"Quem nos ouvisse
"Seria preciso dizer que, no limite, um escritor
escreve para os leitores, ou seja, "para uso de", "dirigido
a". Um escritor escreve "para uso dos leitores". Mas o escritor
também escreve pelos não-leitores, ou seja, "no lugar de" e não
"para uso de". Escreve-se pois "para uso de" e "no
lugar de". Artaud escreveu páginas que todo mundo conhece. "Escrevo
pelos analfabetos, pelos idiotas". Faulkner escreve pelos idiotas. Ou
seja, não para os idiotas, os analfabetos, para que os idiotas, os analfabetos
o leiam, mas no lugar dos analfabetos, dos idiotas. "Escrevo no lugar dos
selvagens, escrevo no lugar dos bichos". O que isso quer dizer? Por que se
diz uma coisa dessas? "Escrevo no lugar dos analfabetos, dos idiotas, dos
bichos".
É isso que se faz, literalmente, quando se escreve. Quando
se escreve, não se trata de história privada. São realmente uns imbecis. É a
abominação, a mediocridade literária de todos as épocas, mas, em particular,
atualmente, que faz com que se acredite que para fazer um romance, basta uma
historinha privada, sua historinha privada, sua avó que morreu de câncer, sua
história de amor, e então se faz um romance. É uma vergonha dizer coisas desse
tipo. Escrever não é assunto privado de alguém. É se lançar, realmente, em uma
história universal e seja o romance ou a filosofia, e o que isso quer dizer...
É escrever "para" e "pelo", ou seja,
"para uso de" e "no lugar de". É o que disse em Mil platôs,
sobre Chandos e Hofmannsthal: "O escritor é um bruxo, pois vive o animal
como a única população frente à qual é responsável".
É isso. É por uma razão simples, acredito que seja bem
simples. Não é uma declaração literária a que você leu de Hofmannsthal. É outra
coisa. Escrever é, necessariamente, forçar a linguagem, a sintaxe, porque a
linguagem é a sintaxe, forçar a sintaxe até um certo limite, limite que se pode
exprimir de várias maneiras. É tanto o limite que separa a linguagem do
silêncio, quanto o limite que separa a linguagem da música, que separa a
linguagem de algo que seria... o piar, o piar doloroso.
CP: Mas de jeito algum o latido?
GD: Não, o latido não. E, quem sabe, poderia haver um
escritor que conseguisse. O piar doloroso, todos dizem, bem, sim, Kafka. Kafka
é A metamorfose, o gerente que grita: "ouviram, parece um animal".
Piar doloroso de Gregor ou o povo dos camundongos, Kafka escreveu pelo povo dos
camundongos, pelo povo dos ratos que morrem." (Gilles Deleuze)