esperei por ti em todos os lugares errados
- a quem pedir agora explicações?
viver diziam-me era assim e não havia
mistério nenhum nisso apenas
um roteiro obscuro estabelecido
entre o que tem de acontecer e aquilo
que não acontece nunca
e diziam-me ainda ninguém pode
com justiça reclamar
o que há tantos anos abandonou
num sombrio patamar de prédio suburbano
perdemo-nos então
por pensamentos palavras actos e omissões
e todas as palavras recuaram por infinitos precipícios
sem reconhecerem o som da nossa voz
nem o eco das noites em que todas
nos tinham pertencido
num sombrio patamar de prédio suburbano
até pode ser que nem gostes muito destas palavras
nem de mim agora que os meus gestos
são tão diferentes
agora que recordas tanta coisa que eu esqueci
e ainda bem ninguém pode viver
com o peso do que ficou para trás
agora que os livros as canções as laranjeiras
ficaram para sempre naquele cenário de primavera
que fazia de nós todos o garantiam
presas tão fáceis
pressinto que hás-de culpar-me sempre
pelos anos que perdemos por becos ruas avenidas
esquecendo à toa aquilo
que só um ao outro deveríamos ter ensinado
talvez até tenhas razão mas eu chegara
àquele lugar da vida onde só se pode
amar para sempre e sem remédio
e de um dia para o outro a minha boca
desaprendeu disciplinadamente o sabor da tua
e os teus passos a tua voz o céu de paris
a janela sobre os telhados os domingos de sol
atravessaram as mais arrastadas fronteiras
e estabeleceram os seus limites do lado de lá
de todas as madrugadas que eram nossas
houve mesmo um tempo desculpa em que esqueci
as cartas os cigarros as fugas os recados
as canções as camélias o jardim
onde me esperavas às nove da manhã
a velha que nos olhava abanando a cabeça
entre estátuas decepadas e gatos vadios
talvez um dia quem sabe o destino
volte a ter novos contornos e nos olhe de frente
e ainda sobre tempo para reaprender a soletrar correctamente
todas as palavras que admitiam ter nascido
do teu corpo da tua voz do sabor da tua boca
tempo para povoar de novos sons os velhos discos de vinil
e sonhar com mundos à espera de serem salvos
pelas nossas palavras
tempo para nos olharmos e encontrarmos
sem remorsos
a maneira de nos perdermos de novo nos caminhos
que levam ao coração absoluto da terra
talvez um dia quem sabe eu volte
a faltar às aulas para esperar por ti
Alice VIeira,
Dois Corpos Tombando na Água
quinta-feira, 23 de agosto de 2012
Os peruanos segundo Chambi
Fotógrafo fixou a vida tanto da elite de seu país como dos despossuídos, dignificando os últimos, segundo Vargas Llosa
23 de agosto de 2012
ANTONIO GONÇALVES FILHO – O Estado de S.Paulo
A sintaxe visual aparentemente simples do peruano Martín Chambi encerra um dos grandes mistérios da fotografia. Quais seriam, afinal, as referências culturais desse homem que só cursou a escola primária, filho de mineiro e primeiro fotógrafo indígena latino-americano? Sejam nas cenas da vida cotidiana, nas paisagens ou nos retratos que integram a exposição Chambi Inédito, a partir de sábado, na Galeria Fass, é possível identificar desde uma fixação no autorretrato como forma de autoconhecimento – à maneira de Rembrandt – até uma luz oblíqua que ilumina apenas fragmentos do corpo, como na pintura de Caravaggio, além de uma composição rigorosamente estudada, que fez com que os críticos o associassem ao pictorialismo.
Teo Allain Chambi, neto do fotógrafo e diretor da fundação que leva o seu nome, confirma a suspeita de que ele talvez tivesse visto algumas reproduções das telas de Rembrandt no estúdio de seu professor de fotografia, Max T. Vargas. “Numa entrevista a um jornal de Lima, em 1927, meu avô disse que sua inspiração era um tal de Rembranat (sic), que tinha visto na casa de seu mestre”, conta Teo, também fotógrafo e um dedicado pesquisador da obra do avô, que deixou mais de 30 mil placas de vidro, segundo seus cálculos.
