domingo, 1 de julho de 2012

Mulher e Gata

Paul Verlaine

Ela brincava com a gata
E era admirável ver as duas,
A branca mão e a branca pata,
Brincando à noite, na penumbra.

Ela escondia – a celerada ! -
Sob as mitenes de fio escuro
As assassinas unhas de ágata,
Claras, cortantes, como um gume.

Fingia-se a outra adoçada
E retraía a garra afiada,
Mas o diabo nada perdia…

E no toucador retinia
O som de aéreas gargalhadas
E quatro pontos fosforesciam

As conchas

Paul Verlaine

Cada concha, no interior
dessa gruta onde a gente se ama,
tem o seu especial sabor.

Uma, a púrpura tem da chama
roubada ao nosso coração,
quando o desejo nos inflama.

Finge esta a tua lassidão
se me vês, pálida e irritada,
a olhar-te cheio de intenção.

Nesta, a tua orelha é imitada
com graça; e aquela copiou
tua nuca rósea e torneada.

Uma, porém, me perturbou.


(Tradução de Onestaldo de Pennafort Fragonard)
LE SPLEEN DE PARIS

Une chambre qui ressemble à une rêverie, une chambre véritablement spirituelle, où l’atmosphère stagnante est légèrement teintée de rose et de bleu.
L’âme y prend un bain de paresse, aromatisé par le regret et le désir. – C’est quelque chose de crépusculaire, de bleuâtre et de rosâtre; un rêve de volupté pendant une éclipse.
Les meubles ont des formes allongées, prostrées, alanguies. Les meubles ont l’air de rêver; on les dirait doués d’une vie somnambulique, comme le végétal et le minéral. Les étoffes parlent une langue muette, comme les fleurs, comme les ciels, comme les soleils couchants.
Sur les murs nulle abomination artistique. Relativement au rêve pur, à l’impression non analysée, l’art défini, l’art positif est un blasphème. Ici, tout a la suffisante clarté et la délicieuse obscurité de l’harmonie.
Une senteur infinitésimale du choix le plus exquis, à laquelle se mêle une très légère humidité, nage dans cette atmosphère, où l’esprit sommeillant est bercé par des sensations de serre chaude.
La mousseline pleut abondamment devant les fenêtres et devant le lit; elle s’épanche en cascades neigeuses. Sur ce lit est couchée l’Idole, la souveraine des rêves. Mais comment est-elle ici? Qui l’a amenée? quel pouvoir magique l’a installée sur ce trône de rêverie et de volupté? Qu’importe? la voilà! je la reconnais.
Voilà bien ces yeux dont la flamme traverse le crépuscule; ces subtiles et terribles mirettes, que je reconnais à leur effrayante malice! Elles attirent, elles subjuguent, elles dévorent le regard de l’imprudent qui les contemple. Je les ai souvent étudiées, ces étoiles noires qui commandent la curiosité et l’admiration.
A quel démon bienveillant dois-je d’être ainsi entouré de mystère, de silence, de paix et de parfums? O béatitude! ce que nous nommons généralement la vie, même dans son expansion la plus heureuse, n’a rien de commun avec cette vie suprême dont j’ai maintenant connaissance et que je savoure minute par minute, seconde par seconde!
Non! il n’est plus de minutes, il n’est plus de secondes! Le temps a disparu; c’est l’Eternité qui règne, une éternité de délices!
Mais un coup terrible, lourd, a retenti à la porte, et, comme dans les rêves infernaux, il m’a semblé que je recevais un coup de pioche dans l’estomac.
Et puis un Spectre est entré. C’est un huissier qui vient me torturer au nom de la loi; une infâme concubine qui vient crier misère et ajouter les trivialités de sa vie aux douleurs de la mienne; ou bien le saute-ruisseau d’un directeur de journal qui réclame la suite du manuscrit.
La chambre paradisiaque, l’idole, la souveraine des rêves, la Sylphide, comme disait le grand René, toute cette magie a disparu au coup brutal frappé par le Spectre.
Horreur! je me souviens! je me souviens! Oui! ce taudis, ce séjour de l’éternel ennui, est bien le mien. Voici les meubles sots, poudreux, écornés; la cheminée sans flamme et sans braise, souillée de crachats; les tristes fenêtres où la pluie a tracé des sillons dans la poussière; les manuscrits, raturés ou incomplets; l’almanach où le crayon a marqué les dates sinistres!
Et ce parfum d’un autre monde, dont je m’enivrais avec une sensibilité perfectionnée, hélas! il est remplacé par une fétide odeur de tabac mêlée à je ne sais quelle nauséabonde moisissure. On respire ici maintenant le ranci de la désolation.
Dans ce monde étroit, mais si plein de dégoût, un seul objet connu me sourit: la fiole de laudanum; une vieille et terrible amie; comme toutes les amies, hélas! féconde en caresses et en traîtrises.
Oh! oui! Le Temps a reparu; Le Temps règne en souverain maintenant; et avec le hideux vieillard est revenu tout son démoniaque cortège de Souvenirs, de Regrets, de Spasmes, de Peurs, d’Angoisses, de Cauchemars, de Colères et de Névroses.
Je vous assure que les secondes maintenant sont fortement et solennellement accentuées, et chacune, en jaillissant de la pendule, dit: – “Je suis la Vie, l’insupportable, l’implacable Vie!”
Il n’y a qu’une Seconde dans la vie humaine qui ait mission d’annoncer une bonne nouvelle, la bonne nouvelle qui cause à chacun une inexplicable peur.
Oui! le Temps règne; il a repris sa brutale dictature. Et il me pousse, comme si j’étais un boeuf, avec son double aiguillon. – “Et hue donc! bourrique! Sue donc, esclave! Vis donc, damné!”

