Revista de Antropologia
Print version ISSN 0034-7701
Rev. Antropol. vol.42 n.1-2 São Paulo 1999
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-77011999000100002
Entrevista: Claude Lévi-Strauss, aos 90
Beatriz Perrone Moisés
Professora do Departamento de Antropologia – USP
Esta entrevista foi realizada a 10 de novembro de 1998. A
rapidez e a gentileza com que Lévi-Strauss respondeu à consulta feita pelo
Departamento de Antropologia quanto à possibilidade de realizá-la, confirmaram
informações de várias pessoas que já o conheciam pessoalmente: de fato, é muito
disposto e receptivo. Recebeu-me em seu escritório no Laboratório de
Antropologia Social, onde continua indo, religiosamente, duas vezes por semana.
Também vários entrevistadores haviam mencionado a extrema
cortesia de seus gestos e palavras, e o bom humor, que às vezes irrompe,
inesperado, no riso discreto (como quando eu lhe disse que tínhamos a honra de
considerá-lo como um "herói civilizador"...). Também já tinha sido
comentada a precisão das palavras, as respostas exatas, claras, bem
construídas. No mês em que completaria 90 anos, Claude Lévi-Strauss mantinha
intacta a limpidez do raciocínio, sendo inclusive capaz de retomar frases no
mesmo ponto em que as deixara, depois de inserir comentários, observações ou
precisões. Fala com carinho da juventude, anima-se com a lembrança das
expedições, mas reluta em falar do presente. As palavras em itálico, em suas
respostas, são as que ele disse em português.
Beatriz: No início do "Prólogo" a Saudades do
Brasil o senhor se refere a uma memória olfativa das expedições pelo interior.
De que outros odores o senhor se lembra?
Lévi-Strauss: "Como se sabe, na época em que fui para o
Brasil [1935], viajávamos de navio, não havia aviões, e os navios eram também
cargueiros, e faziam muitas escalas [o navio em que veio Lévi-Strauss partiu de
Marselha e fez escala em Barcelona, Cádiz, Argel, Casablanca e Dakar antes de
aportar em Santos]. Nunca me esquecerei que, ao chegar — estávamos em alto mar
havia dezenove dias, acho — e a primeira percepção que tivemos do Novo Mundo —
ainda não se podia ver a costa — foi um cheiro. Um cheiro difícil de descrever,
porque as associações são fáceis demais: cheiro de tabaco, cheiro de pimenta...
enfim, tudo isso está ligado ao Novo Mundo, não sei se é exatamente isso. Mas é
sem dúvida uma das dimensões da natureza brasileira, que não é apenas visual,
ou tátil, é também olfativa".
Beatriz: E quais seriam esses "odores do Brasil"?
Lévis-Strauss: "Há muitos outros odores, que emergem ao
acaso. Lembro-me, por exemplo, que depois dos Nambikwara, estávamos indo na
direção do Madeira, e ainda não era a floresta amazônica, era mais o campo, uma
espécie de floresta seca, e de repente, montado no cavalo, vi no solo um campo
de abacaxis selvagens. Bastava inclinar-se bem baixo, sem desmontar, para
arrancar os frutos e comê-los. É uma das sensações gustativas e olfativas que
ficaram porque não era como o abacaxi que conhecemos, era um abacaxi com um
cheiro de framboesa absolutamente extraordinário. Há muitos e muitos outros
cheiros, mencionei esse apenas como um exemplo... há ainda o cheiro do fumo,
cheiro de fumo de rolo em toda parte. Aliás, era o que eu fumava, em folhas de
milho, que davam ao tabaco um sabor e um cheiro muito muito particulares, que
também ficou. Há também a pinga..."
Beatriz: O senhor gostava de pinga?
Lévi-Strauss: "Ah, sim, gostava muito! E me lembro
também, da fabricação, uma vez por semana, da rapadura, nas fazendas do
interior, para o consumo dos peões, de seus filhos e de suas famílias, isso
também tinha um cheiro e um gosto muito especiais".
Beatriz: Durante as expedições, o senhor comia como os
brasileiros, como a população regional?
Lévi-Strauss: "Na verdade, não havia população
regional... enfim, havia, durante algum tempo, e depois, mais ninguém. Tínhamos
feito grandes provisões: arroz e feijão, claro, e algo que chamavam de
bolachas, que também constituem uma lembrança bem clara... ficavam duras como
pedra… E também caçávamos..."
Beatriz: O senhor era bom caçador?