Na primeira catalogação, feita pelo antropólogo norte-americano Edward Ranney com ajuda dos filhos de Chambi, Victor e Julia, eram 14 mil placas. A pesquisa rendeu uma exposição de 150 fotos no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), em 1979, que viajou pelo interior dos EUA e chegou a Londres, passando pelo Canadá. Ranney, formado em Yale e também fotógrafo, descobriu a arte de Chambi quando o peruano já era um veterano profissional de 73 anos, mas ainda desconhecido fora de seu país. O americano, estudioso das culturas andinas antigas, viu nesse material um valioso guia para analisar os costumes dos descendentes dos incas e uma oportunidade de mostrar ao mundo a qualidade excepcional do trabalho do fotógrafo peruano, transformando em negativos mais de 5 mil placas de vidro de seu estúdio.
As fotos de Ranney, hoje com 70 anos, não disfarçam o legado que recebeu de Chambi em sua formação como fotógrafo. Sobre ele, o curador Peter C. Burnell já escreveu que o americano consegue captar a essência das edificações pré-colombianas, sendo capaz de traduzir o olhar arquitetônico que levou as comunidades indígenas a emular as paisagens andinas em seus monumentos. O autorretrato de Chambi em Machu Picchu (de 1932, ao lado) mostra que seu olhar parece ter herdado dos ancestrais essa capacidade de mimetizar a natureza, pois ele mesmo surge como um totem no exato local escolhido pelos turistas como o belvedere das ruínas do antigo império inca, como observa seu neto Teo. Chambi foi pioneiro em fazer cartões-postais de Machu Picchu, a cidade perdida dos incas, descoberta em 1911 (os exploradores, até essa data, passavam por ela sem dar atenção ao patrimônio da humanidade).
Antes de voltar sua atenção para sítios arqueológicos, Chambi vivia de seus retratos da burguesia local de Cusco. É possível identificar dois olhares distintos nas fotos das cerimônias sociais da classe dominante e nas festas populares dos indígenas, com os quais, naturalmente, Chambi se identificava. Uma de suas imagens icônicas é a das damas da sociedade cusquenhas que emergem entre arbustos como botões de rosa (veja foto acima, de 1931). Nela, as senhoritas são retratadas numa composição teatral, francamente artificial e um tanto ‘camp’. Basta comparar essa imagem com Reunião de Carnaval em Cusco (1930) – luz natural sobre rostos de populares embriagados – para atestar que a simpatia de Chambi estava, obviamente, com os despossuídos.
“Ele foi, de fato, o primeiro a retratar o próprio povo indígena, escravizado até os anos 1920, o que o fez se integrar ao movimento indigenista e colocar as imagens de índios na vitrine de seu estúdio em Cusco”, conta o neto Teo Chambi, revelando que pretende organizar uma exposição em Buenos Aires para aproximar sua visão antropológica de Pierre Verger. O fotógrafo francês, que adotou o Brasil, conheceu Chambi em seu estúdio da Calle Marqués, 69, endereço também frequentado pela elite de Cusco, que contratava o fotógrafo para documentar batizados e festas de casamento. “Nunca fizeram uma exposição comparativa e acho que também valeria a pena mencionar August Sander, embora considere que cada um tem seu mundo, a despeito das muitas afinidades.”
Presente em coleções institucionais importantes como as do MoMA de Nova York e particulares, como as dos fotógrafos Mario Testigo e Sebastião Salgado, as imagens de Martín Chambi, além do lado documental e antropológico, destacam-se pelo alto nível técnico. O escritor peruano Mario Vargas Llosa lembra a esse respeito que o mundo de Chambi “é sempre belo”. O prêmio Nobel de Literatura acrescenta: “É um mundo no qual as formas de desamparo, discriminação e vassalagem foram humanizadas e dignificadas pela limpeza da visão e elegância do tratamento”.
Essa visão, diz o neto do fotógrafo, tem a ver com o senso de honra de um descendente dos incas que, católico, fez do registro da imagem uma profissão de fé. “Isso explica sua fixação nos templos e o fato de ter entre suas primeiras fotos as das procissões de Cusco.”
23 de agosto de 2012
ANTONIO GONÇALVES FILHO – O Estado de S.Paulo
A sintaxe visual aparentemente simples do peruano Martín Chambi encerra um dos grandes mistérios da fotografia. Quais seriam, afinal, as referências culturais desse homem que só cursou a escola primária, filho de mineiro e primeiro fotógrafo indígena latino-americano? Sejam nas cenas da vida cotidiana, nas paisagens ou nos retratos que integram a exposição Chambi Inédito, a partir de sábado, na Galeria Fass, é possível identificar desde uma fixação no autorretrato como forma de autoconhecimento – à maneira de Rembrandt – até uma luz oblíqua que ilumina apenas fragmentos do corpo, como na pintura de Caravaggio, além de uma composição rigorosamente estudada, que fez com que os críticos o associassem ao pictorialismo.
