cristianismo primitivo oferece curiosos pontos
de contato com o movimento operário moderno. Como este, o cristianismo era, na
origem, o movimento dos oprimidos: apareceu primeiro como a religião dos
escravos e dos libertos, dos pobres e dos homens privados de direitos, dos
povos subjugados ou dispersos por Roma. Os dois, o cristianismo como o
socialismo operário, pregam uma libertação próxima da servidão e da miséria; o
cristianismo transpõe essa libertação para o Além, numa vida depois da morte,
no céu; o socialismo coloca-a no mundo, numa transformação da sociedade. Os
dois são perseguidos e encurralados, os seus aderentes são proscritos e
submetidos a leis de exceção, uns como inimigos do gênero humano, os outros
como inimigos do governo, da religião, da família, da ordem social. E, apesar
de todas as perseguições, e mesmo diretamente servidos por elas, um e outro
abrem caminho vitoriosamente. Três séculos depois do seu nascimento, o
cristianismo é reconhecido como a religião do Estado e do Império romano: em
menos de sessenta anos, o socialismo conquistou uma posição tal que o seu
triunfo definitivo está absolutamente assegurado.
Conseqüentemente, se o Sr. Professor A. Menger, no seu
“Direito ao Produto Integral do Trabalho”, se espanta de que, sob os
imperadores romanos, tendo em vista a colossal centralização das riquezas e os
sofrimentos infinitos da classe trabalhadora, composta essencialmente de
escravos, “o socialismo não tenha sido implantado depois da queda do Império
romano ocidental”, é porque precisamente não vê que esse “socialismo”, na
medida em que era possível na época, existia efetivamente e chegava ao poder. .
. com o cristianismo. Só que o cristianismo, como tinha fatalmente de ser,
considerando as condições históricas, não queria a transformação social neste
mundo, mas no Além, no céu, na vida eterna depois da morte, no millenium
eminente.
Já na Idade Média o paralelismo dos dois fenômenos se impõe,
quando dos primeiros levantamentos dos camponeses oprimidos e, sobretudo, dos
plebeus das cidades. Esses levantamentos, tal como todos os movimentos de
massas na Idade Média, tiveram necessariamente uma máscara religiosa; aparecem
como restaurações do cristianismo primitivo em conseqüência de uma
degenerescência crescente, mas atrás da exaltação religiosa escondem-se,
regularmente, interesses muito positivos deste mundo.
Isso transparecia de uma maneira grandiosa na organização
dos taboritas da Boêmia sob João Zizka, de gloriosa memória. Mas este traço
presiste através de toda a Idade Média, até que desaparece pouco a pouco,
depois da guerra dos camponeses na Alemanha, para reaparecer entre os operários
comunistas depois de 1830. Os comunistas revolucionários franceses, tal como
Weitling e os seus aderentes, afirmavam-se ligados ao cristianismo primitivo
muito antes de Renan ter dito:
Se quiserem fazer uma idéia das primeiras comunidades
cristãs, observem uma seção local da Associação Internacional de Trabalhadores.
O homem de letras francês que, graças a uma exploração da
crítica bíblica alemã, sem exemplo mesmo no jornalismo moderno, confeccionou o
seu romance sobre a história da Igreja, “As Origens do Cristianismo”, não sabia
tudo o que havia de verdade na sua frase. Eu queria ver o antigo
internacionalista capaz de ler, por exemplo, a segunda “Epístola aos
Coríntios”, atribuída a Paulo, sem que, pelo menos num ponto, antigas feridas
não reabrissem nele.
A “Epístola” inteira, a partir do VIII capítulo, ecoa da
eterna queixa demasiado bem conhecida: “As cotizações não entram.” Por volta de
1865, quantos, entre os mais zelosos propagandistas, não teriam apertado a mão
do autor desta carta, quem quer que ele fosse, com uma simpática inteligência,
murmurando-lhe ao ouvido: “Então, irmão, também isso te aconteceu a ti!” Também
nós teríamos muito a dizer acerca disso — também na nossa associação pululam os
coríntios —, essas cotizações que não apareciam, que, inalcançáveis, giravam
diante dos nossos olhos de Tântalo, eis o que constituía os famosos milhões da
Internacional.
Uma das nossas melhores fontes sobre os primeiros cristãos é
Luciano de Samosata, o Voltaire da antigüidade clássica, que mantinha a mesma
atitude cética em relação a todas as espécies de superstições religiosas e que,
portanto, não tinha motivos — nem por crença pagã nem por política — para
tratar os cristãos diferentemente de qualquer outra associação religiosa. Pelo
contrário, acusa a todos da sua superstição, tanto aos adoradores de Júpiter
como aos adoradores de Cristo: do seu ponto de vista rasamente racionalista, um
gênero de superstição é tão inepto como o outro. Esta testemunha, de qualquer
maneira imparcial, conta, entre outras coisas, a biografia de um aventureiro,
Peregrinus, que se chamava na realidade Proteu de Parium sobre o Helesponto. O
dito Peregrinus começou na sua juventude, na Armênia, por um adultério. Foi
apanhado em flagrante delito e linchado segundo o costume do país. Felizmente
conseguiu escapar, estrangulou Parium, o seu velho pai, e teve de fugir.
Foi por essa época que se fez instruir na admirável religião
dos cristãos, contactando na Palestina com alguns dos seus padres e escribas.
Que vos hei-de dizer acerca disso? Esse homem depressa lhes fez ver que eles
não passavam de crianças; profeta, tiasarco, chefe de assembléia, tudo ele foi
sozinho, interpretando os seus livros, explicando-os, compondo-os por
iniciativa própria. Por isso muita gente o olhava como a um deus, um
legislador, um pontífice, igual a esse que é honrado na Palestina, onde foi
posto numa cruz por ter introduzido esse novo culto entre os homens. Proteu,
tendo por este motivo sido detido, foi posto na prisão. Desde o momento que foi
posto a ferros, os cristãos, considerando-se como presos nele, tudo fizeram
para o libertar; mas, não o conseguindo, renderam-lhe pelo menos toda a espécie
de honras com um zelo e uma dedicação infatigáveis. Desde a manhã, viam-se à
volta da prisão uma multidão de mulheres velhas, de viúvas, de órfãos. Os
principais chefes da seita passavam a noite junto dele, depois de terem
corrompido os carcereiros: para lá levavam as suas refeições e liam os seus
livros santos; e o virtuoso Peregrinus, ele ainda se chamava assim, era por
eles tratado de novo Sócrates. Não é tudo; várias cidades da Ásia lhe enviaram
deputados em nome de cristãos, para lhe prestar assistência, lhe servirem de
apoio, de advogados e de consoladores. Era inacreditável a dedicação em tais
ocorrências; para tudo dizer, nada lhes custava. Desse modo Peregrinus, sob o
pretexto da sua prisão, viu chegarem grandes quantidades de dinheiro e acumulou
muito. Esses infelizes acreditam que são imortais e que viverão eternamente; em
conseqüência, desprezam os suplícios e entregam-se voluntariamente à morte. O
seu primeiro legislador ainda os convenceu de que eles são todos irmãos. Desde
que mudaram de culto, renunciaram aos deuses gregos e adoram o sofista
crucificado de quem seguem as leis. Desprezam igualmente todos os bens e
põem-nos em comum, pela fé completa que têm nas suas palavras. De forma que, se
aparece entre eles um impostor, um patife decidido, ele não terá dificuldade em
enriquecer rapidamente, rindo-se por trás da sua simplicidade. Contudo,
Peregrinus depressa foi libertado pelo governador da Síria.