Lévi-Strauss:"Tenho vergonha de dizer, porque
atualmente sou um opositor radical da caça, mas não era um mau caçador... e, o
que é ainda mais lamentável, eu gostava disso".
Beatriz: No ano anterior a essas expedições, o senhor deu
aulas na então recém-criada Universidade de São Paulo, integrando a segunda
leva de professores estrangeiros. O que significam hoje para o senhor os laços
com a Universidade de São Paulo?
Lévi-Strauss: "Sabe, é difícil dizer, porque
sentimentos de tipos diferentes se mesclam. Era o tempo de minha juventude e,
naturalmente, as pessoas são muito apegadas a seus anos de juventude. Para mim,
o Brasil, São Paulo são completamente indissociáveis de meus anos de juventude,
e eu já não saberia separar as coisas.
Mas, enfim, eu diria que para jovens professores, que eram
praticamente iniciantes na carreira universitária, era antes de mais nada uma
oportunidade extraordinária e uma experiência única, porque além de sermos
novos na carreira, tínhamos viajado pouquíssimo, por causa dos exames,
concursos e coisas desse tipo. De modo que, através de São Paulo, através do
Brasil, era um pouco o mundo inteiro que se revelava, ou pelo menos uma face
diferente do mundo. Assim, tudo isso representa um conjunto tão rico, tão
farto, que eu não saberia o que destacar..."
Beatriz: A idéia de viajar para tão longe era, em si,
atraente?
Lévi-Strauss: "Eu tinha vontade de ver o mundo, de ir
para bem longe. Já na infância e na adolescência, eu montava várias pequenas
expedições no campo francês... eu queria aventura, onde quer que a
encontrasse... naturalmente, quanto mais longe eu fosse, melhor..."
Beatriz: Apesar da famosa declaração de Tristes trópicos
["Odeio as viagens e os exploradores."], o senhor gostava, então, de
viajar?
Lévi-Strauss: "Ah, sim! Naquela época eu gostava de
viajar. É preciso lembrar que Tristes trópicos foi escrito quinze anos depois
de minha volta do Brasil, e eu não pensava nas viagens daquela época, mas nas
viagens que poderia fazer no momento em que escrevia".
Beatriz: O fato de o Brasil ser, desde o século XVI, uma
destinação, digamos, privilegiada pelos franceses, fazia alguma diferença?
Lévi-Strauss: "De certo modo, senti uma espécie de
sensação de segurança, sabendo... É claro que eu não sabia de nada disso muito
antes de ir para o Brasil, aprendi tudo isso nos meses que precederam minha
partida, já que os nomes de Thevet, Léry, evidentemente, não constavam do
programa de licenciatura em Filosofia. Assim, foi depois... Mas, eu dizia, uma
sensação de segurança, por saber que meus passos seguiam os passos de grandes
ancestrais. E a sensação é duradoura, porque há uns trinta anos, minha mulher e
eu compramos uma casa no campo e depois de a comprarmos, descobrimos que se
encontra a uns poucos quilômetros da casa onde nasceu Jean de Léry."
Beatriz: Thevet e Léry, o senhor dizia, não constavam do
programa. Mas Montaigne sim…
Lévi-Strauss: "Ah, sim! Mas não precisava estar no
programa para ser lido [risos]. Ainda hoje é assim… continua no programa."
Beatriz: O Brasil era, então, de certo modo, mais próximo do
que outras regiões…
Lévi-Strauss:"Sim, muito mais, certamente… além do
mais, com a quantidade de palavras de origem tupi que passaram para o
francês…"
Beatriz: Os Tupi, justamente, forneceram à Europa os
elementos básicos para a construção do Selvagem. Bom ou mau, é o ameríndio que,
desde então, figura como o selvagem: o que explicaria o fato de serem os
ameríndios os Outros por excelência do pensamento europeu?
Lévi-Strauss: "Há uma resposta simples, simplista, até,
afinal, eles ocupavam metade do mundo, e não algumas ilhotas dispersas. Uma
presença maciça. E, além disso, os primeiros autores, não apenas franceses,
como os mencionados, mas também ingleses, alemães e outros, que se interessaram
pelo exotismo, começaram pela América, porque era a América que acabava de ser
descoberta, no final do século XV, e que dominaria todo o pensamento do
Renascimento. Trata-se de uma série de acasos objetivos, que fizeram com que os
ameríndios fossem, para o Ocidente, o Outro por excelência".
Beatriz: Nenhuma outra razão explicaria sua permanência
nesse papel, até hoje?