Teo Allain Chambi, neto do fotógrafo e diretor da fundação que leva o seu nome, confirma a suspeita de que ele talvez tivesse visto algumas reproduções das telas de Rembrandt no estúdio de seu professor de fotografia, Max T. Vargas. “Numa entrevista a um jornal de Lima, em 1927, meu avô disse que sua inspiração era um tal de Rembranat (sic), que tinha visto na casa de seu mestre”, conta Teo, também fotógrafo e um dedicado pesquisador da obra do avô, que deixou mais de 30 mil placas de vidro, segundo seus cálculos.
Na primeira catalogação, feita pelo antropólogo norte-americano Edward Ranney com ajuda dos filhos de Chambi, Victor e Julia, eram 14 mil placas. A pesquisa rendeu uma exposição de 150 fotos no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), em 1979, que viajou pelo interior dos EUA e chegou a Londres, passando pelo Canadá. Ranney, formado em Yale e também fotógrafo, descobriu a arte de Chambi quando o peruano já era um veterano profissional de 73 anos, mas ainda desconhecido fora de seu país. O americano, estudioso das culturas andinas antigas, viu nesse material um valioso guia para analisar os costumes dos descendentes dos incas e uma oportunidade de mostrar ao mundo a qualidade excepcional do trabalho do fotógrafo peruano, transformando em negativos mais de 5 mil placas de vidro de seu estúdio.
As fotos de Ranney, hoje com 70 anos, não disfarçam o legado que recebeu de Chambi em sua formação como fotógrafo. Sobre ele, o curador Peter C. Burnell já escreveu que o americano consegue captar a essência das edificações pré-colombianas, sendo capaz de traduzir o olhar arquitetônico que levou as comunidades indígenas a emular as paisagens andinas em seus monumentos. O autorretrato de Chambi em Machu Picchu (de 1932, ao lado) mostra que seu olhar parece ter herdado dos ancestrais essa capacidade de mimetizar a natureza, pois ele mesmo surge como um totem no exato local escolhido pelos turistas como o belvedere das ruínas do antigo império inca, como observa seu neto Teo. Chambi foi pioneiro em fazer cartões-postais de Machu Picchu, a cidade perdida dos incas, descoberta em 1911 (os exploradores, até essa data, passavam por ela sem dar atenção ao patrimônio da humanidade).
Antes de voltar sua atenção para sítios arqueológicos, Chambi vivia de seus retratos da burguesia local de Cusco. É possível identificar dois olhares distintos nas fotos das cerimônias sociais da classe dominante e nas festas populares dos indígenas, com os quais, naturalmente, Chambi se identificava. Uma de suas imagens icônicas é a das damas da sociedade cusquenhas que emergem entre arbustos como botões de rosa (veja foto acima, de 1931). Nela, as senhoritas são retratadas numa composição teatral, francamente artificial e um tanto ‘camp’. Basta comparar essa imagem com Reunião de Carnaval em Cusco (1930) – luz natural sobre rostos de populares embriagados – para atestar que a simpatia de Chambi estava, obviamente, com os despossuídos.
“Ele foi, de fato, o primeiro a retratar o próprio povo indígena, escravizado até os anos 1920, o que o fez se integrar ao movimento indigenista e colocar as imagens de índios na vitrine de seu estúdio em Cusco”, conta o neto Teo Chambi, revelando que pretende organizar uma exposição em Buenos Aires para aproximar sua visão antropológica de Pierre Verger. O fotógrafo francês, que adotou o Brasil, conheceu Chambi em seu estúdio da Calle Marqués, 69, endereço também frequentado pela elite de Cusco, que contratava o fotógrafo para documentar batizados e festas de casamento. “Nunca fizeram uma exposição comparativa e acho que também valeria a pena mencionar August Sander, embora considere que cada um tem seu mundo, a despeito das muitas afinidades.”
Presente em coleções institucionais importantes como as do MoMA de Nova York e particulares, como as dos fotógrafos Mario Testigo e Sebastião Salgado, as imagens de Martín Chambi, além do lado documental e antropológico, destacam-se pelo alto nível técnico. O escritor peruano Mario Vargas Llosa lembra a esse respeito que o mundo de Chambi “é sempre belo”. O prêmio Nobel de Literatura acrescenta: “É um mundo no qual as formas de desamparo, discriminação e vassalagem foram humanizadas e dignificadas pela limpeza da visão e elegância do tratamento”.
Essa visão, diz o neto do fotógrafo, tem a ver com o senso de honra de um descendente dos incas que, católico, fez do registro da imagem uma profissão de fé. “Isso explica sua fixação nos templos e o fato de ter entre suas primeiras fotos as das procissões de Cusco.”