Depois de outras aventuras, diz-se:
Peregrinus retomou, pois, a sua vida errante, acompanhado
nas suas vagabundagens por um grupo de cristãos que lhe servem de satélites e
lhe subvencionam abundantemente as suas necessidades. Ele fez-se assim
alimentar durante algum tempo. Mas depois, tendo violado alguns dos seus
preceitos (tinham-no visto comer carne proibida), foi abandonado pelo seu
cortejo e reduzido à pobreza.
Quantas recordações de juventude acordam em mim ao ler esta
passagem de Luciano. Eis primeiro o “profeta Albrecht”, que por volta de 1840 e
durante alguns anos tornava pouco seguras — à letra — as comunidades comunistas
de Weittling na Suíça. Era um homem grande e forte, que percorria a Suíça a pé,
à procura de um auditório para o seu novo evangelho da libertação do mundo. No
fim de contas, parece ter sido um trapalhão bastante inofensivo e morreu cedo.
Eis o seu sucessor, menos inofensivo, o “Dr.” Jorge Kuhlmann de Holstein, que
aproveitou o tempo em que Weittling esteve na prisão para converter os
comunistas da Suíça francesa ao seu próprio evangelho e que, por um tempo, o
conseguiu tão bem que conquistou até o mais espiritual e ao mesmo tempo o mais
boêmio de todos eles, August Becker. Depressa Kuhlmann dava conferências que
foram publicadas em Gênova em 1845 sob o título: “O Novo Mundo ou o Reino do
Espírito Sobre a Terra. Anunciação”. E na introdução, redigida, segundo toda a
probabilidade, por Becker, lê-se.
Faltava um homem na boca de quem todos os nossos
sofrimentos, todas as nossas esperanças e todas as nossas aspirações, numa
palavra, tudo o que agita mais profundamente o nosso tempo, encontrasse uma
voz... Esse homem que a nossa época esperava, apareceu. É o Dr. Jorge Kuhlmann
de Holstein. Ele surgiu com a doutrina do novo mundo ou do reino do espírito na
realidade.
Será necessário dizer que essa doutrina do novo mundo não
passava do mais banal sentimentalismo, traduzido em fraseologia semibíblica à
Lamennais e debitada com arrogância de profeta? O que não impedia os bons
discípulos de Weittling de andarem com atenções para com esse charlatão, tal
como os cristãos da Ásia tinham feito em relação a Peregrinus. Eles, que, de
ordinário, eram arquidemocratas e igualitários, a ponto de alimentarem
desconfianças inextinguíveis para com todo o mestre-escola, todo o jornalista,
todos aqueles que não eram operários manuais, como se eles fossem outros tantos
“sábios” procurando explorá-los, eles deixaram-se persuadir por esse Kuhlmann,
com os seus atavios de melodrama, de que, no “novo mundo”, o mais sábio, id est
Kuhlmann, regulamentaria a repartição dos prazeres e que, portanto, já no velho
mundo, os discípulos deviam fornecer alqueires de prazeres ao mais sábio e
contentarem-se com migalhas. E Peregrinus-Kuhlmann viveu na alegria e na
abundância... enquanto isso durou. Na verdade tal não durou muito; o
descontentamento crescente dos céticos e dos incrédulos, as ameaças de
perseguição do governo, puseram fim ao reino do espírito em Lausanne; Kuhlmann
desapareceu.
Exemplos análogos virão às dezenas à memória daqueles que
conheceram por experiência o começo do movimento operário na Europa. Na hora
atual, casos tão extremos tornaram-se impossíveis, pelo menos nos grandes
centros; mas em localidades perdidas, em que o movimento conquista um terreno
virgem, um qualquer Peregrinus deste tipo poderia ainda conseguir um sucesso
momentâneo e relativo. E, tal como em todos os países aflui para o partido
operário toda a gente que já nada tem a esperar do mundo oficial, ou que nele
se queimou — tal como os adversários da vacinação, os vegetarianos, os
antivivecionistas, os partidários da medicina dos simples, os pregadores das
congregações dissidentes a quem as ovelhas fugiram, os autores de novas teorias
acerca da origem do mundo, os inventores falhados ou infelizes, as vítimas de
reais ou imaginárias irregularidades a quem a burocracia chama “refilões
inúteis”, os honestos imbecis e os desonestos impostores —, o mesmo acontecia
com o cristianismo. Todos os elementos que o processo de dissolução do antigo
mundo tinha atirado, sucessivamente, para o círculo de atração do cristianismo,
o único elemento que resistia a essa dissolução — precisamente porque se
tratava de um produto especial — e que, portanto, subsistia e crescia, enquanto
que os outros elementos não passavam de moscas efêmeras. Todas as exaltações,
extravagâncias, loucuras ou golpes sujos que foram tentados em relação às
jovens comunidades cristãs, todas, temporariamente e em certas localidades,
encontraram ouvidos atentos e crentes dóceis. E, tal como os comunistas das
nossas primeiras comunidades, os primeiros cristãos eram de uma credulidade
espantosa em relação a tudo que parecia convir à sua doutrina, de modo que não
podemos saber realmente se, dos numerosos escritos que Peregrinus compôs para a
cristandade, não haverá, aqui e ali, qualquer fragmento que tenha escapado para
o nosso novo Testamento.
II
A crítica bíblica alemã, até agora a única base científica
do nosso conhecimento da história do cristianismo primitivo, seguiu uma dupla
tendência.
Uma dessas tendências é representada pela escola de
Tubingue, à qual, em sentido lato, pertence também D. F. Strauss. Ela vai tão
longe no exame crítico quanto uma escola teológica poderia ir. Admite que os
quatro Evangelhos não são comunicações de testemunhas oculares, mas arranjos
ulteriores de escritos perdidos, e que, no máximo, quatro das Epístolas
atribuídas a S. Paulo são autênticas etc. Ela afasta da narração histórica,
como inadmissíveis, todos os milagres e todas as contradições; do que resta,
ela “procura salvar tudo o que pode ser salvo” e, por aí, transparece
claramente o seu caráter de escola teológica. E é graças a essa escola que
Renan, o qual, em grande parte, se apóia nela, pôde, aplicando o mesmo método,
operar ainda muitos outros “salvamentos”. Além de numerosas exposições mais que
duvidosas do Novo Testamento, ele quer ainda impor-nos uma quantidade de lendas
de mártires como historicamente autenticadas. Em todo o caso, tudo o que a
escola de Tubingue rejeita do Novo Testamento como apócrifo, ou como não sendo
histórico, pode ser considerado como definitivamente afastado pela ciência.
A outra tendência é representada por um único homem: Bruno
Bauer. O seu grande mérito é ter, impiedosamente, criticado os Evangelhos e as
Epístolas apostólicas, ter sido o primeiro a encarar seriamente o exame dos
elementos não só judaicos e greco-alexandrinos, mas também gregos e
greco-romanos que permitiram ao cristianismo tornar-se uma religião universal.
A lenda do cristianismo nascido integralmente do judaísmo, partindo da
Palestina para conquistar o mundo com uma dogmática e uma ética traçadas nas
suas grandes linhas, tornou-se impossível depois de Bruno Bauer; a partir de
então ela pode, no máximo, continuar a vegetar nas faculdades teológicas e no
espírito de quem quer “conservar a religião para o povo”, mesmo à custa da
ciência. Na formação do cristianismo, tal como foi elevado à categoria de
religião de Estado por Constantino, a Escola de Philon de Alexandria e a
filosofia vulgar greco-romana — platônica e sobretudo estóica — desempenharam
importante papel. Essa contribuição está longe de ter sido estabelecida nos
detalhes, mas o fato está demonstrado, e tal deve-se, sobretudo, a Bruno Bauer;
ele lançou as bases da prova de que o cristianismo não foi importado de fora,
da Judéia, e imposto ao mundo greco-romano, mas que é, pelo menos na forma que
adquiriu como religião universal, o mais autêntico produto desse mundo.