Lévi-Strauss: "Parece-me que há dois casos no mundo, no
século XX, em que modos de vida tradicionais se mantiveram por mais tempo: a
América do Sul e Nova Guiné, as montanhas da Nova Guiné, que foram descobertas
em 1930-35, ao passo que o contato com a América se manteve constante desde o
século XVI. O contato com os ameríndios nunca foi interrompido, de modo que é
natural que ocupem, no pensamento do Ocidente, um lugar privilegiado."
Beatriz: Razões históricas, portanto, ou "acasos
objetivos", como o senhor disse há pouco… os americanistas não teriam
contribuído para a permanência dessa imagem, no modo como apresentam as
culturas ameríndias?
Lévi-Strauss: "Bem, em parte, sim, mas apenas se
generalizarmos… de fato, não se pode dizer o mesmo dos oceanistas ou dos
especialistas em Nova Guiné, portanto, há aí algo de específico…"
Beatriz: O senhor já disse, em várias entrevistas, que optou
pela etnologia como reação contra a escola sociológica francesa, contra
Durkheim, especificamente. Gostaria de pedir-lhe que falasse, mais uma vez,
dessa relação…
Lévi-Strauss: "Quando eu era estudante, no início de
minha carreira, insurgi-me contra a escola... enfim, contra Durkheim, porque na
mesma época descobria a etnologia anglo-americana e, é claro, eu era
especialmente sensível à diferença entre o teórico e pessoas que falavam de
coisas que tinham ido ver em campo. Como eu mesmo tinha um grande gosto pela
aventura, sentia-me mais próximo deles. Mas creio que, posteriormente,
compreendi bem melhor e retornei, em grande parte, à tradição durkheimiana.
Eu nunca fui aluno de Mauss, já que nunca tinha feito etnologia
antes de partir para o Brasil, mas de qualquer modo, antes de partir, fui ver
Mauss e também fui ver Lévy-Bruhl. Eles me deram conselhos, quando eu retornava
à França, ia vê-los. Não houve, portanto, uma ruptura... Foi mais, digamos, uma
passagem inconstante e, posteriormente, um retorno muito profundo ao pensamento
durkheimiano e ao de Mauss".
Beatriz: Mauss teve uma influência especial?
Lévi-Strauss: "Pessoalmente, conheci pouco Mauss. Devo
lhe ter feito umas... três visitas, e não foram longas. Foi muito antes, pela
obra, que eu fui cativado. Porque no pensamento de Durkheim havia algo de
fulgurante, era uma bela construção, monumental... Mauss… era uma noite toda
atravessada por clarões... E houve um outro que também me influenciou muito,
mais tarde: [Marcel] Granet, que considero como da mesma grandeza que Mauss e
Durkheim ou talvez até, em certos aspectos, ainda maior".
Beatriz: Os autores anglo-americanos que o senhor mencionou
há pouco….
Lévi-Strauss: "Foram Lowie e Firth. O primeiro livro de
teoria etnológica que li foi Primitive Society, de Lowie. A primeira monografia
foi We, the Tikopia. Por acaso".
Beatriz: E tudo isso o levou à etnologia…
Lévi-Strauss: "Acho que já contei isso algumas vezes.
Eu era professor de Filosofia num liceu do interior, e não podia conceber
passar a vida toda dando um curso de Filosofia, talvez aperfeiçoado ano após
ano, mas que de qualquer modo seria sempre o mesmo. Naquela época, a Etnologia
estava se constituindo como disciplina na França — o Instituto de Etnologia foi
fundado em 1925, creio, e o Museu do Homem, para a Exposição Universal de...
1937, acho — e o recrutamento era feito em grande parte entre os jovens
filósofos. O exemplo mais notável foi o de [Jacques] Soustelle, que era mais
novo do que eu e que, desde muito jovem, tinha certeza absoluta de que se
tornaria mexicanista e que, logo depois de concluída a licenciatura, voltou-se
para o Museu do Homem e para a Etnologia. De modo que era uma via de saída...
escolhi-a por isso. E também porque tinha vontade de ver o mundo".
Beatriz: Ver de perto, para ver de longe…O olhar distanciado
que, segundo o senhor, caracteriza o antropólogo, é algo que se aprende, que se
constrói? É vocação ou treinamento?
