quarta-feira, 22 de maio de 2013

Vermelho e o Negro


Renato Janine Ribeiro

Estou com Stendhal na cabeça. Lembrei o Vermelho e o Negro; Julien Sorel, não sabendo como reconquistar a amada Matilde, segue o conselho de um amigo e começa a cortejar - copiando cartas de amor que o amigo lhe deu - uma conhecida da namorada. São dezenas de cartas, em linguagem tão empolada que, diz Stendhal, a vantagem do discurso enfático é que ninguém presta atenção nos absurdos. Por exemplo, ele escreve Londres em vez de Paris, mistura as datas e nada disso causa problemas. Faz pensar em pessoas que falam de um modo que nem elas, nem ninguém, entende...

Servidões


até cada objecto se encher de luz e ser apanhado
por todos os lados hábeis, e ser ímpar,
ser escolhido,
e lampejando do ar à volta,
na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos juntos
como para escrever cada palavra:
pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja:
um copo de água,
tudo pronto para que a luz estremeça:
o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima
tão súbito e implacável na vida administrativa

Herberto Helder, em Servidões, livro de poemas inéditos.



Sim, no próprio templo do Deleite
É que a Melancolia tem, velada, o seu supremo santuário,
Embora só a veja aquele cuja língua estrênua
Rebente a uva da Alegria contra o céu da boca;
A alma deste provará a tristeza que é o seu poder,
E em meio aos seus troféus nublados ficará suspensa.

John Keats
trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos.

Entre muitos




por Wislawa Szymborska


"Sou quem sou.
Inconcebível acaso
como todos os acasos

Fossem outros
os meus antepassados
e de outro ninho
eu voaria
ou de sob outro tronco
coberta de escamas eu rastejaria.

No guarda-roupa da natureza
há trajes de sobra.
O traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um cai como uma luva
e é usado sem reclamar
até se gastar.

Eu também não tive escolha
mas não me queixo.
Poderia ter sido alguém
muito menos individual.
Alguém do formigueiro, do cardume, zunindo no enxame,
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.

Alguém muito menos feliz,
criado para uso da pele,
para a mesa da festa,
algo que nada debaixo da lente.

Uma árvore presa à terra
da qual se aproxima o fogo.

Uma palha esmagada
pela marcha de inconcebíveis eventos.

Um sujeito com uma negra sina
que para os outros se ilumina.

E se eu despertasse nas pessoas o medo,
ou só aversão,
ou só pena?

Se eu não tivesse nascido
na tribo adequada
e diante de mim se fechassem os caminhos?

A sorte até agora
me tem sido favorável.

Poderia não me ser dada
a lembrança dos bons momentos.

Poderia me ser tirada
a propensão para comparações.

Poderia ser eu mesma – mas sem o espanto,
e isso significaria
alguém totalmente diferente."

Tradução: Regina Przybycien

Crónica da pomba branca


fragmento da Crónica da pomba branca, de António Lobo Antunes:

"(...) Fininha melancolia vem e cobre-me. Não me abandones neste momento que preciso de coisas suaves, dedos na minha testa, uma voz que me garanta ter um lugar no mundo. Não derivado aos livros, pelo menino que sou. Que desamparo às vezes: tenho esperança de escondê-lo bem. Sou tão importante eu, sou um grande autor e acabei de nascer. Uma impressão num dente mas a perspectiva da broca
- Ora cá temos uma cáriezinha
desagrada-me. E os caixotes do lixo cambulhando para a rua. Vivo só. Não me custa. Quer dizer às vezes, à noite, custa, mas faz de conta que não custa. Ando a escrever um livro que não faço a menor ideia quando acabarei: são tão difíceis as palavras e demorei anos a dar conta disso. Ao princípio era canja. Até a gente perceber que há uma diferença entre escrever bem e escrever mal: então começa a angústia. Um pouco mais tarde percebe-se que há uma diferença, ainda maior, entre escrever bem e obra-prima: então a aflição é completa. De forma que aqui ando eu, de caneta na mão, na minha aldeia no centro da cidade em que acabado o jantar mulheres da vida, travestis. Bares de alterne perto, com uma fila de taxis à espera: tudo isso cheira a miséria rasca. Onde pára aquela que morava no alto da cidade? Num degrau à espera? Nasci de uma mulher e há ocasiões em que me esqueço disso. Devia lembrar-me o tempo inteiro. Onde pára o meu pai que, de certeza, se foi embora do cemitério para a companhia dos seus cachimbos, dos seus livros. Dizia
- Bem vês
e fazia um silêncio antes de continuar. Bem vejo o quê, pai? Os pais estão entre nós e a morte. Se calhar um homem só se torna homem depois do pai morrer. Homem no sentido mais profundo do termo, qualquer que tenha sido a nossa relação com ele. Depois do enterro do meu avô o meu pai fechou-se no escritório e pôs Bach tão forte que se devia ouvir na Venezuela. Ficou para ali horas a ensurdecer o mundo. Quem aqui não sentiu esta nossa fininha melancolia? Chamo-me António. Ao encontrar-me de manhã para a barba penso
- Chamo-me António,
um nome tão comum, de pobre. Se fosse rico chamava-me Bernardo ou Lourenço ou Gonçalo. Assim, consolo-me com António. Apesar de tudo parece-me menos feio que Hernâni. O que importa? Chamo-me Eu. E o Eu debruçado para o papel nas redacções em que tenho gasto a vida. (...)"