Mestre andino
Exposição traz 25 fotos inéditas do peruano Martín Chambi, pioneiro que registrou a vida dos índios
23 de agosto de 2012
ANTONIO GONÇALVES FILHO – O Estado de S.Paulo
Ao ser consagrado como o fotógrafo peruano que registrou as melhores imagens de Machu Picchu e a vida dos índios descendentes das culturas andinas pré-colombianas, Martín Chambi (1891-1973) foi associado aos grandes nomes da fotografia de sua época – liderando a lista de afinidades o alemão August Sander (1876-1964), cujos retratos de pessoas socialmente deslocadas revelam um olhar terno sobre os discriminados. Chambi, aliás, tinha um histórico bem parecido com o de Sander. O peruano descobriu a fotografia aos 14 anos, quando trabalhava numa mina de ouro de Carabaya, explorada pelos ingleses. O alemão, filho de carpinteiro, também viu uma câmera pela primeira vez nas mãos de um fotógrafo que trabalhava para a companhia de mineração da qual era empregado em Herdorf, sua cidade natal.
Chambi ganha, a partir de sábado, sua terceira exposição em São Paulo (as outras duas foram na Pinacoteca do Estado, em 2003 e 2006). Desta vez é uma mostra com 25 imagens (24 delas inéditas) selecionadas pelo neto do fotógrafo, Teo Allain Chambi, especialmente para a Galeria Fass.
São fotografias desestabilizadoras, como as de Sander, não tanto pelos tipos incomuns – que tornaram o alemão alvo fácil dos nazistas -, mas principalmente pela coragem de lançar um olhar antropológico sobre o Peru que seus contemporâneos não tinham. Tanto é verdade que a fama de Chambi se deu graças à curiosidade que despertava nos estrangeiros seu estúdio em Cusco. Enquanto os colegas preferiam ostentar na vitrine a alta burguesia peruana, Chambi escancarava a miséria das deserdadas populações indígenas andinas. Mestre da fotografia documental, Chambi é também uma referência do uso da luz natural em composições de rara beleza e sofisticada construção.
23 de agosto de 2012
ANTONIO GONÇALVES FILHO – O Estado de S.Paulo
Ao ser consagrado como o fotógrafo peruano que registrou as melhores imagens de Machu Picchu e a vida dos índios descendentes das culturas andinas pré-colombianas, Martín Chambi (1891-1973) foi associado aos grandes nomes da fotografia de sua época – liderando a lista de afinidades o alemão August Sander (1876-1964), cujos retratos de pessoas socialmente deslocadas revelam um olhar terno sobre os discriminados. Chambi, aliás, tinha um histórico bem parecido com o de Sander. O peruano descobriu a fotografia aos 14 anos, quando trabalhava numa mina de ouro de Carabaya, explorada pelos ingleses. O alemão, filho de carpinteiro, também viu uma câmera pela primeira vez nas mãos de um fotógrafo que trabalhava para a companhia de mineração da qual era empregado em Herdorf, sua cidade natal.
Chambi ganha, a partir de sábado, sua terceira exposição em São Paulo (as outras duas foram na Pinacoteca do Estado, em 2003 e 2006). Desta vez é uma mostra com 25 imagens (24 delas inéditas) selecionadas pelo neto do fotógrafo, Teo Allain Chambi, especialmente para a Galeria Fass.
São fotografias desestabilizadoras, como as de Sander, não tanto pelos tipos incomuns – que tornaram o alemão alvo fácil dos nazistas -, mas principalmente pela coragem de lançar um olhar antropológico sobre o Peru que seus contemporâneos não tinham. Tanto é verdade que a fama de Chambi se deu graças à curiosidade que despertava nos estrangeiros seu estúdio em Cusco. Enquanto os colegas preferiam ostentar na vitrine a alta burguesia peruana, Chambi escancarava a miséria das deserdadas populações indígenas andinas. Mestre da fotografia documental, Chambi é também uma referência do uso da luz natural em composições de rara beleza e sofisticada construção.
Recompensa
Despedaçada na vertente duma súplica
fiquei intacta. Silente. Absoluta.
Nos meus passos mais certos os vestígios.
Nos meus olhos mais límpidos as águas.
No meu corpo mais nitidez de lírio.
Recompensa bebida na fonte dum martírio.
Natália Correia
fiquei intacta. Silente. Absoluta.
Nos meus passos mais certos os vestígios.
Nos meus olhos mais límpidos as águas.
No meu corpo mais nitidez de lírio.
Recompensa bebida na fonte dum martírio.
Natália Correia
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