terça-feira, 27 de agosto de 2019

Quando o Brasil mudou




Tenho cá, muito rígidos nas minhas estantes, seis tomos encadernados em couro tingido de azul-escuro de um livro publicado em 1967, em São Paulo: “História do Povo Brasileiro”. Autores: Afonso Arinos de Melo Franco e Jânio da Silva Quadros. Eles mesmos, que, seis anos antes, haviam sido protagonistas de um capítulo decisivo da história do povo brasileiro, Jânio como presidente da República, Afonso Arinos como seu ministro das Relações Exteriores.

Cada volume da obra tem cerca de 350 páginas, estourando num total de quase duas mil. Mas estou certo de que pelo menos 1950 dessas páginas são subalternas a outras 50: as que tratam da renúncia de Jânio à presidência, ocorrida há 50 anos mais dois dias, em 25 de agosto de 1961.

Você sabia da existência desse livro, que, só por existir, é sensacional? Imagine: eles escreveram duas mil páginas, tudo para chegar àquele trecho definitivo para biografia de Jânio e para o futuro do Brasil, tudo para que Jânio pudesse se justificar para a posteridade. Lá estão, em linguagem rebuscada, que Jânio falava em linguagem rebuscada, suas pretensas razões. Depois de todo um arrazoado tecido na terceira pessoa, Jânio e Afonso Arinos alegam que o ex-presidente-autor enfrentou “contradições no sistema institucional brasileiro”. Foram essas contradições que ele teria tentado resolver com um plano bem pensado e coerente. Note a ginástica verbal que Jânio e Afonso Arinos fazem para explicar a sandice de 1961:

“Seu raciocínio foi o seguinte: primeiro, operar-se-ia a renúncia; segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório – visto que a João Goulart, distante na China, não permitiriam as forças militares a posse, e destarte, ficaria o país acéfalo; ; terceiro, ou bem se passaria a uma fórmula, em consequência da qual ele mesmo emergisse como primeiro mandatário, mas já dentro do novo regime institucional, ou bem, sem ele, as forças armadas se encarregariam de montar esse novo regime, cabendo, em consequência, depois a um novo cidadão – escolhido por qualquer via – presidir ao país sob novo esquema viável e operativo: como, em tudo, o que importava era a reforma institucional, não o indivíduo ou os indivíduos que a promovessem, sacrificando-se ele, ou não se sacrificando, o essencial iria ser atingido.

O plano, porém, falhou exatamente na vacilação dos chefes militares. João Goulart, compadecendo-se com a reforma parlamentarista, desfez, talvez sem sabê-lo, todo o plano concertado”.

Mais algumas linhas adiante, os autores definem o que foi, para eles, o ato de Jânio:

“A renúncia foi, assim, expressão de uma coerência de tipo heroico, no sentido carlyliano; Jânio Quadros acreditou que os destinos nacionais, num dado momento, dependiam de sua coragem de sacrificar sua carreira pessoal”.

Quer dizer: a renúncia tresloucada de Jânio Quadros transformou-se em um ato patriótico e generoso, de renúncia pessoal, de abnegação. E mais: transformou-se em um plano racional, premeditado, minuciosamente calculado. Isso, é evidente, nas palavras do próprio Jânio Quadros. Seis volumes, duas mil páginas. Quanta tinta, quanto papel, quanto tempo gasto para tentar justificar o injustificável.

Uma lição para os dirigentes do Grêmio: depois de feito o mal, nem todo o verbo da língua portuguesa será capaz de corrigi-lo.

Semana Gre-Nal

Digamos que o Grêmio jogasse assim no Gre-Nal:

Marcelo Grohe; Gabriel, Mário Fernandes, Edcarlos e Júlio Cesar; Fernando, Gilberto Silva, Rochemback e Douglas; Leandro e André Lima.

Não é um time desprezível. Não é um time para o fundo penumbroso da tabela de classificação. Mas não sei se é time para bater Leandro Damião e Oscar.

Fernando não rende no Grêmio o mesmo que na Seleção Brasileira.

Parece enfeitado, autossuficiente em demasia. No Grêmio, ele dá toquinho, ele tenta ser clássico, ele se atrasa na jogada. Na Seleção ele é aceso, preciso, ele é concentrado. Entre os adultos, talvez falte a Fernando jogar como adulto.

Victor sempre falha em Gre-Nal. Leandro Damião sempre faz gol em Gre-Nal. Se tudo correr como sempre corre, o Gre-Nal de domingo começa com 1 a 0 para o Inter.

O Inter tem uma escola de atacantes no Beira-Rio. O professor Ortiz pega os atacantes, treina em separado com eles, aperfeiçoa suas virtudes, corrige seus defeitos. Os resultados são dois: dentro de campo, o Inter conquista vitórias graças a seus atacantes. Fora de campo, o Inter se viabiliza vendendo-os.

Investimento premeditado na mercadoria mais valorizada do futebol. Simplesmente genial.

Enquanto isso, no Grêmio, o último grande centroavante formado pelo clube foi... Luiz Carvalho, nos anos 30. Simplesmente estúpido.


DAVID COIMBRA - 23 Aug 2011 

Jamais esquecerei




Como não amar o passado? – me pergunta uma leitora a propósito de uma de minhas crônicas. Por uma coincidência, estive esvaziando gavetas e encontrei o instantâneo em que outra amiga e eu passeamos de mãos dadas pela Praça da Matriz.

Ana Laura tinha cabelos loiros e traços perfeitos. Ana Laura e eu passeávamos de mãos dadas pela Praça da Matriz de sua cidade. Corriam então os Anos Dourados, o dia era de verão e glorioso.

Não sei do que foi feito de Ana Laura, se casou, se ainda mora em sua cidade, se tem filhos, se é odontóloga, advogada, médica ou simplesmente do lar. Mas recordo como se fosse hoje nós dois tão jovens passeando de mãos dadas num começo de namoro.

Não sei o que foi feito de Ana Laura, mas guardo a memória precisa de seu vestido leve, de seus tornozelos finos, de seu sorriso perfeito. Lembro que falávamos de um baile que ia haver aquela noite, de um cachorrinho que tinha desaparecido, do Brasil, que era então um país inaugural.

Um sorridente mineiro semeava estradas, hidrelétricas, desbravava fronteiras e instalava fábricas de automóveis onde então eles eram importados. Fuscas, Dauphines, DKWs, Aero-Willys, Simca-Chambords enchiam ruas e avenidas, uma rodovia rasgava a selva, Brasília erguia-se do nada em pleno Sertão.

Vivíamos então um tempo mágico, pois os ventos da esperança sopravam por aqui. Ana Laura era parte daquele cenário, em que soavam os acordes da bossa nova, nascia o cinema novo, o Brasil era campeão mundial de futebol na Suécia, Maria Esther Bueno vencia em Wimbledon, Éder Jofre arrasava nos ringues, ganhávamos ainda certames de basquete a pesca submarina.

Onde andará Ana Laura? Será diplomata, psicanalista, pianista? Não sei. São tudo coisas de problemática resposta. Só sei que os tempos são outros, bem diversos daqueles em que a adolescência era azul e o país uma festa móvel.

E o que foi feito de mim? Hoje sou todo um senhor que não caminha pela Praça da Matriz com uma garota loira. Não há mais Anos Dourados, somos um mar de corrupção.

Me resta a imagem da garota de 15 anos – os mesmos 15 anos que eu tinha – e que de repente e sem aviso, no passeio pela Praça da Matriz de sua cidade me disse aquelas palavras que jamais esquecerei.


LIBERATO VIEIRA DA CUNHA -23 Aug 2011 

O Amor é o Amor




O amor é o amor — e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?…

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor
e trocamos — somos um? somos dois?
espírito e calor!

O amor é o amor — e depois?

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O Rato e o Anjo

Há um rato para cada português

Dos jornais

Anjo guardum
pra cada um

Da província

Um rato e um anjo de guarda
para cada.

Anjo defende o acto
mau,
a fazer ou a sofrer.

Rato celebra contrato?
Qual!

Rato rói,
até na orelha.
Anjo dói
de outra maneira.

Mas eis que,nestes enredos,
há dois a mais,um a menos.

Cai ao anjo a pena,
ao rato o pelame.
Um regressa ao seu enxame,
o outro à sua caverna.

E o português,desanjado,
já se vê desratizado.
Chora.


Alexandre O'Neill

A saga do casamento




O casamento é também um ardil que a civilização arranjou para manter presos à união conjugal o marido e a mulher.

Pelo casamento, como por um milagre jurídico e existencial, os casais se mantêm juntos mesmo após ter cessado o amor e se extinguido o desejo.

Foi uma forma que a sociedade moderna encontrou para que marido e mulher não se separassem, embora não tenham sobrevivido, durante a constância conjugal, os mesmos valores que existiam quando das núpcias.

Por isso é que se arrastam os casamentos em cima das ruínas do amor e do desejo, alicerçados muitas vezes pela amizade, outras vezes pelos filhos, que acabam sendo fortes motivos para que os casais não se separem.

O amor e o desejo são por demais fugazes para que possam ser administrados pela perenidade do casamento.

É quase fatal a fadiga dos metais entre os casais, que se veem assim assaltados pelo fastio e pelo tédio conjugal como uma pressão demolidora. Mas, de outra parte, trombam esses casais com a indissolubilidade do vínculo conjugal, que só pode ser desfeito pelo divórcio perante a lei humana e que é inquebrantável e eterno mediante a lei religiosa.

O casamento é, pois, uma coisa muito séria. Daí que multidões de jovens hoje o evitam, munidos da sabedoria de que cedo cessarão o amor e o desejo e, sem ligação pelo casamento, eles podem partir para outras uniões sem os embaraços de serem considerados amarrados ao matrimônio original.

Por isso é que muitos casais enfrentam o desgaste direto do casamento driblando-o com técnicas diversionistas. Dormindo em camas separadas, em quartos separados ou até em casas separadas, atenuando, assim, o absurdo dessa condenação de solidão a dois.