Naturalmente que, nesse trabalho, Bauer exagerou bastante, como acontece a
todos que combatem preconceitos inveterados. Na intenção de determinar, mesmo
do ponto de vista literário, a influência de Philon, e sobretudo de Sêneca,
sobre o cristianismo nascente, e de representar formalmente os autores do Novo
Testamento como plagiários desses filósofos, é obrigado a retardar o
aparecimento da nova religião em meio século, a rejeitar as narrativas de
historiadores romanos que a isso se opõem e, em geral, a tomar graves
liberdades com a história conhecida. Segundo ele, o cristianismo como tal só
aparece sob os imperadores Flavianos, a literatura do Novo Testamento só sob
Adriano, Antonino e Marco Aurélio. Portanto, Bauer faz desaparecer todo o fundo
histórico para as narrativas do Novo Testamento relativas a Jesus e aos seus
discípulos; resolvem-se em lendas em que as fases de desenvolvimento interno e
os conflitos morais das primeiras comunidades são transpostos e atribuídos a
personagens mais ou menos fictícias. Não são a Galiléia nem Jerusalém, segundo
Bauer, os lugares de nascimento da nova religião, mas sim Alexandria e Roma.
Assim, se no resíduo, que não contesta, da história e da
literatura do Novo Testamento, a escola de Tubingue nos oferece o extremo máximo
do que a ciência pode, ainda nos nossos dias, aceitar como estando sujeito a
controvérsia, Bruno Bauer representa o máximo de contestação que ela se pode
permitir. A verdade situa-se entre estes extremos. Que esta, com os nossos
meios atuais, seja suscetível de ser determinada, eis o que parece bem
problemático. Novas descobertas, como em Roma, no Oriente e sobretudo no Egito,
darão um contributo muito mais decisivo do que toda a crítica.
Ora, existe no Novo Testamento um único livro de que é
possível, com margem de alguns meses, fixar a data da redação; ele deve ter
sido escrito entre junho de 67 e janeiro ou abril de 68; é um livro que, por
conseqüência, pertence aos mais longínquos tempos cristãos, que reflete as
idéias dessa época com a mais ingênua sinceridade e na língua idiomática que
lhe corresponde; que, de início, é, na minha opinião, muito mais importante
para determinar o que foi realmente o cristianismo primitivo que todo o resto
do Novo Testamento, muito posterior em data na sua redação atual. Esse livro é
o que se chama o apocalipse de João; e como, ainda por cima, esse livro, em
aparência o mais obscuro de toda a Bíblia, se tornou hoje, graças à crítica
alemã, o mais compreensível e o mais transparente de todos, proponho-me falar
dele aos nossos leitores.
Basta uma olhadela sobre esse livro para nos apercebermos do
estado de exaltação não só do autor mas também do “meio” em que vivia. O nosso
“Apocalipse” não é o único da sua espécie e do seu tempo. Do ano 164 antes da
nossa era, data do primeiro que chegou até nós — o livro de Daniel —, até cerca
de 250 da nossa era, data aproximativa do “Carmen” de “Comodiano, Renan não
conta menos de 15 “Apocalipses” clássicos chegados até nós, sem falar das
imitações ulteriores. (Cito Renan porque o seu livro é o mais acessível e o
mais conhecido fora dos círculos dos especialistas.) Foi uma época em que, em
Roma e na Grécia, e muito mais ainda na Ásia Menor, na Síria e no Egito, uma
mistura absolutamente casual das mais crassas superstições dos mais diversos
povos era aceita sem exame e completada por piedosas fraudes e por um
charlatanismo direto, em que os milagres, os êxtases, as visões, a adivinhação,
a alquimia, a cabala e outras bruxarias ocultas ocupavam o primeiro lugar. Foi
nessa atmosfera que o cristianismo primitivo nasceu, e ainda numa classe mais
do que qualquer outra acessível a essas quimeras. Assim, os gnósticos cristãos
do Egito, como o provam, entre outras coisas, o papiro de Leyde, dedicaram-se,
no século II da época cristã, fortemente à alquimia, e incorporaram noções de
alquimia nas suas doutrinas. E os “mathe matici” caldeus e judeus que, segundo
Tácito, foram por duas vezes, sob Cláudio e ainda sob Vittelius, expulsos de
Roma por magia, as únicas “astúcias” de geometria a que se dedicavam eram
aquelas que encontraremos em pleno no “Apocalipse” de João.
A isto acrescenta-se que todos os apocalipses se julgam no
direito de enganar os seus leitores. Não só são, geralmente, escritos por
outras pessoas — na maioria mais recentes — diferentes dos pretensos autores,
por exemplo o livro de Daniel, o livro de Enoch, os “Apocalipses” de Esdras, de
Baruch, de Juda etc., os livros sibilinos, como no fundo não profetizam senão
coisas conhecidas há muito tempo e perfeitamente conhecidas do verdadeiro
autor. Foi assim que no ano de 164, pouco tempo antes da morte de Antiochus
Epifano, o autor do livro de Daniel, que era suposto viver na época de
Nabucodonosor, fez predizer a Daniel a subida e o declínio da hegemonia da
Pérsia e da Macedônia, e o começo do Império mundial de Roma, para preparar os
seus leitores, por essa prova dos seus dons proféticos, a aceitar a sua
profecia final: que o povo de Israel ultrapassará todos os seus sofrimentos e
será, enfim, vitorioso. Assim, se o “Apocalipse” de João fosse realmente obra
do autor pretendido, constituiria a única exceção na literatura apocalíptica.
O João que se propõe para autor era em todo o caso um homem
muito considerado entre os cristãos da Ásia Menor. O tom das cartas às sete
Igrejas é disso garantia. Poderia pois admitir-se que fosse o apóstolo João
cuja existência histórica, se não é absolutamente atestada, é pelo menos muito
possível. E se esse apóstolo fosse efetivamente o autor, não se poderia
pretender melhor para a nossa tese. Seria a melhor prova de que o cristianismo
desse livro é o verdadeiro cristianismo primitivo. Está provado, diga-se de
passagem, que o “Apocalipse” não é do mesmo autor do Evangelho ou das três
“Epístolas” atribuídas a João.