Lévi-Strauss:"A expressão é de Hami, que era um grande
autor dramático japonês. Ele dizia que, para ser um bom ator, era preciso olhar
para si mesmo, o tempo todo, com os olhos afastados do espectador. Acho que o
olhar distanciado pode ser aprendido, mas acho também que é algo que se pode
possuir desde o nascimento, uma espécie de característica da personalidade de
cada um. No meu caso, creio que se trata da segunda hipótese".
Beatriz: Se esse olhar é indispensável para fazer
antropologia, é melhor que seja uma vocação?
Lévi-Strauss: "Acho que há muitos modos de ser
antropólogo, e de tornar-se antropólogo... e há muitas moradas na casa do
Senhor... A vocação é um dos modos, há provavelmente outros".
Beatriz: Falemos então sobre os seus modos de fazer
antropologia ou, mais precisamente, análises de mitos. O senhor mencionou
algumas vezes que trabalhava com fichas e, ao longo da elaboração das
Mitológicas, as espalhava às vezes sobre a mesa, onde elas de certo modo
assumiam configurações que lhe revelavam relações. Como são essas "fichas
de mitos"? Posso ver algumas?
Lévi-Strauss: "Eu não trabalhava exatamente com fichas
de mitos, esse é meu modo de trabalhar em geral. Faço muitas fichas. Meus
ficheiros estão em casa, não tenho nenhuma ficha aqui… Mas não há nada de
especial em minhas fichas. Algumas contêm referências, outras uma ou várias
frases que li num livro e que chamaram minha atenção, ou uma idéia que tive e
transcrevi numa ficha. Podem ser acerca de mitos, ou de livros, podem ser
acerca de um objeto que vi, ou de uma idéia que me ocorreu. Em relação aos
mitos, podem conter versões completas, às vezes há páginas dobradas no formato
de uma ficha, colocadas nos ficheiros, às vezes são resumos... Nada de organizado.
Quando me falta inspiração, quando estou sem idéias, pego um
monte de fichas — eu deveria colocar isso no imperfeito, porque se refere ao
tempo em que eu trabalhava — e, só de espalhá-las, misturá-las, agrupá-las ao
acaso, às vezes me vem uma idéia".
Beatriz: Não se pode então falar num método de fazer fichas,
ou de utilizá-las…
Lévi-Strauss: "Não, nenhum. Ao contrário, eu diria que
as fichas, para mim, são exatamente o oposto de um método, são o meio de ter
idéias imprevistas".
Beatriz: Mas a redação das Mitológicas terá exigido muita
disciplina, sem dúvida.
Lévi-Strauss: "Durante uns dez anos, não pensei noutra
coisa, das seis da manhã às seis da tarde... Sempre tive em mente o exemplo de
Saussure, que dedicou parte de sua vida a mitos, os Nibelungen, e que nunca os
publicou, nunca conseguiu pô-los em ordem, e dizia a mim mesmo que, se
continuasse assim, repetiria essa desventura, e precisava decidir que teria um
fim. Na verdade, o quarto volume, O homem nu, contém a matéria de três
livros... Mas eu me proibi de escrevê-los. Disse a mim mesmo: é esse, e será o
último. Finalmente, não foi o último, já que depois vieram A via das máscaras,
A oleira ciumenta e História de Lince... Mas, de qualquer modo, eu queria fazer
algo que formasse um todo".
Beatriz: História de Lince, o último, pode ser considerado
como uma espécie de balanço de todo o trajeto das Mitológicas?
Lévi-Strauss: "Para mim, pessoalmente, há o que eu
chamo de ‘grandes mitológicas’, os quatro volumes, e os três outros, que
constituem as ‘pequenas mitológicas’... estas não são, de modo algum, um
balanço em relação às outras. São simplesmente questões que me pareceram
interessantes e que não tinham lugar... eu tinha feito alusão a elas diversas
vezes... mas elas não se encaixavam exatamente no desenrolar da argumentação.
Assim, eu dizia a mim mesmo: um dia, talvez, eu retome tudo isso."
Beatriz: Qual é seu ritmo de trabalho, atualmente?
Lévi-Strauss: "Já não trabalho muito... não haverá mais
nenhum livro".
Beatriz: Pena!
Lévi-Strauss: "Não, não é nenhuma pena, porque eles já
não seriam bons... supondo que algum dia o tenham sido… Não…escrevo coisas
pequenas, artigos, prefácios..."
Beatriz: Então o senhor continua escrevendo...
Lévi-Strauss: "Sim, escrevo e leio… muito menos…"
Beatriz: O que o senhor lê?