Há até alguns casais que se permitem, ao marido e à mulher, aventuras extraconjugais que os libertam do vínculo matrimonial, distraindo-se assim em incursões libidinosas fora do eixo do casamento em si, o que os faz suportar com estoicismo promíscuo as amarras do compromisso central.

Esses são os que mantêm o casamento com uma dança farsesca e perigosa, que cedo ou tarde poderá acarretar danos morais e materiais consideráveis.

Ao contrário dos outros, mais sinceros, que resolvem encarar de frente a fatalidade da separação.

Eu já escrevi certa vez que, pior que o casamento, só a separação. Há muitas separações bem-sucedidas, mas a maioria delas guarda marcas doloridas, cicatrizes que acabam por atingir não raramente os filhos da união conjugal fracassada.

Muitos casamentos iniciam-se sob o ritmo da amizade, da compreensão, da cordialidade apaixonada e terminam nas Varas de Família em discussões tão violentas e agressivas, que acirram ainda mais o ódio superveniente nas relações.

Restam, no entanto, alguns raros mas expressivos exemplos de casais que se separam e continuam amigos, até visitando-se, como fosse normal o que lhes aconteceu. São sábios dignos de admiração. Afinal, chegaram à conclusão de que tudo na vida tem um fim e não seria o casamento que iria se constituir em exceção.

Da minha parte, fico extasiado quando assisto, num restaurante ou num bar, a um ex-marido e uma ex-mulher em conversa amigável e civilizada.

São uns heróis.


PAULO SANT’ANA -  23 Aug 2011 

Novo bizarro




Em “Embassytown” nos defrontamos com uma bizarrice radical, e talvez com o incomunicável

China Miéville é escritor com uma missão: quer escrever um livro em cada subgênero literário. Já publicou policial, novela juvenil, steampunk, fantasia e até western. Há um termo guarda-chuva para todas suas experimentações: “new weird” (novo bizarro?), referência à “weird fiction” de escritores maravilhosamente estranhos da virada dos séculos XIX para XX, como H. P. Lovecraft. Miéville — esquisito até no nome, que mistura geografia com acento francês, camuflando sua biografia basicamente britânica — não se incomoda com o rótulo, tendo incentivado sua “viralização” on-line, mesmo com blog chamado “manifesto rejeitomentalista” (e na sua carreira paralela de pensador marxista, foi colaborador de outro blog, o “Tumba de Lênin”). Sua utilização das regras de cada subgênero é nada ortodoxa: todos eles se tornam vítimas do lado negro da força da literatura. Resultam sempre em livros que dão frio na espinha do leitor. O horror, o horror.

“Embassytown” (“Cidade-embaixada”), seu lançamento de 2011 (pelo que consegui pesquisar, nenhuma de suas obras teve publicação brasileira — esta coluna pretende apenas sugerir alguma tradução), dá estranheza para a tradição mais intergaláctica da literatura. O grosso da ação se passa num planeta nos confins do universo, onde humanos convivem com seres absolutamente diferentes. Em geral, mesmo na ala mais ousada da ficção científica, a comunicação com alienígenas é problema de tradução. Depois de um período de aprendizagem, a conversa rola solta, pois as linguagens têm estruturas compatíveis e exprimem emoções parecidas. Vide o ET do filme “Super 8”: a telepatia apenas nos diz que ele não quer nos fazer mal; seu objetivo é voltar para casa. No fundo, apesar das aparências , o alien é gente como a gente. Em “Embassytown” não: ali nos defrontamos com uma bizarrice radical, e talvez com o incomunicável.

O romance nos coloca diantede seres pra-lá-de-Marrakesh. Só tive impressão de tanta diferença cognitiva ao ler as aventuras dos “pequeninos” do planeta Lusitânia de Orson Scott Card (um de meus autores preferidos, exigindo futura coluna só para ele), que numa fase de suas vidas, depois de rituais ultraviolentos, podem transferir suas consciências para árvores com as quais a troca de informações acontece a partir de
batuques nos seus troncos. Os “anfitriões” (“hosts” no original) que vivem ao redor da cidade-embaixada de Miéville têm dois órgãosde emissão sonora. Sua linguagem é resultado da combinação de palavras ditas simultaneamente pelas duas  “ bocas  ” . Não adianta treinar dois humanos para falar coisas diferentes ao mesmo tempo. O sentido só se estabelece se os dois sons forem produzidos por uma mesma mente. Aí entram os embaixadores, gêmeos geneticamente idênticos treinados para sintonizar seus pensamentos , formando uma única identidade.

O bizarro não para por aí, e é além que as coisas ficam deveras interessantes. Os “ anfitriões  ” não sabem mentir, pois não conseguem falar sobre algo que não tenha acontecido na realidade. Essa incapacidade, ou impossibilidade da mentira, revela problema mais sério, que transforma o livro em tratado de linguística alucinada, ou especulação extremista sobre a linguagem. Os “anfitriões” não pensam. Ou melhor  : só pensam quando falam, e sua fala é pura referência a objetos ou atos específicos (são concretos como o sertanejo de João Cabral, “incapaz de não se expressar em pedra”). Não existe linguagem separada do mundo, portanto não existe significação, e consequentemente não existe metáfora, polissemia, ambiguidade, ou diferença entre a palavra e o referente. Como — ao viver — não paramos de pensar, e acreditamos no “penso, logo existo”, é absurdo imaginar numa linguagem sem pensamento: ler “Embassytown” faz nosso cérebro doer. Para não estragar a surpresa da dolorosa leitura, posso adiantar que o livro narra a aquisição não da linguagem, mas do pensamento. É um processo violento. Um personagem diz : a linguagem , com pensamento, é “a continuação da coerção por outros meios”. Outro discorda : “Bobagem. É cooperação . ” O narrador tenta concluir: talvez cooperação e coerção não sejam coisas tão contraditórias assim. E aprender a pensar — mesmo o Bem — necessariamente machuca, faz sofrer. Fisicamente.

No planeta dos “anfitriões”, há uma sutil mudança no slogan de William Burroughs, também cantado pela Laurie Anderson: “o pensamento é um vírus vindo do espaço sideral”. Pois linguagem — que nunca comunicou realmente nada — já havia por lá. Faltava a possibilidade da mentira, e da interpretação, e do falar uma coisa querendo dizer outra. Faltava a poesia (nãoconcreta?) e seu dom de iludir. Por coincidência, ao ler “Embassytown” estava lendo também “O senhor do lado esquerdo”, de Alberto Mussa (a “new weird fiction” brasileira?). Lá encontrei a seguinte declaração, definitiva: “Os leigos se impressionam muito com objetos esotéricos, fetiches, ritos e símbolos místicos, imagens demoníacas, animais sacrificados. Ignoram que a verdadeira magia é a fala, a linguagem humana.”


Quem respeita a linguagem, respeita também o silêncio. É preciso silenciar de vez em quando para a linguagem tentar recuperar sua potência. Maneira troncha que encontrei para dizer que esta coluna vai se silenciar por um mês. Como dá para perceber, preciso urgentemente de férias. Até a volta (da ambiguidade)


Hermano Vianna -  26 Aug 2011

Quarenta e sete


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Tio Vânia na Graça Aranha

Quarenta e sete anos é uma idade estranha para se assistir a "Tio Vânia". Porque esta é a idade do personagem de Tchekov, o personagem que subitamente descobre que toda a sua vida foi baseada em falsas premissas, que nenhuma de suas esperanças de juventude vingou e, que como no blues de Robert Johnson, todo o seu amor foi em vão.

Desde a primeira montagem, de Stanislavski, em Moscou, em 1899, é óbvio que espectadores de todas as idades são levados a confrontar as suas próprias realizações por menores que sejam, com as de Ivan Petróvitch - cujo diminutivo do prenome batiza a peça. Confrontá-las aos 47 anos, porém, adquire um significado distinto, arrepiante.

Não só porque, em certa medida, qualquer vida se revela tão absurda quanto a de Vânia. Também porque ele projeta, a partir dos seus 47 anos mal vividos, que faltam 13 para os 60. "Muito tempo", para ele, no tédio burguês da Rússia rural e pré-revolucionária. Pouco tempo, para mim, na histeria do Brasil novo-rico do século XXI.

Eu tinha 20 anos quando assisti pela primeira vez a "Tio Vânia". Para um garoto naquela idade, a peça de Tchekov parecia um balaio de advertências: não jogue sua vida fora, faça algo de útil dela, pense na posteridade, não perca tempo amando sem ser amado. Corria 1984. Saí do Teatro dos 4 como se tivesse levado uma surra de chicote.

Não havia qualquer vestígio de esperança na obra que o autor russo, com humor negro, insistira em chamar de "comédia". Vânia administrava uma fazenda com a sobrinha, enviando os rendimentos para a capital, a fim de bancar a carreira acadêmica do marido de sua falecida irmã, agora casado com uma mulher muito mais jovem.

Um dia, Vânia afinal percebeu que o ex-cunhado não passava de uma fraude intelectual. Aposentado, o professor Serebriákov se refugiara na fazenda, alterando-lhe a rotina com caprichos. Enquanto isso, sem querer querendo, sua bela Helena enfeitiçou Vânia e o amigo médico, Astrov. Para Tchekov, a beleza entristece, ao expor os homens à imperfeição de suas existências. Qual uma tempestade de outono, o conflito se aproxima, estouram alguns trovões, mas logo a vida, aquela vida, segue o seu curso.

A frustração prevalecia no mundo observado por Tchekov. Pior que isso. Os personagens de "Tio Vânia" pareciam preferir viver atolados nela do que fazer força, força de verdade, para se libertar, para mudar. Vânia odeia o ex-cunhado e ama Helena.

Astrov deseja Helena. Helena deseja Astrov. Sônia, a sobrinha, ama Astrov em silêncio.

Nada de fato acontecia. Como, aliás, é característico do teatro de climas do autor russo.