Charles Baudelaire

O quarto duplo

Um quarto que parece um devaneio, um quarto verdadeiramente espiritual onde a atmosfera estagnante é ligeiramente tingida de rosa e azul.
A alma toma um banho de preguiça, aromatizada pelos pesares e o desejo. É algo de crepuscular, de azulado e de rosado; um sonho de volúpia durante um eclipse.
Os móveis têm as formas alongadas, prostradas, lânguidas. Os móveis têm o ar de que sonham; diríamos dotados de uma vida sonambúlica como um vegetal ou um mineral. Os tecidos falam uma língua muda como as flores, como os céus, como os sóis poentes.
Nas paredes nenhuma abominação artística. Relativamente ao puro sonho, à impressão não analisada, a arte definida, a arte positiva é uma blasfêmia. Aqui tudo tem suficiente clareza e a deliciosa obscuridade da harmonia.
Um aroma infinitesimal da mais original escolha, ao qual se mistura uma levíssima umidade, flutua nessa atmosfera, onde o espírito sonolento é embalado por uma sensação de estufas aquecidas.
A musselina chora abundantemente diante das janelas e diante do leito; ela se derrama em cascatas de neve. Sobre esse leito está deitado o Ídolo, a soberana dos sonhos. Mas como ela está aqui? Quem a trouxe? Que poder mágico instalou-se nesse trono de devaneios e volúpia? Que importa! Ei-la! Eu a reconheço.
São esses olhos cuja flama atravessa o crepúsculo; esses sutis e terríveis olhares que eu reconheço em sua assustadora malícia! Eles atraem, eles subjugam, eles devoram o olhar do imprudente que os contempla. Já estudei muitas vezes essas estrelas negras que comandam a curiosidade e a admiração.
Por qual demônio benevolente devo eu ter sido envolvido assim de mistério, de silêncio, de paz e de perfumes? Ó beatitude! Isso que nós chamamos geralmente de vida, mesmo em sua expansão mais feliz, nada tem de comum com essa vida suprema que, agora, eu conheço e saboreio minuto a minuto, segundo a segundo.
Não! Não há mais minutos, não há mais segundos! O tempo desapareceu; é a Eternidade que reina, uma eternidade de delícias.
Mas uma pancada terrível, fortíssima, ressoou na porta e, como nos sonhos infernais, pareceu-me que recebia um golpe de uma enxada no estômago.
E depois um Espectro entrou. É um oficial de justiça que vem me torturar, em nome da lei; uma infame concubina que vem exibir sua miséria e juntar as trivialidades de sua vida às dores da minha; ou então um jovem secretário de diretor de jornal que vem reclamar a entrega de um manuscrito.
O quarto paradisíaco, o Ídolo, a soberana dos sonhos, a Sílfide, como dizia o grande René, toda aquela magia desapareceu com o golpe disparado pelo Espectro.
Horror! Eu me lembro! Eu me lembro! Sim! Este chiqueiro, este ambiente de eterno desgosto está bem dentro de mim. Vejam os móveis burros, empoeirados, capengas, a lareira sem chamas e sem brasas, suja de escarros, as tristes janelas onde a chuva traçou seus sulcos na poeira; os manuscritos rasurados ou incompletos; o almanaque onde o lápis marcou as datas sinistras!
E esse perfume de um outro mundo, com o qual eu me embriagava com uma sensibilidade aperfeiçoada, ei-lo substituído por fétido odor de tabaco misturado a um mofo nauseabundo. Respira-se aqui, agora, o ranço da desolação.
Nesse mundo estreito, mas tão repleto de desgostos, um único objeto conhecido me sorri: a garrafinha de láudano; uma velha e terrível amiga, como todas as outras. Oh! fecundas em carinho e traições.
Oh! Sim, o Tempo reapareceu, o Tempo reina soberano agora; e com o horroroso velho voltou todo o demoníaco cortejo de Lembranças, de Arrependimentos, de Espasmos, de Medos, de Angústias, de Pesadelos, de Cóleras e de Neuroses.
Eu vos asseguro que os segundos agora são fortemente e solenemente acentuados e cada um saltando do pêndulo diz:
“Eu sou a Vida, a insuportável, a implacável Vida.”
Só há um Segundo na vida humana com a missão de anunciar uma boa nova, a boa nova que causa em cada um de nós um medo inexplicável.
Sim! O Tempo reina, ele retomou sua brutal ditadura. Ele me empurra, como se eu fosse um boi, com seu duplo aguilhão. “Eia Vamos, então, burrico! Sua então, escravo! vive, então, condenado!

