Pegar uma linha indicaria nada mais do que segurá-la. Mas
pegar da linha implica que ela será utilizada
Há algumas semanas, em uma troca de e-mails com João Ubaldo
Ribeiro (infelizmente não costumo usufruir de sua inteligência nesse contexto
privado: a troca se deu por conta de uma entrevista que eu faria com ele), o
autor de “Viva o povo brasileiro” empregou a palavra “avúnculo”, que me obrigou
a visitar “o pai dos burros”. Eis uma tarefa que cumpro com prazer na língua
portuguesa; mas, e esse é o tema dessa coluna, como leitor de literatura
brasileira contemporânea, é rara a oportunidade de uma tal visita. Diferente do
que se passou com nossos escritores desde o século XIX, e radicalmente no
modernismo de 1922, os escritores
contemporâneos não têm, em certo sentido, uma relação forte
com o idioma vernáculo.
Apresso-me a esclarecer a última frase. É claro que todo
escritor merecedor desse nome (os Chalitas não valem) tem uma relação forte com
a sua língua. O grande filólogo Evanildo Bechara, autor da clássica “Moderna
gramática portuguesa”, costuma dar a seus alunos um exemplo iluminador da
intimidade de um escritor com sua língua: “Chegou a costureira, pegou do pano,
pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser”,
lê-se no conto “Um apólogo (A agulha e a linha)”, de Machado de Assis. Pegar
uma linha indicaria nada mais do que segurá-la. Mas pegar da linha implica que
ela será utilizada. “É impressionante como os bons autores aproveitam todas as
faculdades da língua”, observa Bechara (retirei essa passagem do brilhante e
comovente perfil de Bechara publicado na revista “Piauí”). A relação que os
escritores brasileiros cont e m p o r â n e o s não têm com a língua portuguesa
é, portanto, de o u t r a o r d e m . Não costuma haver, entre eles, grande
curiosidade lexical; acusações recíprocas, outrora frequentes, de galicismo,
anglicismo ou barbarismo são completamente ausentes de suas conversas; não
costumo ler, em suas eventuais entrevistas, passagens que evidenciem um
conhecimento aprofundado da gramática portuguesa. Durante o período de
transição para a nova ortografia, pós-reforma, não me lembro de ler muitos
escritores manifestando suas posições (houve exceções, como o poeta Alexei
Bueno, que me enviou um veemente — e justo — manifesto contra a retirada do
acento agudo em “pára”, do verbo parar; mas Alexei é, sob muitos aspectos, extemporâneo,
e não por acaso um grande leitor de Euclides da Cunha).
Essa ausência não é, no meu entender, uma perda, mas antes
sintoma de uma conquista (de resto, óbvia). A relação dos escritores
brasileiros românticos, modernistas e regionalistas com a sua língua era
determinada pela questão identitária da nação, questão premente, como se sabe,
para a arte e o pensamento de nosso jovem e colonizado país. Mas essa questão
identitária se tornou esvaziada por superação: depois de Machado (que
equacionou o problema como nenhum outro em seu tempo: como no dito espirituoso
de
Gibbon, não precisou de camelos para ser árabe), Drummond,
Rosa, João Cabral e Clarice, depois da grandeza e singularidade incontestávei
desses feitos da língua, já não havia a necessidade, por parte da literatura
brasileira, de se colocar a questão de sua própria originalidade.
Com efeito, o concretismo já é um movimento estético e
teórico absolutamente destituído dessa preocupação; para o concretismo, já não
se trata de pensar a identidade e o idioma nacionais, de fundálos em traços
típicos da formação social do país, mas sim de expor amplamente a literatura
brasileira ao contato das literaturas de diversas tradições, a fim de, por meio
de um choque de cosmopolitismo, exigir que ela esteja à altura das
experimentações e reflexões contemporâneas. É por isso que a partir desse
momento o interesse dos escritores brasileiros pela língua portuguesa praticada
no Brasil — isto é, pela língua como instrumento de colonização e, ao mesmo
tempo (pelas mudanças que a formação social brasileira lhe infligiu),
como atestado de identidade própria — desaparece q u a s e q
u e completamente. Gonçalves Dias escreveu um léxico do tupi; Monteiro Lobato
participava ativa e furiosamente de questões relativas a reformas ortográficas
e estabelecimento da norma culta; Euclides da Cunha e s c re v e u e s s e
monumento da língua portuguesa que é “Os sertões”; Mário de Andrade projetou a
escrita de uma “Gramatiquinha da fala brasileira” — enquanto hoje o pensamento sobre
a língua costuma restringir-se a gramáticos e filólogos, e esses não costumam
sequer fazer parte do rol de leituras dos escritores contemporâneos.
Há, é claro, exceções. Talvez a mais notável entre elas,
nestes últimos 30 anos, seja o romance “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo
Ribeiro (não por acaso citado por mim na abertura). João é formado no ethos
sessentista, quando a questão Brasil teve seu último momento intenso e coletivo
de formulação (Glauber, Zé Celso, o tropicalismo etc. etc.). Do mesmo modo,
Caetano Veloso costuma se pronunciar sobre questões relativas à língua
portuguesa, e José Miguel Wisnik discutiu, aqui nesse espaço, a recente
polêmica envolvendo um livro didático adotado pelo MEC (que ficou conhecida
como o caso “nós pega os peixe”).
Para a minha geração, contudo, o problema do Brasil, assim
como da língua portuguesa aqui praticada, é antes de destino do que de origem.
Nossa singularidade está dada, e só quer descartá-la quem é ruim da cabeça — ou
doente do pé.
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