Num determinado momento, em torno de copos de vodca, Sônia perguntava à madrasta se ela teria preferido um marido jovem. "Claro!", responde Helena, rindo. Eis a comédia à moda de Tchekov, dolorosa. Anos depois, assistindo ao filme "Era uma vez em Tóquio", de Yasujiro Ozu, eu descobriria uma cena análoga. A caçula da família perguntava, em lágrimas, à viúva do seu irmão morto na guerra se a vida era mesmo só frustração. "É, sim!", sorria a gentil Noriko, interpretada por Setsuko Hara.

Ajudava - e muito - na devastação emocional descrita e causada por "Tio Vânia", a qualidade daquela montagem do Teatro dos 4 em 1984. Dirigida por Sérgio Britto, a partir de uma tradução de Millôr Fernandes, com Armando Bogus no papel-título, Christiane Torloni como a lânguida Helena, além de Rodrigo Santiago, Nildo Parente e Denise Weinberg nos outros papéis principais. Nunca os esqueci, o que gerou na minha cabeça um padrão difícil de superar. Inclusive para Louis Malle, que filmou "Tio Vânia em Nova York" em 1994, com Wallace Shawn e Julianne Moore.

Montagem do bom grupo mineiro Galpão dirigida por Yara de Novaes, "Tio Vânia (Aos que vierem depois de nós)", em cartaz no Sesc Ginástico só até o próximo domingo, já sofreu sérios reparos de Barbara Heliodora neste caderno. O anacrônico rádio não me incomodou tanto quanto as canções em espanhol ou o que me soou como uma excessiva ênfase na comicidade, que deveria apenas servir de distância para o impulso que faz o golpe de Tchekov penetrar mais fundo. Entretanto, gostei de Eduardo Moreira (Astrov) e, sobretudo, da atriz convidada Mariana Lima Muniz (Sônia).

De qualquer forma, pesados contras e prós, foi bacana reencontrar Vânia, agora, quando ambos temos 47 anos. Ele, claro, os terá para toda a sua merecida eternidade. Eu... Mesmo nas minhas manhãs mais cinzentas, porém, tenho de admitir que escutei as advertências de 1984 e fiz alguma coisa na vida - em especial, uma filha.

Anton Pavlovitch Tchekov jamais chegou aos 47 anos de seu personagem mais famoso. Morreu aos 44, em 1904, da então incurável tuberculose, que se manifestara duas décadas antes. Ele começara a tossir sangue no mesmo 1884 no qual se formara em Medicina, sua principal ocupação durante toda a vida, por mais que escrevesse compulsivamente contos e peças. Além de "Tio Vânia", as mais famosas são outras duas "comédias", "A gaivota" e "O jardim das cerejeiras", e o drama "Três irmãs".

Pode-se enxergar Tchekov em Astrov. Médico deprimido pelas condições de vida dos camponeses russos, entusiasmado de um modo quase panteísta pela natureza, desconfiado do casamento. O seu, breve, com a atriz Olga Knipper, não gerou filhos, mas um aborto espontâneo. Talvez não haja imagem mais apropriada à desesperança.


 ARTHUR DAPIEVE. 26 Aug 2011 

Aos Vindouros, se os Houver...

Vós, que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;

que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem peçários, calendários, Pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;

computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;

que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.

Alexandre O'Neill


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Conflito de interesse




A expressão é parte do vocabulário dos sistemas políticos que perseguem um equilíbrio inalcançável entre pontos de vista particulares e o sistema que os sustenta em sociedades movidas por competição eleitoral. Quando não há competição eleitoral (como ocorre no liberalismo) há equilíbrio, mas, em contrapartida, não há conflito de interesse já que o interesse do Grande Irmão ou do Partido despoticamente sufoca tudo.

Mas no liberalismo de Montesquieu há, de um lado, a motivação por ganhos e, de outro, a consciência das implicações (e dos custos) da realização dessas motivações para a coletividade. E quando o Fulano ou o Sicrano souberem? Será que a proposta está de acordo com as normas do sistema? Questionam todos os interessados que querem realizar o seu empenho, o qual demanda visibilidade, pois o sistema precisa, como num jogo de futebol, de testemunho público e de "transparência". O que poderá ocorrer se eu for contratado em surdina, digamos, pelo Ministério do Turismo, para planejar o panorama do turismo no Brasil nos próximos quatro anos pela modesta quantia de 50 milhões de reais? Como ocorreu a contratação? Quem a propôs? Que tipo de relacionamento eu teria com certas pessoas do Ministério? Quem competia comigo ou quem inventou a ideia e assim por diante são perguntas mais do que legítimas que surgem aos berros ou sussurros, buscando a legitimidade (ou a face externa) do processo. Porque a legitimidade (uma dimensão capital das ações sociais que Max Weber suscitou na sua obra) diz respeito a presença do público ou da totalidade nos processos sociais. Eu posso fazer sozinho mas quem aprova comprando, lendo ou apoiando é a sociedade! A legitimidade fala da reação da coletividade diante dos fatos que ocorrem no seu meio. Se os fatos forem opacos ou bizarros (como pode um pessoa enriquecer 20 vezes em 2 dias; ou porque os "parques de diversão" se transformaram em "parques de aflição" na cidade do Rio de Janeiro), eles trazem de volta a lógica do bom-senso - a voz do todo ao qual também pertencemos.

O poder passou do carisma e da tradição (as pessoas nasciam, não se elegiam reis...) ao sistema burocrático-legal que se interpõe e administra os eternos conflitos entre os interesses particulares e a moralidade coletiva. As leis feitas para todos e o seu aparelho institucional são as almas do sistema democrático. Os interesses são as mãos visíveis dos desejos legítimos (ou escusos) de enriquecer e de ter sucesso. O problema é saber o que, como e quando tais interesses se sustentam num jogo no qual muitos agentes começam a oferecer simultaneamente os mesmos bens e serviços de modo cada vez mais igualitário e impessoal ao estado e ao "governo".

Impossível, porém, perceber conflito de interesses num sistema familístico no qual os governantes se apossavam do governo e do "poder", concebido como um modo de liquidar adversários, de ajudar parentes, partidos e amigos; e de aristocratizar quem o alcançava. Nesta concepção não havia uma diferença entre interesses do todo (ou da sociedade) representado pela administração pública e os interesses do "governo" que se confundiam com os segmentos certos de que "agora é a nossa vez".

Antigamente havia quem não pagasse imposto de renda no Brasil. Hoje todos pagamos impostos - muitos impostos. A teoria é puro bom-senso: paga mais quem ganha mais; e os impostos pagos são redistribuídos em bens e serviços que contemplam todo o sistema engendrando interdependências. Antigamente prestávamos mais atenção a cobrança; hoje - eis a revolução - prestamos muito mais atenção a redistribuição! A partir da vivência com um mundo mais transparente, repleto de problemas e informatizado, ficou claro que o tal "estado" - esse engenho que recolhe e usa os dinheiros de todos - não funciona pensando na coletividade que ele representa e deve servir, mas opera claramente em benefício de uma outra entidade que nós, no Brasil, chamamos de governo e que é, de fato, uma das encarnações mais negativas, senão a mais negativa do estado entre nós.

É precisamente isso que precisa ser mudado. Não dá mais para continuar a operar num sistema político no qual "ter poder" é distribuir cargos em vez de usar esses cargos como instrumentos de gerenciamento público. Não é mais possível pensar o "poder" como algo ao sabor de pessoas, partidos e interesses - como um recurso para aristocratizar grupos que dele fazem parte por nomeação, vínculo ideológico ou eleição. Está passando o tempo no qual o governo podia ser "dono do Brasil" e como tal gastar bastarda e irresponsavelmente o fruto do nosso trabalho, ignorando o país e pensando exclusivamente nos seus comparsas. O limite da demagogia que inventou esse híbrido de eleição, populismo e coalizão semipatriarcal tem tudo a ver com a incoerência entre pessoas e papéis. Afinal, um ator medíocre não pode interpretar Hamlet, do mesmo modo que é preciso fazer com que o estado e, sobretudo, o governo sejam servidores da sociedade, a ela devolvendo o resultado do trabalho de seus cidadãos comuns. Afinal, a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus. Essa é a questão!


- ROBERTO DaMATTA. 24 Aug 2011 

A idade do posso tudo




Ela tem algo em torno de 70 anos, mas parece menos, como é comum hoje em dia. Dinâmica, é daquelas mulheres de personalidade que sabem conduzir uma boa conversa. No entanto, passei a reparar que suas opiniões, outrora expressadas de forma elegante, entraram no estágio “faca na bota”.

Ela mesma deu a pista sobre o que estava acontecendo, depois de ter feito um comentário certeiro, porém bastante duro a respeito de uma amiga: “Agora eu falo mesmo, tenho idade pra isso”.

Esse episódio me voltou à lembrança quando li recentemente a notícia de que o ator Gerard Depardieu não acatou o pedido de uma comissária de bordo para que ele aguardasse a decolagem antes de ir ao banheiro: ele simplesmente urinou no corredor da aeronave, diante de outros passageiros.

Se estava tão apertado, deveria ter entrado no banheiro mesmo assim, ninguém iria segurá-lo à força, mas partir para a provocação me pareceu arrogante, a mesma arrogância que tenho percebido em pessoas que, diante da maturidade mais que estabelecida, julgam-se acima do bem e do mal.

Conheço pessoas de 85 e até de 90 anos que, se não esbanjam saúde, seguem firmes e fortes sobre as próprias pernas e com a cabeça igualmente funcionando bem. Aquela caricatura dos avós de cabelo branco, com as costas arqueadas, arrastando os pés e extremamente rabugentos é apenas isso, uma caricatura. Vovós, hoje, estão tendo que apresentar a carteira de identidade no caixa do banco para provar que têm direito a fila especial.

Ainda assim, a idade manda recado. Os joelhos já não reagem como se espera, a memória fica difusa, as chances de ser olhado com algum desejo pelo sexo oposto caem drasticamente e o futuro, bem, o futuro não é mais representado por uma infinita highway, e sim por uma estradinha de tiro curto e com placas avisando: atenção, curva perigosa.