O “Apocalipse” compõe-se de uma série de visões. Na
primeira, o Cristo aparece, vestido de padre, caminhando entre sete castiçais
de ouro, que representam as sete Igrejas da Ásia e dita a “João” cartas aos
sete “anjos” dessas Igrejas da Ásia. Desde o início, a diferença manifesta-se
gritante entre este cristianismo e a religião universal de Constantino
formulada pelo concílio de Nicéia. A Trindade não só é desconhecida como
constitui uma impossibilidade. No lugar do Espírito Santo, único ulterior,
encontramos os “sete espíritos de Deus” extraídos pelos rabinos de Isaías, XI,
dois; Jesus Cristo é o filho de Deus, o primeiro e o último, o alfa e o ômega,
mas de modo nenhum Deus ou igual a Deus: pelo contrário, ele é “o começo da
criação de Deus”, portanto uma emanação de Deus existente de toda a eternidade,
mas subordinada, análoga aos sete espíritos acima mencionados. No capítulo XV,
3, os mártires, no céu, “cantam o cântico de Moisés, o servidor de Deus, e o
cântico do cordeiro” para a glorificação de Deus. Jesus Cristo aparece, pois,
aqui, não somente como subordinado a Deus, mas, de certa maneira, colocado no
mesmo plano que Moisés. Jesus Cristo foi crucificado em Jerusalém (XI, 8), mas
ressuscitou (1, 5, 18); é o “cordeiro” que foi sacrificado pelos pecados do
mundo e com o sangue do qual os fiéis de todos os povos e de todas as línguas
são perdoados por Deus. Encontramos aqui a concepção fundamental que permitiu
ao cristianismo realizar-se como religião universal. A noção de que os deuses,
ofendidos pelas ações dos homens, podiam ser acalmados por sacrifícios, era uma
idéia comum a todas as religiões dos Semitas e dos Europeus; a primeira idéia
revolucionária fundamental do cristianismo (extraída da escola de Philon) era
que, pelo único grande sacrifício voluntário de um mediador, os pecados de todos
os tempos de todos os homens eram expiados de uma vez para sempre. . . para os
fiéis. De tal modo que desaparecia a necessidade de qualquer sacrifício
ulterior e, portanto, a base de numerosas cerimônias religiosas. Ora, a
libertação de cerimônias que entravavam ou proibiam o comércio com homens de
crenças diferentes era a condição primeira de uma religião universal. E,
contudo, o hábito dos sacrifícios estava tão enraizado nos hábitos populares
que o catolicismo — que retomou tantos costumes pagãos — julgou útil
considerá-lo, introduzindo pelo menos o simbólico sacrifício da missa. Por
outro lado, nenhum vestígio, no nosso livro, do dogma do pecado original.
O que sobretudo caracteriza estas cartas, bem como o livro
inteiro, é que nunca, nem em parte alguma, vem à idéia do autor designar-se, a
ele e aos seus correligionários, de outra maneira senão como. . . Judeus. Aos
sectários de Esmirna e de Filadélfia, contra os quais se ergue, ele acusa:
“Eles dizem-se Judeus, mas não o são, pertencem sim a uma sinagoga de Satã”; e,
dos de Pérgamo, diz:
Estão ligados a Balaam, que ensinava a Balak a criar toda a
espécie de dificuldades aos filhos de Israel, para que eles comessem carnes
sacrificadas aos ídolos e para que se dedicassem à impudícia.
Não encontramos, pois, aqui, cristãos conscientes, mas
pessoas que se consideram Judeus: o seu judaísmo, sem dúvida, é uma nova fase
do desenvolvimento do antigo: é precisamente por isso que é o único verdadeiro.
É por isso que, quando da aparição dos santos diante do trono de Deus, vêm em
primeiro lugar 144.000 Judeus, 12.000 de cada tribo, é só depois a inumerável
multidão de pagãos convertidos a esse judaísmo renovado. O nosso autor, no ano
69 da nossa era, estava bem longe de pensar que representava uma fase
completamente nova da evolução religiosa, destinada a tornar-se um dos
elementos mais revolucionários na história do espírito humano.
Vemos, pois, que o cristianismo de então, que não tinha
ainda consciência de si, estava a mil léguas da religião universal,
dogmaticamente desenhada pelo concílio de Nicéia; impossível reconhecer esse
nesta. Nem a dogmática, nem a ética do cristianismo ulterior, se encontram; em
compensação, há o sentimento de que se está em luta com toda a gente e se sairá
vencedor dessa luta; um ardor belicoso e uma certeza de vencer que
desapareceram completamente nos cristãos dos nossos dias e não se reencontra
senão no outro pólo da sociedade, entre os socialistas.
De fato, a luta contra um mundo que inicialmente levou a
melhor e a luta simultânea dos inovadores entre si são comuns aos dois; aos
cristãos primitivos e aos socialistas. Os dois grandes movimentos não são
feitos por chefes e profetas — ainda que os profetas não faltem, quer num, quer
no outro —, são movimentos de massas. E todo o movimento de massas é no começo
necessariamente confuso; confuso porque todo o pensamento de massas se move,
primeiro, em contradições, porque lhe falta clareza e coerência; confuso ainda
precisamente por causa do papel que, nos começos, nele desempenham os profetas.
Esta confusão manifesta-se na formação de numerosas seitas que se combatem
entre si pelo menos com tanto empenho como o que dedicam ao comum inimigo exterior.
Isto passava-se assim no cristianismo primitivo; passa-se da mesma maneira nos
começos do movimento socialista, por mais aflitivo que isso seja para as
honestas pessoas bem intencionadas que pregavam a união, quando a união não era
possível.
Será que, por exemplo, a coesão da Internacional era devida
a um dogma unitário? De forma nenhuma. Encontravam-se lá comunistas segundo a
tradição francesa anterior a 1848, que, por sua vez, representavam cambiantes
diferentes; comunistas da escola de Weittling; outros ainda pertencendo à liga
regenerada dos comunistas; proudhonianos, que eram o elemento preponderante na
França e na Bélgica; blanquistas; o Partido Operário Alemão; enfim, anarquistas
bakouninistas, que, por momentos, dominaram na Espanha e na Itália; e estes
eram só os grupos principais. A partir da fundação da Internacional, foi
preciso um bom quarto de século para que se efetuasse definitivamente e por
todo o lado a separação com os anarquistas, e se estabelecesse um acordo pelo
menos acerca dos pontos de vista econômicos mais genéricos. E isso com os
nossos meios de comunicação, os caminhos de ferro, os telégrafos, as
monstruosas cidades industriais, a imprensa e as reuniões populares
organizadas.
A mesma divisão em inumeráveis seitas entre os primeiros
cristãos, divisão que era justamente o meio de organizar a discussão e de obter
a unidade ulterior. Constatamo-la já nesse livro, indubitavelmente o mais
antigo documento cristão, e o nosso autor condena-a com a mesma atitude
implacável que emprega em relação ao mundo dos pecadores não cristãos. Eis
primeiro os Nicolaites, em Éfeso, em Pérgamo; aqueles que se dizem Judeus mas
que são a sinagoga de Satã, em Esmirna e Filadélfia; os aderentes da doutrina
do falso profeta, chamado Balaam em Pérgamo; aqueles que dizem ser profetas mas
que não o são, em Éfeso; enfim os partidários da falsa profetisa, chamada
Jezabel, em Tiátira. Nada de mais preciso nos é dito acerca destas seitas; só
dos sucessores de Balaam e de Jezabel se diz que comem carne sacrificada aos
ídolos e que se entregam à impudícia.
Tentou-se imaginar que essas cinco seitas eram de cristãos
paulinianos e todas essas cartas como sendo dirigidas contra Paulo, o falso
apóstolo, o pretenso Balaam e “Nicolas”. Os argumentos, aliás dificilmente sustentáveis,
encontram-se reunidos em Renan. “São Paulo” (Paris, 1869, páginas
303-305-367-370). Todos acabam por explicar as nossas cartas pelos “Atos dos
Apóstolos” e pelas “Epístolas” ditas de Paulo, escritos que, pelo menos na sua
redação atual, são sessenta anos posteriores ao “Apocalipse” e cujos dados a
elas relativos são, pois, mais que duvidosos e que, além disso, se contradizem
absolutamente entre si. Mas o que resolve a questão é que de modo algum o nosso
autor se lembraria de dar a uma única e mesma seita cinco designações
diferentes: duas só para a de Éfeso (falsos apóstolos e nicolaites), duas
igualmente para Pérgamo (os balaamitas e os nicolaites), e ainda designando-as
expressamente em cada caso como duas seitas diferentes. Contudo, nós não pensamos
negar que entre essas seitas se pudessem encontrar elementos que hoje se
considerariam como seitas paulinianas.