Lévi-Strauss: "Ah, leio coisas variadas, aquilo que me
mandam, principalmente, os livros para os quais devo escrever um prefácio. A
Academia Francesa dá prêmios, é preciso ler os livros... de modo que é em
parte, digamos, literatura, e em parte profissional".
Beatriz: O senhor contou, certa vez, que lia regularmente
revistas científicas, acompanhando o que se faz nas ciências exatas e
biológicas — que, aliás, forneceram imagens muito poderosas à sua obra. O
senhor continua lendo essas revistas?
Lévi-Strauss: "Bem, nunca li tanto assim… sempre me
inteirei dessas questões através de revistas de vulgarização científica, para
grande público… Enfim, continuo lendo regularmente a Scientific American, a
Recherche... tento ter uma idéia muito vaga e muito ingênua do que está
acontecendo".
Beatriz: As pesquisas arqueológicas e paleontológicas têm
mostrado uma história do continente americano cada vez mais complexa. Certa
vez, comparando seu trabalho ao de Dumézil, o senhor disse que, de certo modo
ao contrário dele, que tratava de demonstrar uma história comum que não era
dada, o senhor partia de uma unidade da América que lhe era dada pela história…
Lévi-Strauss: "Sabemos que houve várias levas de
povoamento na América. A história americana é provavelmente muito mais antiga
do que se dizia até recentemente — mais antiga, em todo caso, do que se afirma
ainda nos Estados Unidos —, e não se deve imaginar várias levas de povoamento
com gente que chegou, instalou-se e permaneceu no mesmo lugar. Creio que as
várias levas de povoamento são o início de uma história extremamente
complicada, e que ficaríamos totalmente incapacitados de compreender as
culturas americanas se não supuséssemos que, durante milênios, as pessoas
circularam, deslocaram-se dentro do continente, e lançaram a base de ... bem,
uma unidade, seria exagero... enfim, de uma homogeneidade relativa de todas as
culturas ameríndias. É claro que elas diferiram e divergiram enormemente, mas
todas elas têm algo em comum. E o fato de terem algo em comum seria totalmente
incompreensível se não supuséssemos que os povos circularam, não apenas do
norte para o sul, mas também do sul para o norte, que houve uma grande
quantidade de deslocamentos. Enfim, temos tendência a achatar a história
americana, e a não conceber que durante um milênio, para falar de apenas um
milênio, houve uma enormidade de acontecimentos dos quais não temos a menor
idéia, infelizmente..."
Beatriz: Em seu discurso de recepção à Academia Francesa, em
1974, o senhor declarou que a cultura francesa estava abalada, talvez até
condenada. O senhor diria o mesmo hoje?
Lévi-Strauss: "Sim, creio que a cultura francesa está
muito ameaçada... continua muito ameaçada…"
Beatriz: A ponto de correr o risco de desaparecer?
Lévi-Strauss: "As culturas não desaparecem nunca, elas
se misturam com outras, e dão origem a uma outra cultura. Mas... bem... aquela
que me formou e que me foi ensinada, na escola e em casa, é uma cultura à qual
sou muito apegado, e não posso deixar de me entristecer ao vê-la se perder e se
transformar em outra coisa... o que certamente acontecerá... mas digo a mim
mesmo que, felizmente, não estarei mais aqui..."
Beatriz: Seria possível definir os princípios dessa cultura
francesa?
Lévi-Strauss: "Não, não creio que se possa aplicar a
análise estrutural nessa escala. Há variáveis demais. Por isso pessoas como
Foucault nunca foram estruturalistas... eles mesmos o disseram, não é portanto
nenhuma crítica..."
Beatriz: E as culturas ameríndias, estão condenadas?
Lévi-Strauss: "Hesito muito em formular uma opinião,
porque, afinal, faz... sessenta anos (é isso?) que vi os ameríndios pela última
vez. Quando se é etnólogo, é preciso se abster de fazer afirmações acerca de
sociedades que não se viu viver, que não se observou... É evidente que elas estão
ameaçadas, que se transformam... mas até que ponto conseguirão salvar algo de
original e fazer com que isso se torne um elemento importante daquilo que será
sua cultura no futuro... para ter uma opinião quanto a isso seria preciso ir a
campo. Eduardo Viveiros de Castro, Manuela Carneiro da Cunha …, vocês, podem
falar disso".