O maior benefício de ter vivido tanto é, de fato, a sabedoria acumulada. Só que alguns optam por jogá-la na cara dos outros com as palavras mais afiadas que encontram, como se a sabedoria fosse um instrumento de desforra.

O caso do ator francês é diferente, não há sabedoria nenhuma na sua transgressão, mas é outra amostragem do “dane-se” que acomete muita gente madura. Ao alcançar uma idade avançada, parece que a elegância deixa de ser essencial para o convívio. Depois de ter passado a vida obedecendo regras e sendo cordato, o sujeito sente-se autorizado a fazer a macaquice que quiser – como faria o adolescente que ele já foi.

De minha parte, não me vejo na iminência de rodar a baiana por direito adquirido com a idade, mas vá saber daqui a alguns anos. De boa moça a bruxa azeda, a transformação pode se dar do dia pra noite. Basta um convite para confrontar-se com a própria finitude.



MARTHA MEDEIROS -  24 Aug 2011 

Divórcio e liberdade





Recentemente, a revista do New York Times publicou um artigo intitulado The Divorce Delusion, em que se dizia que a tendência contemporânea de apresentar o divórcio como algo indolor não corresponde à realidade. Heather Havrilesky, autora do artigo, entende que o divórcio na vida real está mais próximo do drama do filme Kramer vs. Kramer do que poderíamos imaginar. É uma tese ousada. Será que o esforço por desdramatizar a ruptura do casamento está sendo ineficaz?

Logo em seguida saiu no Wall Street Journal um texto de Susan Gregory Thomas sobre o mesmo tema (The Divorce Generation, 9/7), no qual retrata a diferença de atitude com relação ao casamento entre a geração X e a dos seus pais. Os mais jovens estariam mais determinados a manter a união, ainda que nem sempre o consigam. Desde o ano de 1980, a proporção de divórcios nos EUA vem caindo.

É um tema complexo. No Brasil o divórcio é recente, tem pouco mais de 30 anos. Mas já se incorporou à nossa mentalidade. É difícil encontrar quem não considere positiva a possibilidade do divórcio no regime jurídico do casamento.

O que isso significa? Que abraçamos o conceito moderno de liberdade. Liberdade como escolha, arbítrio, choice. E estamos felizes com essa liberdade, já que sempre é possível revisar, reescolher, adaptar, romper, mudar. Não nos sentimos presos: o amanhã pode ser diferente do hoje.

Num primeiro momento, essa percepção da liberdade deslumbra. Mas tem um preço: exclui a dimensão temporal das nossas escolhas. Elas ficam presas ao presente, sem transcendência vinculante para o futuro.

Ficamos limitados ao hoje, ao agora. E nos esquecemos de que somos seres temporais, cuja vida não se realiza só no hoje, mas ao longo do tempo. Não nos basta o agora: o presente - quando limitado ao presente - não nos define. Também somos história e também somos futuro.

A perspectiva do tempo é parte do fenômeno humano, ou seja, é parte da liberdade. Promessas, juras, compromissos sem a dimensão temporal são apenas palavras, são apenas presente. Sem essa transcendência vinculante para o futuro o conteúdo intencional desses atos humanos é raso e muitas vezes se assemelha a uma mentira, já que acaba por negar aquilo que em princípio deveria expressar.

Será tudo isso uma teoria? Infelizmente, não. Estreitar o horizonte da liberdade tem consequências. Um exemplo é a insegurança. Sem compromissos que ajudem a dar um sentido ao futuro o medo nos sequestra. Ficamos sem armas para lutar contra a incerteza do amanhã. Quantas vezes já não foi dito que a ansiedade é um dos grandes males da nossa época?

Mas não basta falar em escolhas, já que muitas vezes não é essa a percepção subjetiva de quem está envolvido num processo de divórcio. Este não é visto tanto como uma decisão, mas como a única saída. O drama do divórcio não pode ser separado do drama do casamento infeliz. Tratá-los isoladamente parece-me intelectualmente desonesto, existencialmente falso e ideologicamente moralista, pois é fácil criticar o divórcio sem ver o dia a dia de um casamento em apuros.

E aqui entramos num segundo aspecto importante da concepção moderna de liberdade. Encara-se que suas únicas limitações são externas e se pressupõe que internamente todos os seres humanos sejam igualmente livres. Ignora-se a necessidade de um aprendizado da liberdade (Aristóteles). Ela - em certo sentido - não é um dado, é preciso conquistá-la.

E o que isso tem que ver com o fracasso de tantos casamentos?

É preciso aprender a conviver com uma pessoa. Não basta uma vontade inicial ou uma paixão. E quando se ignora esse fato acontece o contrário do inicialmente pretendido: acabamos reféns das circunstâncias, na percepção de que o divórcio é a única solução. É interessante notar que a visão moderna de liberdade, que em princípio parece privilegiar a autonomia individual, nos devolve a uma situação pré-socrática: reféns do destino, reféns dos deuses. Já não somos donos do nosso futuro, são as circunstâncias que parecem determinar a nossa vida.

Dessa forma, o extraordinário, o heroico não é o divórcio, e sim a fidelidade. Talvez seja essa razão por que a cultura ocidental tenha buscado durante tantos séculos proteger o casamento, facilitando sua permanência no tempo, pois o mais fácil é que se rompa no meio do caminho.

E quem são os culpados pela situação atual? Penso que somos nós mesmos, ao excluirmos o conteúdo humano da fidelidade. Ficamos apenas com a forma, com as regras externas, e - na ótica contemporânea - essas são as grandes vilãs da liberdade. Por isso o divórcio foi visto como uma libertação, já que flexibilizava tais regras.

Mas será que os limites da nossa liberdade não decorrem muito mais de nós próprios, dos nossos hábitos, da nossa visão de mundo? Não é uma pergunta simples, pois incide no núcleo da nossa identidade. Afinal, somos nós ou são os outros e as circunstâncias que determinam a nossa vida? Talvez seja irreal pôr uma disjuntiva tão radical, mas o viés da nossa resposta é um interessante indicador.

Encarar o divórcio como uma alternativa possível dentro do projeto pessoal de vida significa desistir de um sonho por medo de que se torne um pesadelo. Mas será essa a única opção razoável? A desesperança merece ser uma alternativa?

Não há uma equação matemática para resolver essa questão, não existe uma resposta única. Toda opção tem o seu preço e me parece que saber o custo de cada alternativa nos ajuda a sermos mais livres. Afinal, se há um consenso no mundo de hoje, é o de que a liberdade é fundamental. Sejamos conscientes, portanto, de em qual liberdade estamos apostando.

- NICOLAU DA ROCHA CAVALCANTI. 22 Aug 2011 



ADVOGADO, É PRESIDENTE DO CENTRO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA (CEU), ENTIDADE MANTENEDORA DO INSTITUTO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS SOCIAIS (IICS).



Como desmascarar o choro falso



 O choro é uma arte. Uma obra-prima. Uma Pietà de Michelangelo. Diante dela, nossos olhos se umedecem na hora, o batimento dispara e até nossa boca se ajoelha pedindo perdão pela nossa indiferença nas sinaleiras.

Mas, como toda escultura, é cheia de réplicas e falsificações.

E dá para entender o motivo. Desde bebê aprendemos a fazer manha para ganhar as coisas. Perdemos a autenticidade das lágrimas. A cobiça nos distanciou da verdadeira dor. Assim que descobrimos que os pais não aguentam choro por muito tempo, abusamos do recurso cênico e banalizamos o berro. Nossos sofrimentos são, na maior parte das vezes, reclamações. Os gritos não passam de resmungos. Poderiam ser evitados. Têm uma clara natureza forçada.

Desejando prevenir a população da ação dos impostores, estabeleço mandamentos para identificar e reprimir o estelionato emocional:

> O choro depende de soluço. É um engasgo precioso. Choro sem soluço é poço sem roldana. Trata-se de um motor respiratório para atravessar o vale de lágrimas. Numa visão gramática da tristeza, o soluço é a vírgula e o gemido é o ponto final. São pausas fundamentais que garantem o suspense: parece que o sofredor vai falar, mas ele se cala.

> O choro sincero é um miado. Não conseguiremos decifrar o que a pessoa disse. As palavras são completamente ilegíveis.

> O rosto ficará vermelho, inchado, como um ataque de abelhas-africanas.

> O sofredor não vai encarar o outro de modo nenhum, não se chora de cabeça levantada, isso é coisa de novela e de colírio. O choroso estará acovardado, de boca aberta, já que não consegue respirar.

> Não acredite no tipo que bate a porta do quarto para chorar, está chamando atenção, é carência, não choro, o choroso real desmorona onde estiver. Não é possível guardar o choro, criar um fundo de investimento de dor. O choro é pontual, surge no meio do trabalho, no meio da aula, relâmpago incontrolável.

> Em contato com o travesseiro, a choradeira irá atravessar a fronha e o lençol. Se não mofar o colchão, não é choro.

> No momento em que o homem chora, se a voz vem grossa, ele está fingindo: no choro, a voz sempre é fina, distorcida, de gás hélio.

> Mulher nunca chora sem estar pintada. É regra básica, para borrar feio e oferecer espetáculo. Mulher chorando de cara limpa é farsa.

> Se você usa lenço ou papel higiênico para limpar o nariz, está mentindo: quem sofre mesmo assoa o ranho na manga da camisa, e não se importa com os botões.

> O choro é como orgasmo. Não admite discurso depois. Aquele que aproveita o choro para passar sermão é apenas um chantagista.


