quarta-feira, 22 de maio de 2013

Crónica da pomba branca


fragmento da Crónica da pomba branca, de António Lobo Antunes:

"(...) Fininha melancolia vem e cobre-me. Não me abandones neste momento que preciso de coisas suaves, dedos na minha testa, uma voz que me garanta ter um lugar no mundo. Não derivado aos livros, pelo menino que sou. Que desamparo às vezes: tenho esperança de escondê-lo bem. Sou tão importante eu, sou um grande autor e acabei de nascer. Uma impressão num dente mas a perspectiva da broca
- Ora cá temos uma cáriezinha
desagrada-me. E os caixotes do lixo cambulhando para a rua. Vivo só. Não me custa. Quer dizer às vezes, à noite, custa, mas faz de conta que não custa. Ando a escrever um livro que não faço a menor ideia quando acabarei: são tão difíceis as palavras e demorei anos a dar conta disso. Ao princípio era canja. Até a gente perceber que há uma diferença entre escrever bem e escrever mal: então começa a angústia. Um pouco mais tarde percebe-se que há uma diferença, ainda maior, entre escrever bem e obra-prima: então a aflição é completa. De forma que aqui ando eu, de caneta na mão, na minha aldeia no centro da cidade em que acabado o jantar mulheres da vida, travestis. Bares de alterne perto, com uma fila de taxis à espera: tudo isso cheira a miséria rasca. Onde pára aquela que morava no alto da cidade? Num degrau à espera? Nasci de uma mulher e há ocasiões em que me esqueço disso. Devia lembrar-me o tempo inteiro. Onde pára o meu pai que, de certeza, se foi embora do cemitério para a companhia dos seus cachimbos, dos seus livros. Dizia
- Bem vês
e fazia um silêncio antes de continuar. Bem vejo o quê, pai? Os pais estão entre nós e a morte. Se calhar um homem só se torna homem depois do pai morrer. Homem no sentido mais profundo do termo, qualquer que tenha sido a nossa relação com ele. Depois do enterro do meu avô o meu pai fechou-se no escritório e pôs Bach tão forte que se devia ouvir na Venezuela. Ficou para ali horas a ensurdecer o mundo. Quem aqui não sentiu esta nossa fininha melancolia? Chamo-me António. Ao encontrar-me de manhã para a barba penso
- Chamo-me António,
um nome tão comum, de pobre. Se fosse rico chamava-me Bernardo ou Lourenço ou Gonçalo. Assim, consolo-me com António. Apesar de tudo parece-me menos feio que Hernâni. O que importa? Chamo-me Eu. E o Eu debruçado para o papel nas redacções em que tenho gasto a vida. (...)"

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