LE SPLEEN DE PARIS de Charles Baudelaire

As tentações, ou Eros, Plutus e a Glória

Charles Baudelaire

Dois soberbos Satanases e uma Diabinha não menos extraordinária, na noite passada, subiram a misteriosa escada por onde o Inferno assalta a fraqueza do homem que dorme e comunica-se em segredo com ele. E eles vieram colocar-se gloriosamente diante de mim, em pé como sobre um estrado. Um esplendor sulfuroso emanava desses três personagens que se destacavam do fundo opaco da noite. Eles tinham um ar tão arrogante, tão pleno de dominação, que eu, primeiramente, os tomei, todos os três, por verdadeiros Deuses.
O rosto do primeiro diabo tinha uma sexualidade ambígua e possuía, também, na linha de seu corpo, a flacidez dos antigos Bacos. Seus belos olhos, lânguidos, de cor tenebrosa e indecisa, pareciam violetas carregadas ainda de pesados choros da tempestade e seus lábios entreabertos como defumadores quentes, de onde exalava o bom cheiro de uma perfumaria; e a cada vez que ele suspirava, insetos almiscarados se iluminavam, esvoaçando aos ardores de sua respiração.
Em volta de sua túnica de púrpura como se fosse um cinto, enlaçava sua cintura uma serpente cintilante que, com a cabeça levantada, virava para ele seus olhos de brasas, langorosamente. Nesse cinto vivo estavam pendurados, alternando com frascos cheios de licores sinistros, facas brilhantes e instrumentos de cirurgia. Em sua mão direita ele tinha um frasco cujo conteúdo era de um vermelho luminoso e que tinha como etiqueta essas palavras bizarras: Bebam, esse é o meu sangue, um perfeito cordial”; na esquerda, um violino que lhe servia, sem dúvida, para cantar seus prazeres, suas dores e para difundir o contágio de sua loucura nas noites de sabá.
Os tornozelos delicados arrastavam alguns anéis de uma corrente de ouro rompida e, quando o incômodo que resultava forçava-o a baixar o olhar para o chão, ele, vaidosamente, contemplava as unhas dos pés, brilhantes e polidas como pedras bem trabalhadas.
Fitou-me com seus olhos inconsolavelmente desolados, de onde escorria insidiosa embriaguez, e me disse com sua voz cantante: “Se quiseres, se quiseres, eu te farei o Senhor das almas e serás o mestre da matéria viva mais ainda que um escultor pode ser do barro, e conhecerás o prazer sempre renascente, incessantemente, e sair de ti mesmo para te esqueceres em outro e atrair outras almas ate se confundirem com a tua.”
Respondi-lhe: “Muito obrigado! Eu não teria o que fazer com esses seres de pacotilha que, sem dúvida, não valem mais do que o meu pobre eu. É verdade que tenho certa vergonha de minhas lembranças, mas não quero esquecer nada. E, mesmo quando eu não te conhecia, velho monstro, tua misteriosa cutelaria, teus equívocos frascos, as correntes que embaraçam teus pés são os símbolos que explicam claramente as inconveniências de tua amizade. Guarda teus presentes.”
O segundo diabo não tinha aquele ar ao mesmo tempo trágico e sorridente, nem aquelas belas maneiras insinuantes, nem a beleza delicada e perfumada. Era um vasto homem de cara grande sem olhos, cujo ventre pesado pendia sobre as coxas e cuja pele do corpo era dourada e ilustrada, como uma tatuagem, com uma multidão de pequenas figuras moventes representando as numerosas formas da miséria universal. Havia pequenos homens emagrecidos que se penduravam, voluntariamente, a um prego; e, ainda, pequenos gnomos, disformes, magros, cujos olhos suplicantes reclamavam esmolas mais bem ainda que suas mãos trêmulas; e depois as velhas mães levando seus abortos pendurados em seus mamilos extenuados. E muitos outros mais.