FABRÍCIO CARPINEJAR - 23 Aug 2011 

- As lições de Fukushima


ENTREVISTA: Norio Sasaki 


O presidente mundial da Toshiba, empresa que participou da construção dos reatores na usina atingida pelo tsunami, afirma que o mundo não pode abrir mão da energia nuclear.
O japonês Norio Sasaki conquistou grande reputação como pesquisador nuclear e ajudou a transformar a Toshiba, um dos maiores grupos industriais do mundo, em uma potência na área, responsável por 30% da geração mundial de energia elétrica obtida por meio de reatores atômicos. Há dois anos. ele assumiu a presidência mundial da empresa. Sob seu comando, a Toshiba teve de enfrentar o vazamento de radiação da usina nuclear de Fukushima I, depois do terremoto e do tsunami que varreram a costa leste do território japonês em março. O executivo de 62 anos conta que estava numa reunião em Tóquio quando sentiu o prédio balançar. Orientou os procedimentos iniciais de segurança em Fukushima, mas reconhece que não foram suficientes: "Quando construímos a usina, há quarenta anos, faltou prever o impacto de um tsunami de proporções inéditas". De acordo com Sasaki, as futuras usinas vão exibir padrões bem mais elevados de segurança. A Toshiba é mais conhecida por causa de seus produtos eletrônicos. Nos anos 80, a empresa desenvolveu a memória flash, que permite o armazenamento de dados em espaço reduzido. Hoje, a tecnologia está presente em telefones celulares e tablets. No ano passado, a Toshiba lançou a primeira televisão 3D que dispensa o uso de óculos. Sasaki esteve no Brasil na semana passada para participar das comemorações de sessenta anos da fabricação do primeiro aparelho de televisão no país, pela brasileira Semp, com a qual a empresa japonesa mantém uma sociedade desde 1977. Ele deu a seguinte entrevista a VEJA.
A Toshiba participou da construção da usina nuclear de Fukushima 1, onde aconteceu o vazamento de radiação depois do terremoto e do tsunami em março. O senhor trabalhou como pesquisador nuclear por muitos anos e comandou os negócios da empresa na área. Qual o seu diagnóstico sobre o acidente?
Eu estava numa reunião em Tóquio quando aconteceu o terremoto. O prédio começou a balançar 60 centímetros para um lado, 60 centímetros para o outro. Passado o tremor, perguntei: "Onde foi o epicentro?". Contaram-me que havia sido na província de Miyagi, perto de Fukushima. A segunda pergunta foi: "Como está a usina 1?". Disseram-me que estava tudo bem, que ela havia resistido. Mas, cinquenta minutos depois, veio o tsunami, e o fornecimento de energia elétrica foi interrompido. Assim que soube disso, instruí nossos técnicos a resfriar os reatores. Mais tarde, fui inspecionar a usina. Os técnicos fizeram o que estava ao seu alcance.
Não havia como evitar o vazamento?
Digamos que houve falhas. Primeiro: quando construímos uma usina nuclear, realizamos muitos testes e simulações de desastres, como terremotos e tsunamis. Ouvimos vários especialistas. Mas não se pode construir uma usina segura se nos basearmos apenas em eventos passados. Temos de antecipar todo tipo de situação. Em Fukushima, faltou calcular o impacto de um tsunami de proporções inéditas. Até então, o tsunami mais forte alcançara pouco mais de 3 metros de altura. O de março chegou a 14 metros. Ao projetarmos a usina atingida, não imaginamos uma situação extrema como essa. O segundo ponto: quando aconteceu o vazamento, a despeito de todo o esforço feito, não houve um gerenciamento adequado das ações. O protocolo estava defasado.
Como o acidente vai se refletir no projeto de novas usinas? É fundamental fazermos um bom diagnóstico e informar a população sobre tudo o que aconteceu, em detalhes. Esse trabalho ainda não terminou. Mas já podemos dizer que as novas usinas terão padrões bem mais elevados de segurança, reflexo do nosso aprendizado.
Depois do acidente em Fukushima, vários governos anunciaram planos para revisar ou até fechar usinas nucleares em seus territórios, como no caso da Alemanha. Não se trataria de uma tendência irreversível?
Países que já eram reticentes em relação à energia nuclear, como Alemanha e Itália, reavaliaram sua política para o setor. Outros, como Estados Unidos, França, China e Índia, não mudaram os planos. São governos que continuam a enxergar na fonte nuclear uma alternativa para resolver o desafio do aquecimento global e do aumento da demanda por energia. Temos contratos com Estados Unidos e China, entre outras nações, que não foram cancelados. Não imagino que perderemos muitos negócios. As usinas nucleares representam uma opção que não pode ser desprezada.
O governo brasileiro anunciou planos para retomar o programa de investimentos em energia nuclear. Que conselho o senhor daria ao país?
Tanto os governos como nós, fabricantes, temos de garantir a segurança das usinas. Esse aspecto não pode ficar apenas sob responsabilidade das empresas. O local a ser escolhido para abrigar uma usina, por exemplo, é tarefa de um governo.
Quais são as perspectivas para ampliar os investimentos de sua empresa no Brasil?
Nosso plano é fortalecer os negócios principalmente na área de produtos eletrônicos e também em projetos de infraestrutura. Acreditamos que o país vai se tornar um mercado consumidor que rivalizará com o de nações desenvolvidas. Além disso, o Brasil está num momento em que precisa ampliar sua capacidade energética. Organizará a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos nos próximos anos, o que vai demandar investimentos pesados. A Toshiba empenha-se fortemente para crescer em dimensões globais. No ano passado, 55% do nosso faturamento teve origem nas operações fora do Japão. Planejamos distribuir os riscos cambiais e não depender de poucos mercados. Em 2013, queremos alcançar 75% de faturamento fora do Japão. O Brasil é muito atraente, e pode ser não apenas um mercado produtor como também exportador, apesar do real valorizado. Durante muito tempo, até pela proximidade geográfica, a Toshiba e outras grandes multinacionais japonesas se voltaram para a China. O Brasil sempre foi visto, de certa forma, como uma segunda opção. Mas isso pode mudar.
Os países ricos enfrentam dificuldades e estão diante da ameaça de um período duradouro de baixo crescimento econômico. O Brasil pode se beneficiar dessa situação?
O país tem uma característica especial. Em comparação com a China e a Índia, não é tão dependente das exportações. O Brasil superou o processo inflacionário das décadas passadas e tem crescido consistentemente. Mas não é fácil investir no mercado brasileiro. O sistema tributário é um obstáculo. O respeito à propriedade intelectual é outro. Por essas razões, é importante manter parceiros estratégicos, como a Semp, ao lado da qual estamos há mais de trinta anos, para entender como o país funciona. Eu sugeriria, no entanto, providências que teriam efeitos diretos sobre a atração de investimentos produtivos. Como simplificar a cobrança de impostos, para ficar num único exemplo.
A Toshiba acaba de acertar uma parceria com a STI para desenvolver projetos de chips no Brasil. Isso traz a expectativa da instalação de uma fábrica no país.
Existem dois desafios básicos antes que uma fábrica de chips se instale no Brasil. É preciso assegurar o fornecimento constante de energia elétrica, sem risco de interrupções. É necessário ainda contar com técnicos especialistas em alta tecnologia. Não dá para fazer mágica e erguer uma fábrica do dia para a noite. Ninguém nasce grande. É preciso dar passos pequenos no início, se o país quiser produzir chips. Caso o Brasil dê conta desses dois aspectos, terá condições de fabricar tais componentes. Mas existem outras questões. Hoje, o real está muito valorizado. É algo parecido com o que ocorre no Japão, em relação ao iene. É mais um impedimento. Outro desafio são as elevadas alíquotas para importação de peças. Por fim, o país precisa demonstrar que possui demanda suficiente para justificar um investimento desse porte (cerca de 4 bilhões de dólares).
A China superou o Japão e se tornou a segunda maior economia do mundo. A projeção é que supere os Estados Unidos em dez ou quinze anos. Mas, duas décadas atrás, era o Japão que estava predestinado a assumir a condição de maior economia do mundo. O que aconteceu?
Certamente a posição do Japão na economia global mudou nesse período. A análise pode variar conforme o ponto de vista, mas, sob a ótica da gestão das empresas, eu posso dizer que as companhias japonesas não souberam se ajustar às dramáticas mudanças no ambiente de negócios e competição. O Japão, no entanto, já superou muitas dificuldades em sua história, extraindo força das tragédias. Essa determinação demonstra nossa competitividade. Sempre aconselho os executivos e os funcionários a buscar a liderança mundial. Nós, japoneses, temos uma virtude que é estabelecer metas elevadas e nos esforçarmos para alcançá-Ias. Acredito que a economia japonesa vai se recuperar.
Com relação aos produtos eletrônicos, o que o consumidor pode esperar em termos de avanços tecnológicos?
Existe uma tendência de convergência de diferentes funções para um mesmo aparelho, como já ocorre com os telefones celulares e os trablets. Ao mesmo tempo, precisamos dispor de um software (programas e aplicativos) que faça o consumidor desejar adquirir o hardware (o aparelho). É o caso do iPad e do iPhone, da americana Apple. As pessoas não compram apenas esses dispositivos. Elas estão interessadas no conjunto de serviços que eles oferecem, como os recursos dos milhares de aplicativos disponíveis. Nesse sentido, será muito difícil algum fabricante conseguir ultrapassar a Apple nos próximos anos.
O sucesso da Apple deixa ensinamentos para as empresas do setor?
A Apple, sem dúvida, está olhando na direção certa. Empresas bem-sucedidas são resultado de visão e imaginação. É o que buscamos fazer. A Toshiba foi fundada por Hisashige Tanaka, há 136 anos. Ele foi o primeiro a produzir telégrafos em escala industrial no Japão. Desde o início, a empresa manteve uma política de inovação técnica e de questionamento dos padrões existentes. Acredito que a imaginação é o dado mais importante para concretizar inovações. Já desenvolvemos produtos que mudaram a vida das pessoas, como a memória flash do tipo nand nos anos 80 (hoje amplamente utilizada em celulares, pen drives, câmeras digitais e note books). Lançamos a primeira televisão 3D que dispensa o uso de óculos, no fim do ano passado. Nosso centro de pesquisas planejava finalizá-la daqui a alguns anos, mas antecipamos as vendas do modelo para sermos os pioneiros.
Por que as empresas tecnológicas são obcecadas pelo pioneirismo?
Em nosso negócio, é essencial colocar os produtos no mercado antes que os concorrentes. Precisamos chegar em primeiro lugar, porque ficar para trás pode custar muito caro. Tenho uma história que exemplifica o que estou dizendo. Desenvolvemos uma bateria para carros elétricos que pode ser recarregada em cinco minutos, em até 90% de sua capacidade. Podemos dizer que é uma bateria com características únicas. Mas, como a criamos mais tarde do que nossos concorrentes, foi difícil entrarmos nesse nicho. Só agora estamos conquistando clientes para essa bateria. Temos de pensar, a todo momento, em produtos que sejam diferentes daqueles que existem atualmente. Esse é um dos principais pilares de nossa atividade. O fundamental é lançar produtos sem hesitação. Se não assumirmos riscos nos negócios e só seguirmos os concorrentes, não teremos condições de sobreviver na disputa pelos consumidores travada no mercado mundial.