Nos dois passos em que se entra em pormenores, a acusação
limita-se ao consumo de carnes sacrificadas aos ídolos e à impudícia, os dois
pontos sobre os quais os Judeus — tanto os antigos como os Judeus cristãos —
estavam em perpétua disputa com os pagãos convertidos. Carne oriunda dos
sacrifícios pagãos era não só servida nos festins, em que recusar os pratos
apresentados poderia parecer incoveniente e até perigoso, mas era também
vendida nos mercados públicos, em que não era praticamente possível distinguir
se era Koscher ou não. Por impudícia, os mesmos Judeus não entendiam apenas o
comércio sexual fora do casamento, mas também o casamento entre parentes de
graus proibidos pela lei judaica, ou ainda entre Judeus e pagãos, e é este o
significado que geralmente é dado à palavra nos “Atos dos Apóstolos” (XV, 20 e
29). Mas o nosso João tem uma opinião própria mesmo no que dizia respeito ao comércio
sexual entre os Judeus ortodoxos. Ele diz (XIC, 4) dos 144.000 Judeus celestes:
“São aqueles que não se mancharam com mulheres, porque são virgens.” E, de
fato, no céu do nosso João não existe uma única mulher. Ele pertencia, pois, a
essa tendência que se manifesta igualmente noutros escritos do cristianismo
primitivo e considera pecado o comércio sexual em geral. Se, além disso,
considerarmos o fato de ele chamar a Roma a grande prostituída, com a qual os
reis da Terra se entregaram à impudícia e foram embriagados pelo vinho da sua
impudícia — e os seus mercadores enriqueceram pelo poder do seu luxo —, é-nos
impossível considerar a palavra, nas cartas, no sentido estrito que a
apologética teológica lhe queria atribuir, com o único fito de extrair uma
confirmação para outras passagens do Novo Testamento. Muito pelo contrário.
Essas passagens das cartas indicam claramente um fenômeno comum a todas as
épocas profundamente perturbadas, isto é, que, ao mesmo tempo que se abalam
todas as barreiras, procura-se relaxar os limites tradicionais do comércio
sexual. Nos primeiros séculos cristãos, igualmente, ao lado do ascetismo que
mortifica a carne, manifesta-se muitas vezes a tendência para estender a
liberdade cristã às relações, mais ou menos livres, entre homens e mulheres. A
mesma coisa aconteceu no movimento socialista moderno.
Que santa indignação não provocou, depois de 1830, na
Alemanha de então — essa “piedosa nursery”, como lhe chama Heine — a
reabilitação da carne são-simoniana! As mais intensamente indignadas foram as
ordens aristocráticas que dominavam na época (nessa época não havia ainda
classes entre nós) e que, tanto em Berlim como nas suas propriedades de campo,
não sabiam viver sem uma reabilitação sempre reiterada da sua carne. Que diriam
essas boas pessoas se tivessem conhecido Fourier, que oferece para a carne a
perspectiva de muito mais alegrias!
Uma vez ultrapassado o utopismo, essas extravagâncias
cederam lugar a noções mais racionais e, na realidade, bem mais radicais, e,
desde que a Alemanha, da “piedosa nursery” de Heine que era, se tornou o centro
do movimento socialista, toda a gente se ri da indignação hipócrita do piedoso
mundo aristocrático.
É tudo, quanto ao conteúdo dogmático das cartas. Quanto ao
resto, elas excitam os camaradas à propaganda enérgica, à orgulhosa e corajosa
confissão da sua fé face aos adversários, à luta sem tréguas contra o inimigo
de fora e de dentro; e, sob esse aspecto, elas poderiam também ter sido
escritas por um entusiasta da Internacional, por menos profeta que ele fosse.
III
As cartas são apenas a introdução ao verdadeiro tema da
comunicação do nosso João às sete Igrejas da Ásia Menor e, através delas, a
toda a comunidade judaica reformada do ano 69, donde, mais tarde, saiu a
cristandade. E então entramos no santuário mais íntimo do cristianismo
primitivo.
Entre que tipo de gente se recrutavam os primeiros cristãos?
Principalmente entre os “laboriosos e os fatigados”, pertencendo às mais baixas
camadas do povo; tal como convém a um elemento revolucionário. E de quem se
compunham essas camadas? Nas cidades, de homens livres decadentes — gente de
toda a espécie, semelhantes aos “mean whites” dos Estados esclavagistas do Sul,
aos aventureiros e aos vagabundos europeus das cidades marítimas coloniais e chinesas,
depois de libertos — e sobretudo de escravos; nos latifundia da Itália, da
Sicília e da África, de escravos; nos distritos rurais das províncias, de
pequenos camponeses cada vez mais dependentes pelas suas dívidas. Não existia
de modo algum uma via de emancipação comum para tantos elementos diversos. Para
todos, o paraíso perdido situava-se no passado; para o homem livre desiludido,
era a “polis”, cidade e Estado ao mesmo tempo, de quem os seus antepassados
haviam sido outrora cidadãos livres; para os escravos prisioneiros de guerra, a
era da liberdade antes da sujeição e do cativeiro; para o pequeno camponês, a
sociedade gentílica e a comunidade do solo destruídas. Tudo isso, a mão de
ferro niveladora do Romano conquistador havia deitado abaixo. O agrupamento
social mais consistente que a Antigüidade tinha sabido criar era a tribo e a
confederação de tribos aparentadas, agrupamento baseado, entre os Bárbaros, nas
linhas de consagüinidade, entre os Gregos e os Italiotas, fundadores de
cidades, sobre a “polis”, que compreendia uma ou várias tribos aparentadas.
Filipe e Alexandre deram à península helênica a unidade política, mas dela não
resultou a formação de uma nação grega. As nações só se tornaram possíveis
depois da queda do Império Romano. Este pôs termo, de uma vez para sempre, aos
pequenos agrupamentos; a força militar, a jurisdição romana, o aparelho de
percepção de impostos, deslocaram completamente a organização interior
tradicional. À perda da independência e da organização original acrescentou-se
a pilhagem pelas autoridades civis e militares, que começavam por despojar os
vencidos dos seus tesouros para depois lhes emprestarem de novo com taxas de
usura, para que eles pudessem pagar novas exações. O peso dos impostos e a
necessidade de dinheiro que daí resultava, em regiões em que a economia natural
reinava exclusivamente ou de maneira preponderante, colocava cada vez mais os
camponeses na dependência dos usurários, introduzindo uma grande desproporção
de fortuna. Enriquecia os ricos e empobrecia completamente os pobres. E toda a
resistência das pequenas tribos isoladas ou das cidades ao gigantesco poder de
Roma era sem esperança. Que remédio para isso, que refúgio para os vencidos, os
oprimidos, os empobrecidos, que saída comum para esses grupos humanos diversos,
de interesses divergentes ou mesmo opostos? Era contudo preciso encontrar uma,
era preciso que um único grande movimento revolucionário os envolvesse a todos.
