Poema de Lera Auerbach
Estou coreografando
meu próprio descontentamento.
Os dias se acumulam
em vaidade seca e frugal,
complicando manobras
de mãos sempre em movimento,
pêndulo oscilante
do suicídio ao sacrifício,
do êxtase à gratidão
em todos os tons de cinza.
A fuga se acelera:
ainda lembro seu tema principal,
mas seu contra-sujeito me deixa
sem ar.
Esse contraponto é venenoso
em maiores quantidades,
e não tenho um antídoto
para essa música infecciosa.
Minha febre está subindo.
As pontas quentes dos meus dedos tocam
o corpo intocável da fuga —
ela não pode ser totalmente capturada
nas redes de notas e compassos,
ela foge, selvagem,
pelo riso indomesticável
de deuses e demônios, quem quer
que esteja vigiando as portas do som,
as quimeras lamuriantes
do céu e do inferno.
Olho para a chama negra.
Logo ela consumirá meus dias,
já congela meu coração,
e toma tudo o que ainda chamo de “meu”,
transformando em colheita seca
que queima — oh, tão intensamente —
até que já não seja
até que seja só cinzas,
até que retorne ao pó,
vire aquela nota silenciosa
depois do fim, mas logo
antes do aplauso
enquanto as mãos do maestro ainda seguram
as asas de uma frase musical
e a audiência segura a respiração
como que para não perturbar a mágica;
exceto por ninguém estar esperando
por mim do outro lado, não há
nenhum aplauso ou cumprimento, nem bravi,
mas apenas aquele momento de infinita
solidão
quando o som morre.
Tradução de Sofia Mariutti.