 23 Aug 2011

Acerca de la muerte de Bieito



Fue cerca del camposanto cuando sentí removerse dentro de la caja al pobre Bieito. (De los cuatro portadores del ataúd yo era uno). ¿Lo sentí o fue aprensión mía? Entonces no podría asegurarlo. ¡Fue un rebullir tan suave!... Como la tenaz carcoma que roe, roe en la noche, roe desde entonces en mi magín enfervorizado aquel suave rebullir.
Pero es que yo, amigos míos, no estaba seguro, y por tanto -comprendedme, escuchadme-, por tanto no podía, no debía decir nada.

Imaginaos por un instante que yo hubiera dicho:

-Bieito está vivo.

Todas las cabezas de los viejos que portaban cirios se alzarían con un pasmado asombro. Todos los chiquillos que iban extendiendo la palma de la mano bajo el gotear de la cera, vendrían en remolino a mi alrededor. Se apiñarían las mujeres junto al ataúd. Resbalaría por todos los labios un murmullo sobrecogido, insólito:

-¡Bieito está vivo! ¡Bieito está vivo!...

Callaría el lamento de la madre y de las hermanas, y en seguida también, descompasándose, la circunspecta marcha que plañía en los bronces de la charanga. Y yo sería el gran revelador, el salvador, eje de todos los asombros y de todas las gratitudes. Y el sol en mi rostro cobraría una importancia imprevista.

¡Ah! ¿Y si entonces, al ser abierto el ataúd, mi sospecha resultara falsa? Todo aquel magno asombro se volvería inconmensurable y macabro ridículo. Toda la anhelante gratitud de la madre y de las hermanas, se convertiría en despecho. El martillo clavando de nuevo la caja tendría un son siniestro y único en la tarde atónita. ¿Comprendéis? Por eso no dije nada.

Hubo un instante en que por el rostro de uno de los compañeros de fúnebre carga pasé la leve insinuación de un sobresalto, como si él también estuviese sintiendo el tenue rebullir. Pero no fue más que un lampo. En seguida se serenó. Y no dije nada.

Hubo un instante en que casi me decido. Me dirigí al de mi lado y, encubriendo la pregunta en una sonrisa de humor, deslicé:

-¿Y si Bieito fuese vivo?

El otro rió pícaramente como quien dice: «Qué ocurrencias tenemos», y yo amplié adrede mi falsa sonrisa de broma.

También me encontré a punto de decirlo en el camposanto, cuando ya habíamos posado la caja y el cura rezongaba los réquienes.

«Cuando el cura acabe», pensé. Pero el cura terminó y la caja descendió al hoyo sin que yo pudiese decir nada.

Cuando el primer terrón de tierra, besado por un niño, golpeó dentro de la fosa contra las tablas del ataúd, me subieron hasta la garganta las palabras salvadoras... Estuvieron a punto de surgir. Pero entonces acudió nuevamente a mi imaginación la casi seguridad del horripilante ridículo, de la rabia de la familia defraudada si Bieito se encontraba muerto y bien muerto. Además de decirlo tan tarde acrecentaba el absurdo desorbitadamente. ¿Cómo justificar no haberlo dicho antes? ¡Ya sé, ya sé, siempre se puede uno explicar! ¡Sí, sí. sí, todo lo que queráis! Pues bien... ¿Y si hubiese muerto después, después de sentirlo yo remecerse, como quizá se pudiera adivinar por alguna señal? ¡Un crimen, sí, un crimen el haberme callado! Oíd ya el griterío de la gente...

-Pidió auxilio y no se lo dieron, desgraciado...

-Él sentía llorar, se quiso levantar, no pudo...

-Murió de espanto, le saltó el corazón al sentirse bajar a la sepultura.

-¡Ahí lo tenéis, con la cara torcida por el esfuerzo!

-¡Y ése que lo sabía, tan campante, ahí sonriendo como un payaso!

-¿Es tonto o qué?

Todo el día, amigos míos, anduve loco de remordimientos. Veía al pobre Bieito arañando las tablas en ese espanto absoluto, más allá de todo consuelo y de toda conformidad, de los enterrados en vida. Llegó a parecerme que todos leían en mis ojos adormilados y lejanos la obsesión del delito.

Y allá por la alta noche -no lo pude evitar- me fui camino del camposanto, con la solapa subida, al arrimo de los muros.

Llegué. El cerco por un lado era bajo: unas piedras mal puestas sujetas por hiedras y zarzas. Lo salté y fui derecho al lugar... Me eché en el suelo, arrimé la oreja, y pronto lo que oí me heló la sangre. En el seno de la tierra unas uñas desesperadas arañaban las tablas. ¿Arañaban? No sé, no sé. Allí cerca había una azada... Iba ya hacia ella cuando quedé perplejo. Por el camino que pasa junto al camposanto se sentían pasos y rumor de habla. Venía gente. Entonces sí que sería absurda, loca, mi presencia allí, a aquellas horas y con una azada en la mano.

¿Iba a decir que lo había dejado enterrar sabiendo que estaba vivo?

Y huí con la solapa subida, pegándome a los muros.

La luna era llena y los perros ladraban a lo lejos.

FIN

 Rafael Dieste

06 Sep 2011

Biblioteca Digital Ciudad Seva

O grito do Morumbi




SÃO PAULO - Cerca de 2.500 pessoas se reuniram na praça Vinicius de Moraes, em frente ao palácio do governo do Estado, no Morumbi, para protestar no fim de semana contra a violência e clamar por segurança. Foi provavelmente o maior ato público (e talvez o primeiro) patrocinado pelos moradores dessa parte rica da cidade.
O Morumbi se consolidou como bairro nobre -ou bairro "mais esnobe"- de São Paulo entre o final de 1960 e o início de 1970. Foi para lá que correu uma certa elite, a "elite do Milagre", fugindo do convívio urbano e dos problemas da cidade.
Com seus palacetes escondidos atrás de muros altíssimos, fortalezas de morar, o bairro se desenhou como sintoma e reação à inviabilidade da vida civilizada em São Paulo. O sonho do exclusivismo, da ostentação e da segregação social tinha naquela arquitetura de novo-rico, ao mesmo tempo monumental e sombria, a sua materialização.
É até irônico que a primeira residência do bairro tenha sido a Casa de Vidro, projetada por Lina Bo Bardi no início dos anos 1950 -um marco da arquitetura moderna paulistana e da sua ambição de se integrar simbioticamente à natureza. A evolução do Morumbi pós-1970 tratou de moer essa pequena utopia privada e outras ilusões.
O fato é que o bairro também já deixou faz tempo de ser a ilha da fantasia do novo-riquismo paulistano. A cidade real, com suas tensões e mazelas, o engolfou em poucas décadas: o trânsito local é muito ruim, a região foi povoada por favelas, as ruas sinuosas onde se enfileiram mansões à venda parecem mais inóspitas do que pacatas.
Muito longe de estar entre os lugares mais violentos da cidade, o Morumbi também não está no topo dos mais seguros. Até julho, registrou mais roubos de carros e roubos em geral do que Pinheiros e Perdizes, para citar dois exemplos.
A ascensão e a decadência histórica do bairro -à luz daquilo que aspirava- não deixam de ser um retrato do progresso à paulistana.


FERNANDO DE BARROS E SILVA - 31 Aug 2011 

Entre ser feliz e ser livre




Dizem que ainda vai chover muito no Sul e fazer frio até outubro. Meleca. O jeito é se conformar tendo um bom livro nas mãos, como o delicioso Casados com Paris, de Paula McLain, que narra, numa biografia romanceada, como foi o primeiro casamento de Ernest Hemingway. Ele tinha 21 anos e sonhava em ser um escritor famoso quando conheceu Hadley Richardson, de 28, que só desejava viver um grande amor. Eram os efervescentes anos 20, pós-Primeira Guerra.

Ambos viviam sonorizados pelo jazz, tendo como amigos Gertrude Stein e o casal Fitzgerald, e driblavam a lei seca com litros de uísque, vinho e absinto. O espírito é parecido com o do último filme de Woody Allen, mas o livro vai bem mais fundo no registro de época. Um prosa escrita em tom de pileque, com direito a uma ressaca braba no final.

Hemingway era, ele próprio, um personagem fascinante: trazia à tona as contradições mais secretas do ser humano. Sensível e rude ao mesmo tempo, demonstrava ser um homem com múltiplos talentos, menos o de se adaptar a uma felicidade de butique. Corria o mundo atrás de seus sonhos, e, não os encontrando, empacotava suas coisas e voltava ao ponto de origem, até que a próxima aventura o chamasse.

Amava os amigos, a bebida, o sexo oposto, a literatura e as touradas, não necessariamente nessa ordem: aliás, sem ordem alguma. Ele próprio era um animal belo, viril e destemido diante de uma arena perplexa. Havia sobrevivido a uma guerra que tentara lhe roubar a alma. Aprendera a se defender mesmo quando não era atacado.