Essa saída encontrou-se; mas não neste mundo. E, no estado
de coisas de então, só a religião podia proporcioná-la. Descobriu-se um novo
mundo. A existência da alma depois da morte do corpo tinha-se tornado, pouco a
pouco, um artigo de fé reconhecido em todo o mundo romano. Além disso, um modo
de sofrimento e de recompensa para a alma do morto, segundo as ações cometidas
em vida, era por toda a parte progressivamente admitido. Quando às recompensas,
na verdade, isso soava um pouco falso; a Antigüidade era demasiado
espontaneamente materialista para não considerar infinitamente mais preciosa a
vida real do que a vida no reino das sombras; para os Gregos, a imortalidade
era mesmo considerada uma infelicidade. Apareceu o cristianismo, que levou a
sério os sofrimentos e as recompensas no outro mundo e criou o céu e o inferno;
assim estava encontrada a via por onde conduzir os laboriosos e os desiludidos
deste vale de lágrimas para o paraíso eterno. De fato, era preciso a esperança
de uma recompensa no Além para conseguir elevar a renúncia ao mundo e o
ascetismo da escola estóica de Philon à categoria de princípio ético
fundamental de uma nova religião universal, capaz de arrastar as massas
oprimidas.
Contudo, a morte não abre de imediato esse paraíso celeste
aos fiéis. Veremos que o reino de Deus, de que a nova Jerusalém é a capital,
não se conquista nem se abre senão depois de ardentes lutas contra as potências
infernais. Ora, os primeiros cristãos consideravam essas lutas como iminentes.
Desde o começo, o nosso João designa o seu livro como a revelação “de coisas
que devem acontecer em breve”; pouco depois, no versículo três, ele diz: “Feliz
aquele que lê e aqueles que escutam as palavras da profecia, porque o tempo
está próximo”; à comunidade de Filadélfia, Jesus Cristo faz escrever: “Virei em
breve”, e, no último capítulo, o anjo diz que revelou a João “as coisas que
devem acontecer em breve” e ordena-lhe: “Não seles as palavras da profecia
deste livro, porque o tempo está próximo”, e Jesus Cristo diz por duas vezes,
versículos 12 e 30: “Virei em breve”. Veremos em seguida quanto essa vinda era
esperada para breve.
As visões apocalípticas que o autor faz passar sob os nossos
olhos são todas, e quase sempre palavra por palavra, extraídas de modelos
anteriores. Em parte dos profetas clássicos do Antigo Testamento, sobretudo de
Ezequiel, em parte dos apocalipses judaicos posteriores, compostos segundo o
protótipo do livro de Daniel, e sobretudo do livro de Enoch, já redigido, pelo
menos em parte, nessa época. Os críticos já demonstraram, até os mínimos
detalhes, de onde o nosso João tirou cada imagem, cada prognóstico sinistro,
cada chaga inflligida à humanidade incrédula, em suma, o conjunto de materiais
do seu livro; de forma que ele manifesta uma pobreza de espírito pouco comum,
mas ainda é o próprio a proporcionar-nos a prova de que, as suas pretensas
visões e êxtases, ele não as viveu, nem mesmo em imaginação, tal como as
descreve.
Eis, em algumas palavras, a marcha das aparições. Primeiro,
João vê Deus sentado sobre o seu trono, um livro selado com sete selos na mão;
diante dele está o cordeiro (Jesus) degolado, mas de novo vivo, que é
considerado digno de abrir os selos. A abertura dos selos é acompanhada de toda
a espécie de sinais e de prodígios ameaçadores. Ao quinto selo João apercebe,
sob o altar de Deus, as almas dos mártires de Cristo que foram mortos por causa
da palavra de Deus:
Eles gritaram com voz forte: Até quando, mestre santo e
venerável, continuarás a adiar o julgamento e a vingança do nosso sangue sobre
os habitantes da terra?
Nesta altura, é dada a cada um uma veste branca e dizem-lhes
que esperem ainda um pouco até que esteja completo o número de mártires que
devem morrer. Ainda então não se fala da “religião do amor”, do “amai aqueles
que vos odeiam, abençoai os que vos maldizem” etc. . . . Aqui prega-se
abertamente a vingança, a sã, a honesta vingança a exercer sobre os
perseguidores dos cristãos. Isso prolonga-se ao longo de todo o livro. Quanto
mais se aproxima a crise, mais as chagas e os julgamentos chovem densamente do
céu, e mais o nosso João sente alegria ao anunciar que a maioria dos homens
continua a não se arrepender e a recusar fazer penitência pelos seus pecados;
que novos flagelos de Deus devem cair sobre eles; que Cristo deve governá-los
com uma vara de ferro e pisar o vinho no lagar da cólera de Deus todo poderoso;
mas que, apesar de tudo, os maus continuam a ter o coração endurecido. É o
sentimento natural, afastado de toda a hipocrisia, de que se está em luta, e
que “na guerra como na guerra”. Na abertura do sétimo selo, aparecem sete anjos
com trombetas: sempre que um anjo toca a trombeta, produzem-se novos sinais de
terror. Depois do sétimo toque de trombeta, sete novos anjos surgem em cena
trazendo as sete cóleras de Deus, que são lançadas sobre a terra, e de novo
chovem flagelos e julgamentos, no essencial uma fatigante repetição do que já
acontecera inúmeras vezes. Depois, surge a mulher, Babilônia, a grande
prostituída, vestida de púrpura e de escarlate, sentada sobre as águas, bêbada
do sangue dos santos e do sangue dos mártires de Jesus; é a grande cidade sobre
as sete colinas que tem a realeza sobre os reis da terra. Está sentada sobre um
animal que tem sete cabeças e dez cornos. As sete cabeças são sete montanhas,
são também sete “reis”. Desses reis, cinco passaram; um existe, o sétimo virá,
e, depois dele, um dos cinco primeiros voltará, o qual estava ferido de morte
mas curou-se. Este reinará sobre a terra quarenta e dois meses ou três anos e
meio (a metade de uma semana de anos de sete anos), perseguirá os fiéis até a
morte e fará triunfar a impiedade. Em seguida, trava-se uma grande batalha
decisiva, os santos e os mártires são vingados pela destruição da grande
prostituta Babilônia e todos os seus partidários, quer dizer, a grande maioria
dos homens; o diabo é precipitado no abismo e aí é agrilhoado durante mil anos,
durante os quais reina Cristo com os mártires ressuscitados. Quando os mil anos
tiverem sido cumpridos, o diabo é libertado: segue-se uma última batalha dos
espíritos na qual ele é definitivamente vencido. Há uma segunda ressurreição,
os restantes mortos ressuscitam e comparecem diante do trono de Deus (não do de
Cristo, reparem bem) e os fiéis entram num novo céu, numa nova Terra e numa
nova Jerusalém para a vida eterna. Tal como toda esta construção é erguida com
materiais quase exclusivamente judeus e pré-cristãos, também inclui quase
exclusivamente concepções puramente judaicas. Desde que as coisas começaram a
correr mal para o povo de Israel, a partir do momento em que ficou tributário
da Assíria e da Babilônia, desde a destruição dos dois reinos de Israel e de
Judá, até à sua submissão pelos Seleucidas, isto é, de Isaías até Daniel,
sempre existiu, nas horas da adversidade, a profecia de um salvador providencial.
No capítulo XII, I, de Daniel encontra-se a profecia da descida de Miguel, o
anjo-da-guarda dos Judeus, que os libertará da sua grande angústia: “Muitos
mortos ressuscitarão; haverá uma espécie de julgamento final e aqueles que
ensinaram a justiça à multidão brilharão como estrelas, para sempre e
perpetuamente”. De cristão, apenas a forma como se insiste na iminência do
reino de Jesus Cristo e na felicidade dos fiéis ressuscitados, particularmente
dos mártires.
