segunda-feira, 9 de maio de 2011

NADA DE NOVO NO FRONT

 (um trecho)



Estamos no outono. Dos veteranos, já não há muitos. Sou o último dos sete colegas de turma que vieram para cá.



Todos falam de paz e armistício. Todos esperam. Se for outra decepção, eles vão se desmoronar. As esperanças são muito fortes; é impossível destruí-las sem uma reação brutal. Se não houver paz, então haverá revolução.



Tenho catorze dias de licença, porque engoli um pouco de gás. Num pequeno jardim, fico sentado o dia inteiro ao sol. O armistício virá e breve, até eu já acredito agora. Então iremos para casa.



Neste ponto meus pensamentos param e não vão mais adiante. O que me atrai e me arrasta são os sentimentos. É a ânsia de viver, é a nostalgia da terra natal, é o sangue, é a embriaguez da salvação. Mas não são objetivos.



Se tivéssemos voltado em 1916, do nosso sofrimento e da força de nossa experiência poderíamos ter desencadeado uma tempestade. Mas se voltarmos agora estaremos cansados, quebrados, deprimidos, vazios, sem raízes e sem esperanças. Não conseguiremos mais achar o caminho.



E as pessoas não nos compreenderão, pois antes da nossa cresceu uma geração que, sem dúvida, passou estes anos aqui junto a nós, mas que já tinha um lar e uma profissão, e que agora voltará para suas antigas colocações e esquecerá a guerra... e depois de nós crescerá uma geração semelhante à que fomos em outros tempos, que nos será estranha e nos deixará de lado. Seremos inúteis até para nós mesmos. Envelheceremos, alguns se adaptarão, outros simplesmente se resignarão e a maioria ficará desorientada: os anos passarão e, por fim, pereceremos todos.



Mas talvez tudo que penso seja apenas melancolia e desalento que desaparecerão quando estiver de novo sob os choupos e ouvir novamente o murmúrio das suas folhas. É impossível que já não existam a doçura que fazia nosso sangue se agitar, a incerteza, o futuro com suas mil faces, a melodia dos sonhos e dos livros, os sussurros e os pressentimentos das mulheres. Tudo isso não pode ter desaparecido nos bombardeios, no desespero e nos bordéis. Aqui as árvores brilham, alegres e douradas, os frutos das sorveiras têm matizes avermelhados por entre a folhagem; as estradas correm brancas para o horizonte, os rumores de paz fazem as cantinas zumbirem como colmeias.



Levanto-me.



Estou muito tranqüilo. Que venham os meses e os anos, não conseguirão tirar mais nada de mim, não podem me tirar mais nada. Estou tão só e sem esperança que posso enfrentá-los sem medo. A vida, que me arrastou por todos estes anos, eu ainda a tenho nas mãos e nos olhos. Se a venci, não sei. Mas enquanto existir dentro de mim - queira ou não esta força que em mim reside e que se chama eu -, ela procurará seu próprio caminho.



Tombou morto em outubro de 1918, num dia tão tranqüilo em toda a linha de frente que o comunicado se limitou a uma frase: "Nada de novo no front".



Caiu de bruços e ficou estendido, como se estivesse dormindo. Quando alguém o virou, viu-se que ele não devia ter sofrido muito. Tinha no rosto uma expressão tão serena que quase parecia estar satisfeito de ter terminado assim.

Erich Maria Remarque

O MESTRE E A MARGARIDA

Um trecho:



1

Nunca falem com estranhos.



Na hora de um quente pôr do sol primaveril, surgiram dois cidadãos em Patriarchi Prudý. O primeiro, com aproximadamente quarenta anos, trajava um costume cinza de verão, era de estatura baixa, cabelos escuros, rechonchudo, careca, na mão seu respeitável chapéu Fedora. Óculos de tamanho sobrenatural de armação preta de chifre ornavam seu rosto cuidadosamente escanhoado. O segundo era um jovem de ombros largos, arruivado, hirsuto, com um boné xadrez caído na nuca, camisa de caubói, calças brancas amarrotadas e tênis pretos.

O primeiro era nada mais nada menos que Mikhail Aleksándrovitch Berlioz, editor de uma volumosa revista de arte e presidente do conselho administrativo de uma das maiores associações literárias de Moscou, abreviadamente denominada Massolit. Já seu jovem acompanhante era o poeta Ivan Nikoláievitch Ponyriov, que escrevia sob o pseudônimo de Bezdômny.

Assim que entraram na sombra das tílias verdejantes, os escritores se precipitaram para um quiosque multicolorido com a placa "Cerveja e refrescos".

Sim, convém destacar a primeira esquisitice desse terrível entardecer de maio. Não só perto do quiosque, mas também em toda a aleia paralela à rua Málaia Brônnaia, não havia vivalma. Naquela hora, quando não se tinha forças nem para respirar, quando o sol, após incandescer Moscou, mergulhava numa neblina seca em algum lugar de Sadôvoie Koltsô, ninguém viera para a sombra das tílias, ninguém se sentara no banco, a aleia estava vazia.

- Uma água com gás - pediu Berlioz.

- Não tem - respondeu a mulher do quiosque, e sabe-se lá por que se ofendeu.

- Tem cerveja? - quis saber Bezdômny, com a voz rouca.

- Vão trazer mais tarde - respondeu a mulher.

- Então tem o quê? - perguntou Berlioz.

- Refresco de damasco, e só quente - disse a mulher.

- Então vai, pode ser, pode ser!...

O refresco de damasco formou uma espuma densa e amarela, surgiu no ar um cheiro de cabeleireiro. Depois de beberem, os literatos imediatamente começaram a soluçar, pagaram e sentaram-se no banco, de frente para o lago e de costas para a Brônnaia.

Nesse momento, ocorreu a segunda esquisitice, que só tinha a ver com Berlioz. Ele parou de soluçar repentinamente, seu coração bateu e, num rufo, sentiu como se tivesse despencado para algum lugar e depois voltado, mas com uma agulha cega cravada nele. Além disso, Berlioz foi tomado por um medo infundado, mas tão forte, que teve vontade de sair correndo imediatamente de Patriarchi, sem olhar para trás.

Berlioz olhou em volta angustiado, sem entender o que o assustara tanto. Empalideceu, enxugou a testa com um lenço e pensou: "O que está acontecendo comigo? Nunca senti isso... o coração está falhando... estou esgotado... Acho que está na hora de mandar tudo para o inferno e ir para Kislovôdsk..."

Na mesma hora, o ar tórrido condensou-se diante dele e desse ar fez-se um cidadão transparente, de aspecto estranhíssimo. Na pequena cabeça, um boné de jóquei, um paletó xadrez apertado e também vaporoso... Um cidadão de estatura colossal, mas de ombros estreitos, incrivelmente magro e de fisionomia, quero destacar, zombeteira.

A vida de Berlioz transcorria de tal modo que ele não estava acostumado a fenômenos extraordinários. Empalidecendo ainda mais, ele esbugalhou os olhos e pensou, confuso: "Isso não pode ser real!"

Mas infelizmente era real, e através daquilo se via um cidadão alongado e transparente, que balançava diante dele, ora para a esquerda ora para a direita, sem tocar no chão.

Nesse instante, o pavor tomou conta de Berlioz de tal forma que ele fechou os olhos. Quando os abriu, viu que tudo tinha acabado, a miragem evaporara, o xadrez desaparecera e, a propósito, a agulha cega se desprendera de seu coração."


Mikhail Bulgákov