Hadley acompanhava esse ritmo entre encantada e assustada. Não era fácil ser mulher de um homem que vivia aumentando as apostas: sentir mais, arriscar mais. Não fosse assim, seria a morte por indignidade, como ele definia a resignação. Logo, sua primeira esposa viveu no melhor dos mundos e no pior, quase simultaneamente.

O livro é narrado por ela, Hadley. É comovente ver sua luta interna para manter um casamento razoavelmente dentro dos padrões sem com isso podar o homem para o qual a felicidade não era um valor absoluto, mas a liberdade, sim. Hemingway nunca teve dúvida de que ser livre era bem mais necessário e menos complicado do que ser feliz.

Fácil para quem vivencia essa liberdade, difícil para quem tem que engoli-la. Hadley era tão encantadora e especial quanto Hemingway, ainda que sob outro ponto de vista. E é esse embate emocional que o livro narra de forma adorável e ao mesmo tempo angustiante: um homem que segue lutando para não entregar sua alma em nome das conveniências, e uma mulher que também não abre mão da sua, apesar das perdas que vier a sofrer.

Quem ganha é o leitor.

 MARTHA MEDEIROS -  31 Aug 2011 


Cafezinhos e parábolas




Visitei uma grande empresa no Rio Grande do Sul. Palestrei, aprendi e descobri. Sinto-me feliz ao ser recebido em Manaus do mesmo modo com que sou acolhido no extremo sul do Brasil. Na minha primeira vida, quando estudada sociedades tribais brasileiras, ficava abismado quando, nos mais humildes lares sertanejos e mesmo entre alguns indígenas, a conversa era interrompida em nome de um cafezinho hiperdoce com a seguinte observação: que não reparasse na xícara nem no bule - eram de pobre - mas tomasse a bebida feita com gosto e amizade. O cafezinho é a prova de hospitalidade mais pungente da nossa sociedade. Ele é também o obséquio mais trocado entre pessoas no Brasil.

Nesta ultramoderna empresa do Sul não foi exceção. Cheguei e, ato continuo, ofereceram-me um cafezinho fresco e quente, que tomei com o sentimento de estar usufruindo algo que faz o brasil, Brasil. O calor do café forte e doce sinaliza o afeto de quem o oferece. O doce tira do negrume da bebida o seu ar de mistério, dando-lhe o toque de inocência característico das coisas benévolas. O amor e a compaixão são doces como doces são a compreensão, a paz e a concórdia.

Na friorenta manhã dia seguinte, vou para o aeroporto muito cedo. Sou o primeiro a chegar. Meu pai, Renato, fazia o mesmo. Ele nos obrigava a sair de casa e seguir para as rodoviárias e estações de trem, quando viajávamos de Juiz de Fora e São João Nepomuceno para Niterói, nas férias de verão, muitas horas antes da partida. Ficávamos, meus irmãos e eu, brincando entre as malas, enquanto papai bufava de nervoso, olhando o seu relógio Omega de ouro ou acertando o seu chapéu que, como dizia meu amigo Maurício Macedo, dava-lhe um ar de detetive de cinema.

No espaço público administrado pela Agência Nacional de Aviação Civil, fiquei a experimentar contrastes. O aeroporto é um mero nome, pois ele nada tem a ver com a modernidade dos aviões que despejam no seu espaço ridiculamente pequeno, dotado de algumas cadeiras desconfortáveis, um banheiro pífio e uma sala de embarque minúscula e sem forro, centenas de passageiros famintos (que como condenados comem uma sacolinha de biscoitos com gosto de creme de barbear), aturdidos pelo confinamento e pela ineficiência vergonhosa do lugar. Como tenho o tempo do pai, observo a chegada dos passageiros morrendo de frio.

Numa sala de espera sem forro e com poucas cadeiras, tenho uma boa visão da pista e dos empregados que carregam malas e pacotes. Tudo realizado a braço - os carrinhos sendo empurrados pelos peões tal como faziam os escravos de um Brasil que continua tão presente quanto o meu iPhone que desligo. O que testemunho, protegido pelos vidros, é o trabalho desses mesmos escravos fazendo seu velho trabalho braçal em contraste com o moderno pássaro voador que estava para pousar vindo de fora e do céu.

Pavoroso e exemplar contraste entre a esfera privada onde tudo correu perfeitamente bem e a pública onde o tal "Estado" faz, mais uma vez, prova de um estilo de gerenciamento emperrado, partidarizado, sectário, ineficiente e, sobretudo, corrupto. Onde foram parar as tais "verbas" dos tais "planos" e "projetos" que são parte destes governos lulopetistas? Somem pelo ralo dos laços de partido, família e amizade que sempre consumiram a esfera do poder público à brasileira...

Milan Kundera conta o seguinte: uma comunista militante é julgada por crimes que não havia cometido. Sustentou sob tortura a sua verdade demonstrando uma extraordinária coragem diante dos seus algozes. Condenada, cogita-se sobre seu enforcamento mas, mesmo numa Praga stalinista, há misericórdia e ela segue para a prisão perpétua. Findo o comunismo, seu caso é revisto e, depois de 15 anos, ela sai da prisão e vai morar com o filho com quem, por toda a cruel separação, tem um apego desmesurado. Um dia, Kundera visita sua casa e a encontra chorando copiosamente. Apesar de ter 20 anos, ele é preguiçoso, diz. Kundera argumenta que esses são problemas menores. Mas o filho, indignado, defende a mãe com veemência: ela está certa, sou egoísta e desonesto, espero mudar... Moral da história: o que o partido jamais havia conseguido fazer com a mãe, ela realizou com o filho.

Num país em forma de presunto, grassa a praga de um estilo peculiar de corrupção. Não se trata de roubar somente pela "mais-valia" ou pelo engodo do mercado e da ganância. Isso também ocorre no país de Jambom, mas aqui o que explode como bombinha de São João é algo paradoxal: o roubo desmedido dos dinheiros públicos realizado precisa e legalmente pelas autoridades eleitas para gerenciar esses recursos.

Trata-se do assalto ao Estado pelos seus funcionários mais graduados, que loteiam suas repartições em nome de uma antigovernabilidade, pois como governar com os escândalos e as suspeitas de enriquecimento ilícito de ministros? Quando eu era inocente e de esquerda, a nossa luta era contra o "feudalismo brasileiro" encarnado pelos "coronéis". Com o PT veio a esperança de liquidar a corrupção. Afinal, eu testemunhei o então presidente do PT, José Genoino, repetir com orgulho: "O PT não rouba e não deixa roubar!" Era, vejo bem hoje, apenas um belo mantra que se desfez no mensalão e no que se seguiu.

Moral da história: o que a "direita" jamais havia conseguido fazer no Brasil - coalizão, distribuição de favores, aparelhamento do estado, elos imorais entre instituições e pessoas, populismo em nome dos pobres -, a "esquerda", acomodada no poder, institucionalizou.


- Roberto Damatta.31 Aug 2011 

O Brasil é um bonde




Andei muito de bonde e a recomendação peremptória dos meus pais era que não saltasse do bonde andando. Confesso que no curso de minha vida saltei muito pouco de bonde andando, mas, em compensação, peguei muito bonde errado quando, por exemplo, escolhi ser professor e pesquisador. Mas ninguém é tão perfeito como os bondes do Rio de Janeiro ou seus parques de diversões fazem prova porque, entre outras coisas, eles ainda não têm esses "marcos regulatórios", que são o sonho dos hipócritas de plantão.

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Um amigo de infância perdeu um pé ao saltar de um bonde andando, tal como um dos meus mentores perdeu o casamento ao derrapar e colidir com um ônibus quando disse à esposa que estava fazendo uma pesquisa numa biblioteca, mas, na verdade, voltava repleto de culpa de uma visita a uma ruiva supergostosa que atendia pelo nome revelador - eu juro que isso é verdade - de Tara.

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Hoje vivemos num Brasil sob o signo de Mercúrio a divindade do comércio e do dinamismo. Aquele que, sendo mediador, faz as trocas, cruza os ares e mares rapidamente pois, sendo alado, tem uma velocidade (esse símbolo da ganância e da transgressão que não pode esperar ou sabe o que significa suficiência) e engloba os mais básicos princípios do bom-senso.

Aviso aos governantes: evitem os meios de locomoção muito eficientes, sobretudo os helicópteros, mas evitem também os bondes e as montanhas-russas das quais vocês, políticos profissionais, são contumazes usuários.

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O Brasil é um bonde. Esse bonde que se despentelhou numa ladeira do bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, vitimando passageiros e o seu motorneiro que, sendo o mais humilde, será o culpado. Tal como foi o engenheiro do parque de diversões que matou outros cidadãos. O jogo do poder à brasileira consiste nos poderosos teorizarem sobre suas responsabilidades, isentando-se a si mesmo e seus asseclas. A tal faxina (todos já entenderam) é sempre para os outros. Os donos do poder (à brasileira) estão isentos de culpa.

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Estamos fartos de ouvir os donos dos ministérios ou secretarias onde ocorrem acidentes ou delitos dizerem que não têm nada com os fatos. Não acuso ninguém. Acredito sinceramente que todos são tão honestos como Pedro Malazartes. Chamo atenção, apenas, que enquanto não tivermos a coragem de processarmos em alguns milhões de reais os nossos governantes e o próprio Estado, vamos continuar - desculpem os mais sensíveis e os mais frescos - fodidos! O nosso marco regulatório é o processo. O deles é a hierarquia que livra os poderosos dos deveres que também fazem parte do poder.

Se os caras ganham milhões à custa do nosso trabalho, nada mais justo ou lógico que haja alguma relação de responsabilidade entre nós e eles. Indenizações não trazem meu filho de volta, mas permitem um bom papo com meu amigo Joãozinho Caminhador, um velho amigo escocês que me ouve e conforta, em vez tentar tapar o sol com a peneira ou produzir essas desculpas esfarrapadas ou, pior ainda, esses surtos de indignação de bandidos especializados em roubar o que é nosso.