É à crítica alemã, e sobretudo a Ewald, Lucke e Ferdinand
Benary que devemos a interpretação desta profecia, no que respeita aos
acontecimentos da época. Graças a Renan, ela penetrou noutros meios para lá dos
círculos teológicos. A grande prostituída, Babilônia, significa, como vimos, a cidade
das sete colinas, Roma. Do animal sobre o qual ela está sentada, diz-se, XVII,
nove, 11:
As sete cabeças são sete montanhas sobre as quais a mulher
está sentada. São também sete reis: cinco caíram, um existe, o outro ainda não
veio, e, quando vier, ficará pouco tempo. E o animal que estava, e que já não
está, é um oitavo rei, e pertence ao número dos sete, e caminha para a
perdição.
O animal é, pois, a dominação mundial de Roma, representada
sucessivamente por sete imperadores, um dos quais foi ferido de morte e deixou
de reinar, mas que se curou, e voltará, para cumprir, como oitavo rei, o reino
da blasfêmia e da rebelião contra Deus.
E foi-lhe ordenado que fizesse a guerra aos santos e os
vencesse. E foi-lhe dada autoridade sobre todas as tribos, todos os povos,
todas as línguas e todas as nações, e todos os habitantes da Terra o adorarão,
aqueles cujo nome não foi escrito desde a fundação do mundo no livro da vida do
cordeiro que foi imolado. E ela fez com que todos, pequenos e grandes, ricos e
pobres, livres e escravos, recebessem uma marca sobre a mão direita ou sobre a
fronte e com que ninguém pudesse comprar ou vender sem ter a marca, o nome do
animal ou o número do seu nome. É esta a sabedoria. Que quem tem inteligência
calcule o número do animal. Porque é um número de homem e o seu número é 666
(XIII, sete-18).
Constatemos apenas que o boicote é mencionado aqui como uma
medida a empregar pelo poderio romano contra os cristãos — que ele é, pois,
manifestamente uma invenção do diabo — e passemos à questão de sabermos quem é
esse imperador romano que já reinou, que foi ferido de morte e que volta como o
oitavo da série para ser o Anticristo.
Depois de Augusto, o primeiro, temos: dois, Tibério; três,
Calígula; quatro, Cláudio; cinco, Nero; seis, Galba. “Cinco caíram, um existe”.
Portanto Nero já caiu. Galba existe. Galba reinou de 9 de junho de 68 até 15 de
janeiro de 69. Mas, assim que ele subiu ao trono, as legiões do Reno
sublevaram-se sob Vitellius, enquanto, noutras províncias, outros generais
preparavam levantamentos militares. Mesmo em Roma, os pretorianos
sublevaram-se, mataram Galba e proclamaram Otão imperador.
Daqui resulta que o nosso “Apocalipse” foi escrito sob
Galba, naturalmente para o fim do seu reinado, ou mais tarde, durante os três
meses (até 15 de abril de 69) do reinado de Otão, o sétimo. Mas quem é o
oitavo, que foi e não é? O número 666 é a chave.
Entre os Semitas — os Caldeus e os Judeus — desta época, uma
arte mágica estava em voga, baseada num duplo significado das letras. Desde
cerca de trezentos anos antes da nossa era, as letras hebraicas eram também
empregues como números: a=1, b=2, c=3, d=4, e assim sucessivamente. Ora, os
adivinhos cabalistas adicionavam os valores numéricos das letras de um nome, e
com a ajuda da soma dos algarismos obtida, por exemplo formando palavras ou
combinações de palavras de um igual valor numérico que permitiam extrair
conclusões sobre o futuro de quem tinha o nome, procuravam fazer profecias. De
forma idêntica exprimiam-se palavras secretas nessa língua numérica. Dava-se a
esta arte um nome grego, “ghematriah”, geometria; os Caldeus, que a exerciam
como profissão, e a quem Tácito chamava “mathemaci”, foram expulsos de Roma sob
Cláudio, e de novo sob Vitellius, provavelmente por “delito grave”.
Foi precisamente por meio desta matemática que foi produzido
o número 666. Por detrás dele, esconde-se o nome de um dos primeiros cinco
imperadores romanos. Ora, Ireneu, no fim do século II, além do número 666,
conhecia a variante 616, que datava também de uma época em que o enigma dos
algarismos era ainda conhecido. Se a solução responder igualmente aos dois
números, a prova está feita.
Ferdinand Bernary, em Berlim, encontrou essa solução. O nome
é Nero. O número fundamenta-se em Neron Kesar, a transcrição hebraica — como o
atestam o Talmude e as inscrições palmirianas — do grego “Nérôn Kaisar”, Nero
imperador, que tinha, como legenda, a moeda de Nero, cunhada nas províncias do
Leste do Império. Assim: n (nun)=50; r(resch)=200; v(vau) por 0=6; n(nun)=50; k(koph)=100;
s(samech)=60; e r(resch)=200; total=666. Ora, tomando como base a forma latina,
“Nero Caesar” o segundo n(nun)=50 suprime-se, e obtemos 666-50=616, a variante
de Ireneu.
Efetivamente, todo o Império Romano, no tempo de Galba,
vivia em plena confusão. O próprio Galba, chefiando as legiões de Espanha e da
Gália, marchara sobre Roma para expulsar Nero; este fugiu e fez-se matar por um
liberto. Mas, contra Galba, não só os pretorianos em Roma mas também os
comandantes das províncias conspiravam; por todo o lado surgiram pretendentes
ao trono, preparando-se para avançar sobre a capital com as suas legiões. O
Império parecia ter caído numa guerra intestina; a sua queda parecia iminente.
Para cúmulo, espalhou-se o boato, sobretudo no Oriente, de que Nero não estava
morto, mas apenas ferido, que estava refugiado entre os Partas, que
atravessaria o Eufrates e surgiria com uma força armada para inaugurar um novo
reino de terror ainda mais sangrento. Sobretudo a Acaia e a Ásia foram
alarmadas com essas notícias. E, precisamente no momento em que o “Apocalipse”
deve ter sido composto, apareceu um falso Nero que se estabeleceu com um
partido bastante numeroso na ilha de Citnos (a Térmia moderna), no mar Egeu,
perto de Patmos e da Ásia Menor, até que foi morto sob Otão. Nada de espantoso
que entre os cristãos, contra quem Nero lançara as primeiras grandes
perseguições, se tenha propagado o boato de que ele havia de voltar como
Anticristo, que o seu regresso bem como uma nova e mais séria tentativa de
exterminação sangrenta da jovem seita seriam o presságio e o prelúdio de
Cristo, da grande batalha vitoriosa contra as potências do inferno, do reino
dos mil anos a estabelecer “em breve” e cuja chegada certa permitia aos
mártires irem alegremente para a morte.
A literatura cristã e de inspiração cristã dos dois
primeiros séculos garante, com índices suficientes, que o segredo do número 666
é então conhecido de muitos. Ireneu de certeza que já o não conhecia, mas, por
outro lado, sabia, como muitos outros até fins do século II, que o animal do
“Apocalipse” era Nero voltando. Depois, este último traço perdeu-se e o nosso
“Apocalipse” caiu em poder da interpretação fantástica dos adivinhos ortodoxos;
eu próprio ainda conheci pessoas idosas que, segundo os cálculos do velho Johnn
Albrecht Bengel, esperavam o fim do mundo e o último julgamento para o ano de
1836; a profecia realizou-se na data anunciada. Só que o julgamento não atingiu
o mundo dos pecadores, mas antes os piedosos intérpretes do “Apocalipse”.
Porque, nesse ano de 1836, F. Bernary forneceu a chave do número 666 e pôs
assim termo a todo esse cálculo divinatório, a essa nova “ghemetriah”.
