sábado, 2 de março de 2013





O que não significa vai significar um dia destes. Mas significará uma coisa bastante diferente. Pensam que uma escada leva sempre a uma espécie de casa ou terraço, e são magnânimos admitindo alguma variação de formas e propósitos dentro dos termos das casas e terraços que há. Pois estão à vossa espera, senhores, casas e terraços de estranhos sistemas arquitectónicos. Há mesmo a suspeita de tratar-se de uma escada esquisita, uma escada apenas para subir.
Mas dantes havia moral, dizem eles. Havia a moral para subir e ir ao terraço. Depois via-se a paisagem.
E era bonito?
Sim, havia metafísica, política e filosofia para ver.
E para que servia ver isso?
Ora, a gente ficava contente, porque entravam e saíam ideias pela cabeça.
Uma espécie de piquenique mental, não?
A metafísica, a política, a filosofia são matérias nobres.
Sim, senhores, obrigado.
Pois, e se a gente queria a casa, subia a escada e entrava na casa.
Também nas paredes, a filosofia, e etc?
Sim, exactamente.
Olhem: não, obrigado. Vou dizer-lhes: vai ser escada para subir e depois a gente ficará lá em cima experimentando o transe do silêncio. Os senhores não percebem nada de destruições. Temos de aturar todo o aborrecimento de uma velha modernidade: Fernandos Pessoas, surrealismos, a política com metonímias, a filosofia rítmica, as religiosidades heréticas, as pequenas tradições de certas liberdades. Acabou-se.
(O verbo impregnava a terra, a energia impregnava a terra).
Tudo isto é para a grande máquina circulatória, o aparelho digestivo, o sistema respiratório. Coisas do corpo que precisa de transe, êxtase. Essa é a significação. Estamos a trabalhar com instrumentos que abalam tudo. Há uma energia geral comutada à passagem pelo corpo. É uma comutação cultural. E afastem daqui o surrealismo. Afastem a metafísica, a política, as ideiazinhas de merda. Um transe. A palavra é uma provocação destinada a uma espécie de intransigência física. E que é o corpo senão ele mesmo?
Os poetas estão a avançar com uns vagares de galinholas. Porra.

[Herberto Helder]

Uma Coca-cola com Você



é ainda melhor que uma viagem a San Sebastian, Irun,Hendaye, Biarritz, Bayonne
ou que ficar enjoado na Travessera de Gracia em Barcelona
em parte porque nessa camisa laranja você parece um São Sebastião melhor e mais feliz
em parte porque eu gosto tanto de você, em parte porque você gosta tanto de iogurte
em parte por causa das tulipas laranja fluorescente contra a casca branca das árvores
em parte pelo segredo que nos vem ao sorriso perto de gente e de estatuária
é difícil quando estou com você acreditar que existe alguma coisa tão parada
tão solene tão desagradável e definitiva como estatuária quando bem na frente delas
na luz quente de Nova York às quatro da tarde nós estamos indo e vindo
de um lado para o outro como a árvore respirando pelos olhos de seus nós

e a exposição de retratos parece não ter nenhum rosto, só tinta
de repente você se surpreende que alguém tenha se dado ao trabalho de pintá-los
olho
pra você e prefiro de longe olhar para você do que para todos os retratos do mundo
exceto talvez às vezes o Cavaleiro Polonês que de qualquer maneira está no Frick
aonde graças a Deus você nunca foi de modo que eu posso ir junto com você a primeira vez
e isso de você se mover tão bonito mais ou menos dá conta do Futurismo
assim como em casa nunca penso no Nu Descendo a Escada ou
num ensaio em algum desenho de Leonardo ou Michelangelo que costumava me deslumbrar
e o que adianta aos Impressionistas tanta pesquisa
quando eles nunca encontraram a pessoa certa para ficar perto de uma árvore quando o sol baixava
ou por sinal Marino Marini que não escolheu o cavaleiro tão bem
quanto o cavalo acho que eles todos deixaram de ter uma experiência maravilhosa
que eu não vou desperdiçar por isso estou te contando


Frank O'Hara
(tradução de Luiza Franco Monteiro) 




"Literatura precisa ser um coquetel explosivo. Não adianta ter um estilinho redondo ou adensar algumas frases com uma estética nebulosa. É preciso colocar num mesmo livro poder corrosivo, capacidade de descobrimento do mundo vivido, ternura, ironia, humor, aceleração, narrativa, ideias (verdadeiras e falsas) e história. Ao final, o leitor precisa querer tirar a bunda do lugar para se refrescar. O resto é literatice. 
(Juremir Machado Silva)


"A arte de escrever livros ainda não foi inventada. Está porem a ponto de ser inventada. Fragmentos desta espécie são sementes literárias. Pode sem dúvida haver muito grão mouco entre eles:mas contanto que alguns brotem!
Trabalha, medita,medita acima de tudo,condensa teu pensamento, sabes que os belos fragmentos não são nada. A unidade, a unidade tudo ai está. O conjunto, eis o que falta a todos de hoje, tanto nos grandes quanto nos pequenos. Mil passagens bonitas, mas não uma obra.
Cerra o teu estilo, faz um tecido mais leve que a seda e forte como uma cota de malha."

 Friedrich H. 
Novalis.


"A origem é, bem antes, a maneira como o homem em geral, como todo homem, se articula com o já começado do trabalho, da vida e da linguagem. Nessa dobra onde o homem trabalha com toda a ingenuidade um mundo laborado há milênios, vive, no frescor de sua existência única, recente e precária, uma vida que se entranha até as primeiras formações orgânicas, compõem em frases ainda não ditas (mesmo que gerações as tenham repetido) palavras mais velhas que toda a memória.

 Michel Foucault