segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019


"A poesia é um exercício para condenados. Os poetas transitam pela rua com o rosto e os gestos dos demais transeuntes e só assim sobrevivem; porque se se vestissem com o traje de amianto e fósforo que lhes corresponde, as pessoas fugiriam a seu passo e o pavor reinaria ao seu redor como uma luminosa coroa justiceira. Os poetas entendem esta situação e aceitam a penosa carga deste mimetismo humilhante. Mas resta uma unidade onde esta condição de vida assinalada pelos sete dedos da lucidez, da beleza, da ira, da intemporalidade, do sonho, da morte e do amor, é inocultável. Esta zona a constituem as palavras do poeta, sua visão e seu trato com os demais condenados.

Alvaro Mutis citado por Floriano Martins

in O Hábito do abismo


Não existe o infinito:


Não existe o infinito:
o infinito é a surpresa dos limites.
Alguém constata sua impotência
e logo a prolonga para além da imagem, na ideia,
e nasce o infinito.
O infinito é a dor
da razão que assalta nosso corpo.
Não existe o infinito, mas sim o instante:
aberto, atemporal, intenso, dilatado, sólido;
nele, um gesto se faz eterno.
Um gesto é um trajeto e uma encruzilhada,
um estuário, um delta de corpos que confluem,
mais que trajeto um ponto, um estalido,
um gesto não é início nem fim de nada,
não há vontade no gesto, somente impacto;
um gesto não se faz: acontece.
E quando algo acontece, não há escapatória:
todo olhar tem lugar num lampejo,
toda voz é um signo, toda palavra forma
parte do mesmo texto.

Chantal Maillard, trad. Adriana Lisboa

*descoberta numa publicação da poeta Raquel Gaio