Do reino celeste reservado aos fiéis, o nosso João apenas
nos fornece uma descrição muito superficial. Para a época, a nova Jerusalém é
construída segundo um plano bastante grandioso: um quadrado de 12.000 estádios
de lado=2227 quilômetros, portanto uma superfície de cerca de 5 milhões de
quilômetros quadrados, mais do que metade dos Estados Unidos da América,
construída unicamente em ouro e pedras preciosas. Aí, Deus habita no meio dos
seus e ilumina-os, substituindo o Sol; não há já nem morte, nem lamentos, nem
sofrimentos; um rio de água viva corre através da cidade, nas suas margens
cresce a árvore da vida produzindo doze vezes os seus frutos, dando fruto todos
os meses, e as folhas das árvores servem “para a cura dos gentis” (à maneira de
um chá medicinal, segundo Renan: “O Anticristo”, p. 542). Aí vivem os santos
nos séculos dos séculos.
Era assim que se construía o cristianismo na Ásia Menor, o
seu primeiro centro, por volta do ano de 68, segundo o que conhecemos. Nenhum
indício de uma Trindade; em seu lugar, o velho Jeová, uno e indivisível, do
judaísmo decadente, que, de Deus nacional judeu, se elevou à categoria de Deus
único; Deus supremo do céu e da terra onde pretende reinar sobre todos os
povos, prometendo a graça aos convertidos e exterminando os rebeldes sem
misericórdia, nisso fiel ao antigo “parcere subjectis ac debellare superbos”.
Também é esse Deus que preside o último julgamento, e não Jesus Cristo, como
nas narrativas ulteriores dos Evangelhos e das Epístolas. Conforme à doutrina
persa da emanação, familiar ao judaísmo decadente, o Cristo é o cordeiro,
emanado de Deus de toda a eternidade; tal como, embora ocupando um lugar muito
inferior, os “sete espíritos de Deus” que devem a sua existência a uma passagem
poética mal compreendida (Isaías, XI, dois). Nenhum deles é Deus ou igual a
Deus, mas submetido a ele. O cordeiro oferece-se de sua plena vontade como sacrifício
expiatório pelos pecados do mundo, e por esse alto feito vê-se expressamente
promovido em grau no céu; em todo o livro esse sacrifício voluntário é contado
como um ato extraordinário e não como uma ação oriunda necessariamente do mais
profundo do seu ser.
É evidente que toda a corte celeste dos antigos, dos
querubins, dos anjos e dos santos não falta. Para se constituir em religião, o
monoteísmo sempre teve de fazer concessões ao politeísmo, datando do
“Zendavesta”. Entre os Judeus, a recaída para os deuses pagãos e sensuais
persiste em estado crônico até que, depois do exílio, a corte celeste, à
maneira persa, acomoda um pouco melhor a religião à imaginação popular. O
próprio cristianismo, mesmo depois de ter substituído o Deus dos Judeus eternamente
imutável pelo misterioso Deus trinitário, diferenciado em si mesmo, não
conseguiu suplantar o culto dos antigos deuses entre as massas senão pelo culto
dos santos. Assim, segundo Fallmerayer, o culto de Júpiter persistiu no
Peloponeso, na Maina, na Arcádia, até cerca do século IX. E só a época moderna
e o seu protestantismo afastam os santos e encaram, enfim, seriamente, o
monoteísmo diferenciado.
O nosso “Apocalipse” também não conhece o dogma do pecado
original nem a justificação pela fé. A fé dessas primeiras comunidades
belicosas difere completamente da Igreja triunfante posterior; ao lado do
sacrifício expiatório do cordeiro, a próxima vinda de Cristo e a iminência do
reino milenar constituem o seu conteúdo essencial e ela manifesta-se pela ativa
propaganda, pela luta sem tréguas contra o inimigo de fora e de dentro, pela
orgulhosa confissão das suas convicções revolucionárias diante dos juízes
pagãos, pelo martírio corajosamente suportado na certeza da vitória.
Como vimos, o autor não suspeita ainda que é algo mais que
Judeu. Conseqüentemente, nenhuma alusão, em todo o livro, ao batismo; existem
também numerosos indícios de que o batismo é uma instituição do segundo período
cristão. Os 144.000 Judeus crentes são “selados”, não batizados. Dos santos no
céu é dito: “São aqueles que lavaram e embranqueceram as longas vestes no
sangue do cordeiro”; nada acerca da água do batismo. Os dois profetas que
precedem a aparição do Anticristo (cap. XI) também não batizam e, no capítulo
XIX, 10, o testemunho de Jesus não é o batismo mas o espírito de profecia.
Teria sido natural em todas estas ocasiões falar do batismo, por pouco que
estivesse já instituído. Estamos pois autorizados a concluir com uma quase
certeza que o nosso autor não o conhecia e que ele só foi introduzido quando os
cristãos se separaram completamente dos Judeus.
O nosso autor é também ignorante acerca do segundo
sacramento ulterior — a eucaristia. Se no texto de Lutero o Cristo promete a
todos os Tiasirianos que perseveraram na fé a entrada na sua casa e a comunhão
com ele, isso constitui uma falsa abordagem do texto. Em grego lê-se
“deipneso”, eu cearei (com ele), e a palavra está corretamente traduzida na
bíblia inglesa: “I shall sup with him”. A ceia como festim comemorativo não é
aqui referida.
O nosso livro, com a data (68 ou 69) atestada de maneira tão
particular, é indubitavelmente o mais antigo da literatura cristã no seu
conjunto. Nenhum outro é escrito numa língua tão bárbara, em que formigam os
hebraísmos, as construções impossíveis, os erros gramaticais. Só os teólogos de
profissão, ou outros historiógrafos interessados, continuam a negar que os
Evangelhos e os “Atos dos Apóstolos” são arranjos tardios de escritos hoje
perdidos e cujo tênue núcleo histórico já não pode ser descoberto sob a
luxuriante lenda; mesmo as três ou quatro “Epístolas” apostólicas pretensamente
autênticas de Bruno Bauer não representam mais do que escritos de uma época
posterior, ou, na melhor das hipóteses, composições mais antigas de autores
desconhecidos, retocadas e embelezadas por numerosas adições e interpolações. É
muito mais importante para nós possuir com a nossa obra, cujo período de
redação se estabelece com a margem de erro de um mês, um livro que nos
apresenta o cristianismo sob a sua forma mais rudimentar, sob a forma em que
está para a religião de Estado do século IV, constituída na sua dogmática e na
sua mitologia pouco mais ou menos como a mitologia ainda vacilante dos Germanos
de Tácito está para a mitologia do Edda, plenamente elaborada sob a influência
de elementos cristãos e antigos.
O germe da religião universal encontra-se lá, mas contém
ainda em estado indiferenciado as mil possibilidades de desenvolvimento que se
realizaram nas inumeráveis seitas ulteriores. Se o fragmento mais antigo do processo
de elaboração do cristianismo tem para nós um valor muito particular, é porque
nos proporciona, na sua integridade, o que o judaísmo — fortemente influenciado
por Alexandria — forneceu ao cristianismo. Tudo o que é posterior é acrescento
ocidental, greco-romano. Foi necessária a mediação da religião judaica
monoteísta para fazer revestir ao monoteísmo erudito da filosofia grega vulgar
a forma religiosa sob a qual ele podia chegar às massas. Uma vez essa mediação
encontrada, ele só podia tornar-se uma religião universal no mundo
greco-romano, continuando a desenvolver-se para finalmente se fundir no fundo
de idéias que esse mundo tinha conquistado.
por Friedrich Engels, publicado no Die Neue Zeit, em 1895
TEMAS:
Marxismo-leninismo
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