Beatriz: Já em Raça e História (1961) o senhor alertava para
a necessidade de preservar a diversidade das culturas humanas e para a
importância do intercâmbio cultural. Posteriormente, demonstrou diversas vezes
o temor de que um "excesso de comunicação" pudesse levar a uma
homogeneização paralisante. Apesar de tudo, não lhe parece que as culturas
humanas têm demonstrado uma grande vitalidade no sentido de criar diferenças?
Lévi-Strauss: "Eu diria que é a única esperança que nos
resta, a de que elas saibam refazer diferenças, o que permitirá aos
antropólogos existir. Creio que isso acontecerá ou, pelo menos, espero que sim.
Este é um período crítico e, sinceramente, espero que não dure. Fissuras
haverão de ser reproduzidas... naturalmente não onde estavam antes, e
certamente não onde poderíamos supor que surgissem. De qualquer modo, creio que
a humanidade permanecerá diversa, essa é sua única chance".
Beatriz: Que mensagem o senhor enviaria aos antropólogos
brasileiros?
Lévi-Strauss: "Sei que já não falo com aqueles que
foram meus alunos, porque eles também estão aposentados [risos], é com os que
foram alunos de meus alunos e, talvez, até alunos dos alunos de meus alunos...
são várias gerações, e sinto-me algo como um trisavô... Mas gostaria de dizer
que após meus primeiros contatos com jovens que tinham um amor ao saber e um
desejo de conhecimento totalmente extraordinários, e que tinham praticamente a
mesma idade que meus colegas e eu, não foi apenas uma relação entre professor e
alunos, mas quase uma relação de camaradagem. E como eles evidentemente sabiam
muito mais acerca do Brasil do que eu, foi também uma espécie de troca. Eles
nos ensinavam o Brasil e nós procurávamos ensinar-lhes o que podíamos, mas eu
jamais poderia supor, na época, o que aconteceria realmente no Brasil na minha
área, isto é, que rapidamente nasceria uma antropologia brasileira. Não digo
que não existisse uma antropologia brasileira, mas era muito antiquada,
tradicional, ainda muito marcada pelo espírito do século XIX, ao passo que a
que estava para nascer mostrou muito rapidamente que estava na ponta da
pesquisa antropológica, e situou-se imediatamente no nível dos países que se
tornaram famosos nessa área — a Inglaterra, os Estados Unidos, .. .a França.
Assim, sinto que tive participação num tipo de evento que certamente não tem
termo de comparação — ou poucos — na história universitária mundial.
Aos jovens antropólogos brasileiros, eu diria — mas não
preciso dizer-lhes isso, seu exemplo o demonstra — que não esqueçam a etnologia
tal como é praticada desde o seu nascimento. Numa época em que, seja na
Inglaterra, nos Estados Unidos ou na França, se percebe um certo desânimo entre
os jovens, que precisam encontrar novos objetos — ou sujeitos, se preferirem
falar nesses termos — porque aqueles que estudavam tradicionalmente não existem
mais, ou se transformam rápido demais, felizmente, no Brasil, a grande
etnologia ainda existe... e desejo que continue existindo por muito
tempo".
*
* *
Depois de encerrada a entrevista, notei ao meu lado algo que
me parecia uma árvore em miniatura, cujas folhas eram pedacinhos de papel com
anotações, colados em "galhos" revirados e perfeitamente simétricos.
Olhei mais de perto, e percebi que o objeto, protegido por uma redoma de vidro
(foto), é a estrutura, em três dimensões, de um grupo de mitos, cuja
representação gráfica se encontra à página 81 de L’origine des manières de
table (Mitológicas III). A própria página, unida à página 80 do livro,
constitui um "fundo" para a "árvore" de mitos, dentro da redoma
(reproduzidas a seguir a partir da 1ª edição, de L'origine des manières de
table, Paris, Plon, 1968). Evidentemente fascinada pelo objeto, perguntei a
Lévi-Strauss se costumava construir assim estruturas míticas. Respondeu-me que
sim, que as construia conforme as percebia nos mitos, com os pedaços de papel,
barbante, tesoura e cola que sempre tinha à mão. Alguns desses objetos,
continuou, "eram como móbiles à la Calder", e ficavam pendurados pelo
laboratório de antropologia. Mas eram muito frágeis, e logo se destruíram.
Finalmente, tinha sobrado apenas aquela. "Mas então o senhor é um
bricoleur também no sentido primeiro do termo [que remete, como se sabe, a
trabalhos manuais]?" Sorrindo, respondeu-me que sim, gostava de usar as
mãos para construir coisas desde a infância…
Paris, 1998
Departamento de Antropologia FFLCH/USP
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