Fotógrafo fixou a vida tanto da elite de seu país como dos despossuídos, dignificando os últimos, segundo Vargas Llosa
23 de agosto de 2012
ANTONIO GONÇALVES FILHO – O Estado de S.Paulo
A sintaxe visual aparentemente simples do peruano Martín Chambi encerra um dos grandes mistérios da fotografia. Quais seriam, afinal, as referências culturais desse homem que só cursou a escola primária, filho de mineiro e primeiro fotógrafo indígena latino-americano? Sejam nas cenas da vida cotidiana, nas paisagens ou nos retratos que integram a exposição Chambi Inédito, a partir de sábado, na Galeria Fass, é possível identificar desde uma fixação no autorretrato como forma de autoconhecimento – à maneira de Rembrandt – até uma luz oblíqua que ilumina apenas fragmentos do corpo, como na pintura de Caravaggio, além de uma composição rigorosamente estudada, que fez com que os críticos o associassem ao pictorialismo.
Teo Allain Chambi, neto do fotógrafo e diretor da fundação que leva o seu nome, confirma a suspeita de que ele talvez tivesse visto algumas reproduções das telas de Rembrandt no estúdio de seu professor de fotografia, Max T. Vargas. “Numa entrevista a um jornal de Lima, em 1927, meu avô disse que sua inspiração era um tal de Rembranat (sic), que tinha visto na casa de seu mestre”, conta Teo, também fotógrafo e um dedicado pesquisador da obra do avô, que deixou mais de 30 mil placas de vidro, segundo seus cálculos.
Na primeira catalogação, feita pelo antropólogo norte-americano Edward Ranney com ajuda dos filhos de Chambi, Victor e Julia, eram 14 mil placas. A pesquisa rendeu uma exposição de 150 fotos no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), em 1979, que viajou pelo interior dos EUA e chegou a Londres, passando pelo Canadá. Ranney, formado em Yale e também fotógrafo, descobriu a arte de Chambi quando o peruano já era um veterano profissional de 73 anos, mas ainda desconhecido fora de seu país. O americano, estudioso das culturas andinas antigas, viu nesse material um valioso guia para analisar os costumes dos descendentes dos incas e uma oportunidade de mostrar ao mundo a qualidade excepcional do trabalho do fotógrafo peruano, transformando em negativos mais de 5 mil placas de vidro de seu estúdio.
As fotos de Ranney, hoje com 70 anos, não disfarçam o legado que recebeu de Chambi em sua formação como fotógrafo. Sobre ele, o curador Peter C. Burnell já escreveu que o americano consegue captar a essência das edificações pré-colombianas, sendo capaz de traduzir o olhar arquitetônico que levou as comunidades indígenas a emular as paisagens andinas em seus monumentos. O autorretrato de Chambi em Machu Picchu (de 1932, ao lado) mostra que seu olhar parece ter herdado dos ancestrais essa capacidade de mimetizar a natureza, pois ele mesmo surge como um totem no exato local escolhido pelos turistas como o belvedere das ruínas do antigo império inca, como observa seu neto Teo. Chambi foi pioneiro em fazer cartões-postais de Machu Picchu, a cidade perdida dos incas, descoberta em 1911 (os exploradores, até essa data, passavam por ela sem dar atenção ao patrimônio da humanidade).
Antes de voltar sua atenção para sítios arqueológicos, Chambi vivia de seus retratos da burguesia local de Cusco. É possível identificar dois olhares distintos nas fotos das cerimônias sociais da classe dominante e nas festas populares dos indígenas, com os quais, naturalmente, Chambi se identificava. Uma de suas imagens icônicas é a das damas da sociedade cusquenhas que emergem entre arbustos como botões de rosa (veja foto acima, de 1931). Nela, as senhoritas são retratadas numa composição teatral, francamente artificial e um tanto ‘camp’. Basta comparar essa imagem com Reunião de Carnaval em Cusco (1930) – luz natural sobre rostos de populares embriagados – para atestar que a simpatia de Chambi estava, obviamente, com os despossuídos.
“Ele foi, de fato, o primeiro a retratar o próprio povo indígena, escravizado até os anos 1920, o que o fez se integrar ao movimento indigenista e colocar as imagens de índios na vitrine de seu estúdio em Cusco”, conta o neto Teo Chambi, revelando que pretende organizar uma exposição em Buenos Aires para aproximar sua visão antropológica de Pierre Verger. O fotógrafo francês, que adotou o Brasil, conheceu Chambi em seu estúdio da Calle Marqués, 69, endereço também frequentado pela elite de Cusco, que contratava o fotógrafo para documentar batizados e festas de casamento. “Nunca fizeram uma exposição comparativa e acho que também valeria a pena mencionar August Sander, embora considere que cada um tem seu mundo, a despeito das muitas afinidades.”
Presente em coleções institucionais importantes como as do MoMA de Nova York e particulares, como as dos fotógrafos Mario Testigo e Sebastião Salgado, as imagens de Martín Chambi, além do lado documental e antropológico, destacam-se pelo alto nível técnico. O escritor peruano Mario Vargas Llosa lembra a esse respeito que o mundo de Chambi “é sempre belo”. O prêmio Nobel de Literatura acrescenta: “É um mundo no qual as formas de desamparo, discriminação e vassalagem foram humanizadas e dignificadas pela limpeza da visão e elegância do tratamento”.
Essa visão, diz o neto do fotógrafo, tem a ver com o senso de honra de um descendente dos incas que, católico, fez do registro da imagem uma profissão de fé. “Isso explica sua fixação nos templos e o fato de ter entre suas primeiras fotos as das procissões de Cusco.”
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