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Uma outra saída seria sugerir à austera presidenta, que herdou a hóstia consagrada de honestidade e eficiência do governo Lula, que criasse um ministério anticorrupção, inspirada nos nossos irmãozinhos de carma indianos. Um órgão destinado e examinar contratos, acordos, aumento de patrimônio, nomeações, indicações - mas sobretudo contratos e inocentes exonerações. Tal instituição, livre dos constrangimentos partidários, mas engajada e constrangida pelo dever de apurar e forçar um mínimo de sinceridade, teria o dever de conferir por que os governantes sempre aumentam seus patrimônios 200 vezes em dois anos e outros, como este cronista bastardo que vos fala, não conseguem - PQP! - ir além de uma vida confortável, mas pobre se a compararmos à grande maioria dos elegantes quadrilheiros que passaram pela tal administração pública.

Eu sei que a culpa é minha. Quem mandou ser professor e antropólogo proxeneta de índios, como dizia o Darcy Ribeiro, e não um antropófago ou político comedor de recursos públicos? Quem mandou ser descrente e não vender a alma para algum partido ou ideologia?

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Esse é o meu bo(n)de. E o do Brasil? Bem, o bonde do Brasil segue em dois trilhos. O primeiro, é acreditar que os governos podem mesmo contratar objetiva e impessoalmente num país no qual ser compadre e amigo é mais importante do que ser cidadão. O segundo é verificar como o poder corre ligado (bond, em inglês) a trilhos sem freios e sem oposição. A prova é a foto estilo bonde do ex-presidente Lula, da presidenta Dilma e do maestro e guerreiro (diria mesmo um São Jorge) do Brasil, Zé Dirceu, emoldurando os dois numa imagem que causa estupefação, mas que diz tudo do momento brasileiro. Ele, de roupa branca; ela com uma blusa vermelha e o mestre de duas vidas e falas vestido do negro dos cisnes excepcionais. Dos seres acima do bem e do mal que são o símbolo mais perfeito do bonde - digo, do governo - que hoje temos no Brasil.


 - Roberto Damatta. 07 Sep 2011 

Morte de um sonho




Oque restou daquela geração que queria derrubar a ditadura e transformar o país pelas armas? O que foi feito do projeto utópico daqueles jovens que acabaram passando os melhores anos de suas vidas na prisão ou no exílio? Valeu a pena? Há várias respostas para essas perguntas, e uma, em forma de tragédia, está no documentário franco-brasileiro “Diário de uma busca”, que ficou em cartaz durante dez semanas em Paris e agora está em exibição no Rio. Para o documentarista João Moreira Salles, é a “melhor crônica do exílio”. Talvez seja também o mais corajoso testemunho sobre um militante dos chamados anos de chumbo.

Saga de uma filha tentando desvendar a morte misteriosa do pai, a obra autobiográfica da gaúcha Flávia Castro, mesmo sem pretender ser um filme político, revela muito da política de países que entre os anos 60 e 70 estavam sob governos ditatoriais, como, além do Brasil, Chile e Argentina. Hoje com 45 anos, a diretora viaja em busca também de sua infância e adolescência, vividas ora em Porto Alegre, ora em Santiago, Buenos Aires, Caracas e Paris.

Em 1984, depois de 20 anos exilada, sua família retorna a Porto Alegre e aí acontece o que motivou o filme: uma morte sem explicação. O pai, o ex-jornalista Celso de Castro, e um amigo invadem armados o apartamento de um suposto ex-oficial nazista e são encontrados mortos. De acordo com uma inverossímil versão da polícia, Celso teria matado o amigo e se suicidado ao ver o prédio cercado por policiais.

O que Celso foi fazer de fato naquele apartamento nem Flavia descobriu nos oitoanos em que pesquisou essa intrincada trama, cheia de suspense e que mais parece o enredo de um romance policial. Apesar das inúmeras entrevistas com policiais encarregados do inquérito, jornalistas, familiares, amigos e colegas de militância do pai, ela não chega a uma conclusão. Os depoimentos são por demais contraditórios, embora um, o do legista, seja taxativo: não houve suicídio. Sem medo de encontrar a verdade, Flavia não foge de nenhuma hipótese, por menos nobre e mais incômoda que fosse, como a de que os dois amigos teriam invadido o apartamento para “fazer um ganho” (nos últimos anos, Celso era consumidor de cocaína).

Mesmo sem esclarecer o mistério da morte, o documentário, que não é de resposta, mas de questionamentos e procura, não perde o interesse nem a tensão, e a triste história de um fracasso pessoal transformado em tragédia funciona como uma quase metáfora da falência do projeto político maior, o da luta armada, que, como se sabe, acabou também degenerando no final. O sonho virou pesadelo.

ZUENIR VENTURA - 07 Sep 2011 

O avúnculo e o vernáculo


   
Pegar uma linha indicaria nada mais do que segurá-la. Mas pegar da linha implica que ela será utilizada


Há algumas semanas, em uma troca de e-mails com João Ubaldo Ribeiro (infelizmente não costumo usufruir de sua inteligência nesse contexto privado: a troca se deu por conta de uma entrevista que eu faria com ele), o autor de “Viva o povo brasileiro” empregou a palavra “avúnculo”, que me obrigou a visitar “o pai dos burros”. Eis uma tarefa que cumpro com prazer na língua portuguesa; mas, e esse é o tema dessa coluna, como leitor de literatura brasileira contemporânea, é rara a oportunidade de uma tal visita. Diferente do que se passou com nossos escritores desde o século XIX, e radicalmente no modernismo de 1922, os escritores
contemporâneos não têm, em certo sentido, uma relação forte com o idioma vernáculo.

Apresso-me a esclarecer a última frase. É claro que todo escritor merecedor desse nome (os Chalitas não valem) tem uma relação forte com a sua língua. O grande filólogo Evanildo Bechara, autor da clássica “Moderna gramática portuguesa”, costuma dar a seus alunos um exemplo iluminador da intimidade de um escritor com sua língua: “Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser”, lê-se no conto “Um apólogo (A agulha e a linha)”, de Machado de Assis. Pegar uma linha indicaria nada mais do que segurá-la. Mas pegar da linha implica que ela será utilizada. “É impressionante como os bons autores aproveitam todas as faculdades da língua”, observa Bechara (retirei essa passagem do brilhante e comovente perfil de Bechara publicado na revista “Piauí”). A relação que os escritores brasileiros cont e m p o r â n e o s não têm com a língua portuguesa é, portanto, de o u t r a o r d e m . Não costuma haver, entre eles, grande curiosidade lexical; acusações recíprocas, outrora frequentes, de galicismo, anglicismo ou barbarismo são completamente ausentes de suas conversas; não costumo ler, em suas eventuais entrevistas, passagens que evidenciem um conhecimento aprofundado da gramática portuguesa. Durante o período de transição para a nova ortografia, pós-reforma, não me lembro de ler muitos escritores manifestando suas posições (houve exceções, como o poeta Alexei Bueno, que me enviou um veemente — e justo — manifesto contra a retirada do acento agudo em “pára”, do verbo parar; mas Alexei é, sob muitos aspectos, extemporâneo, e não por acaso um grande leitor de Euclides da Cunha).

Essa ausência não é, no meu entender, uma perda, mas antes sintoma de uma conquista (de resto, óbvia). A relação dos escritores brasileiros românticos, modernistas e regionalistas com a sua língua era determinada pela questão identitária da nação, questão premente, como se sabe, para a arte e o pensamento de nosso jovem e colonizado país. Mas essa questão identitária se tornou esvaziada por superação: depois de Machado (que equacionou o problema como nenhum outro em seu tempo: como no dito espirituoso de
Gibbon, não precisou de camelos para ser árabe), Drummond, Rosa, João Cabral e Clarice, depois da grandeza e singularidade incontestávei desses feitos da língua, já não havia a necessidade, por parte da literatura brasileira, de se colocar a questão de sua própria originalidade.

Com efeito, o concretismo já é um movimento estético e teórico absolutamente destituído dessa preocupação; para o concretismo, já não se trata de pensar a identidade e o idioma nacionais, de fundálos em traços típicos da formação social do país, mas sim de expor amplamente a literatura brasileira ao contato das literaturas de diversas tradições, a fim de, por meio de um choque de cosmopolitismo, exigir que ela esteja à altura das experimentações e reflexões contemporâneas. É por isso que a partir desse momento o interesse dos escritores brasileiros pela língua portuguesa praticada no Brasil — isto é, pela língua como instrumento de colonização e, ao mesmo tempo (pelas mudanças que a formação social brasileira lhe infligiu),
como atestado de identidade própria — desaparece q u a s e q u e completamente. Gonçalves Dias escreveu um léxico do tupi; Monteiro Lobato participava ativa e furiosamente de questões relativas a reformas ortográficas e estabelecimento da norma culta; Euclides da Cunha e s c re v e u e s s e monumento da língua portuguesa que é “Os sertões”; Mário de Andrade projetou a escrita de uma “Gramatiquinha da fala brasileira” — enquanto hoje o pensamento sobre a língua costuma restringir-se a gramáticos e filólogos, e esses não costumam sequer fazer parte do rol de leituras dos escritores contemporâneos.

Há, é claro, exceções. Talvez a mais notável entre elas, nestes últimos 30 anos, seja o romance “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro (não por acaso citado por mim na abertura). João é formado no ethos sessentista, quando a questão Brasil teve seu último momento intenso e coletivo de formulação (Glauber, Zé Celso, o tropicalismo etc. etc.). Do mesmo modo, Caetano Veloso costuma se pronunciar sobre questões relativas à língua portuguesa, e José Miguel Wisnik discutiu, aqui nesse espaço, a recente polêmica envolvendo um livro didático adotado pelo MEC (que ficou conhecida como o caso “nós pega os peixe”).

Para a minha geração, contudo, o problema do Brasil, assim como da língua portuguesa aqui praticada, é antes de destino do que de origem. Nossa singularidade está dada, e só quer descartá-la quem é ruim da cabeça — ou doente do pé.

Francisco Bosco. 07 Sep 2011