O grande Satanás batia com seu próprio punho no ventre imenso de onde provinha um tilintar de metais que terminava em um vago gemido feito de numerosas vozes humanas. E ele ria mostrando, sem qualquer pudor, seus dentes estragados em um riso imbecil, como o de certos homens em todos os países, depois de jantarem bem.
E ele me disse: “Posso te dar o que tudo consegue, o que vale tudo, o que tudo substitui!” E bateu em seu monstruoso ventre, cujo eco sonoro fez como que o comentário de sua fala grosseira.
Virei-me, com nojo, e respondi: “Não tenho necessidade, para minha alegria, da miséria de ninguém; e não quero uma riqueza entristecida como um papel pintado com todas as desgraças representadas em tua pele.”
Quanto à Diabinha, eu mentiria se não confessasse que, à primeira vista, encontrei nela um bizarro charme. Para definir esse charme não saberia compará-lo a nada melhor do que ao de certas mulheres muito bonitas que, apesar do tempo vivido, não envelhecem e cuja beleza guarda a magia penetrante das ruínas. Ela tinha um ar imperioso, desajeitado e seus olhos batidos continham uma força fascinante, O que me tocou mais foi o mistério de sua voz, na qual eu reencontrei a lembrança dos mais deliciosos contraiu e, também, um pouco da rouquidão das gargantas incessantemente lavadas pelas aguardentes.
“Queres conhecer meu poder?”, disse a falsa deusa com sua voz charmosa e paradoxal. “Escuta.”
E ela então botou na boca uma gigantesca trombeta, cheia de fitas, como uma flauta antiga, com manchetes de todos os jornais do universo e, através dessa trombeta, gritou meu nome, que se espalhou assim pelo espaço com o barulho de cem mil trovões e voltou para mim repercutido pelo eco do mais longínquo planeta.
“Diabo!”, disse eu, já meio subjugado. “Vejam que precioso.” Mas examinando mais atentamente a sedutora virago, pareceu-me que a reconhecia vagamente por tê-la visto bebendo e comemorando com uns pândegos de minhas relações, e o som rouco do cobre trazia a meus ouvidos não sei que lembranças de uma trombeta prostituída.
Eu respondi, também, com todo o meu desdém: “Vai-te. Eu não fui feito para casar com a amante de certas pessoas cujo nome não quero pronunciar.
Certamente, tinha o direito de ficar orgulhoso da minha corajosa abnegação. Mas, infelizmente, acordei e todas as forças me abandonaram. “Na verdade”, disse-me eu, “era preciso que eu estivesse pesadamente adormecido para mostrar tais escrúpulos. Ah! se eles pudessem voltar quando eu estivesse acordado, eu não seria tão delicado!”
E eu os invoquei em altos brados, suplicando-lhes que me perdoassem, oferecendo-lhes me desonrar tantas vezes quanto necessário para merecer seus favores; mas eu os havia ofendido gravemente, pois nunca mais voltaram.

“Pequenos Poemas em Prosa” (Le Spleen de Paris) de Charles Baudelaire

In a silent way

para Miles Davis


Folhas soltas
idéias-folhas
poucas
nessa sala
a fumaça
vaza
embaça
a vidraça
dessa quase manhã
um silêncio
se instala
na casa vazia
na varanda
só a mais solta
idéia de vazio
(concha onde
pérola alguma
se esconde)
ao invés
dias e dias se passam
sem nenhuma
mais completa
idéia de vazio:
um sol pousa
desliza, rebrilha
em cada folha

Rodrigo Garcia Lopes