Finalmente conseguiram prender Julian
Assange. Reproduzo, sem tirar nem pôr, o texto que escrevi em 2010, n'O
Biscoito Fino e a Massa, quando começaram a caçá-lo.
pela
superpotência militar, por seus estados satélite e pelas principais polícias do
mundo. É um australiano cuja atividade na internet catupultou-o de volta à vida
real com outra cidadania, a de uma espécie de palestino sem passaporte ou
entrada em nenhum lugar. Ele não é o primeiro a ser caçado pelo poder por suas
atividades na rede, mas é o primeiro a sofrê-lo de um jeito tentacular,
planetário e inescapável.
Enquanto que os blogueiros censurados do Irã seriam
recebidos como heróis nos EUA para o inevitável espetáculo de propaganda,
Assange teve todos os seus direitos mais elementares suspensos globalmente, de
tal forma que tornou-se o sujeito mundialmente inospedável, o primeiro, salvo
engano, a experimentar essa condição só por ter feito algo na internet.
Acrescenta mais ironia, note-se, o fato de que ele fez o mais simples que se
pode fazer na rede: publicar arquivos .txt, palavras, puro texto, telegramas
que ele não obteve, lembremos, de forma ilegal.
ASSANGE É O CRIMINOSO SEM CRIME. Ao longo dos dias que
antecederam sua entrega à polícia britânica, os aparatos
estatal-político-militar-jurídico dos EUA e estados satélite batiam cabeças,
procurando algo de que Assange pudesse ser acusado. Se os telegramas foram
vazados por outrem, se tudo o que faz o Wikileaks é publicar, se está garantido
o sigilo da fonte e se os documentos são de evidente interesse público, a única
punição passível, por traição, espionagem ou coisa mais leve que fosse, caberia
exclusivamente a quem vazou. O Wikileaks só publica. Ele se apropria do que a
digitalização torna possível, a reprodutibilidade infinita dos arquivos, e do
que a internet torna possível, a circulação global da hospedagem dessas
reproduções. Atuando de forma estritamente legal, ele testa o limite da
liberdade de expressão da democracia moderna com a publicação de segredos
desconfortáveis para o poder. Nesse teste, os EUA (Departamento de Estado,
Justiça, Democratas, Republicanos, grande mídia, senso comum) deixaram claro:
não se aplica a Primeira Emenda, liberdade de expressão ou coisa que o valha.
Uniram-se todos, como em 2003 contra as “armas de destruição em massa” do
Iraque. Foi cerco e caça geral a Assange, implacável.
O WIKILEAKS É UM RELATO DE INÉDITA HIBRIDEZ, para o qual
ainda não há gênero. Leva algo de todos: épica, ficção científica, policial,
novela bizantina, tragédia, farsa e comédia, pelo menos. Quem vem acompanhando
a história saberá da pitada de cada uma dessas formas literárias na sua
composição. O que me chama a atenção no relato é que lhe falta a característica
essencial de um desses gêneros: é um policial sem crime, uma ficção científica
sem tecnologia futura, uma novela bizantina sem peregrinação, comédia sem final
feliz, tragédia sem herói de estatura trágica, épica sem batalha, farsa sem a
mínima graça. Kafka e Orwell, tão diferentes entre si, talvez sejam os dois
melhores modelos literários para entender o Wikileaks.
Como em Kafka, o crime de Assange não é uma entidade com
existência positiva, para a qual você possa apontar. Assange é um personagem
que vem direto d’O Processo, romance no qual K. será sempre culpado por uma
razão das mais simples: SEU CRIME É NÃO LEMBRAR-SE DE QUAL FOI O SEU CRIME.
Essa é a fórmula genial que encontra Kafka para instalar a culpa de K. como
inescapável: o processo se instala contra a memória.
O Advogado-Geral da União de Obama, que aceitou não levar à
Justiça um núcleo que durante o governo Bush planejou ilegalmente bombardeios a
populações de milhões, levou à morte centenas de milhares, torturou milhares,
esse mesmo Advogado-Geral que topou esquecer-se desses singelos crimes e não
processá-los, peregrinava pateticamente em busca de uma lei, um farrapo de
artigo em algum lugar que lhe permitisse processar Julian Assange. O melhor que
conseguiram foi um apelo ao Ato de Espionagem de 1917, feito em época de guerra
global declarada (coisa em que os EUA, evidentemente, não estão) e já detonado
várias vezes pela Suprema Corte, mais ilustremente no caso Watergate.
De 2010, quando escrevi as linhas acima, a 2019, em que as
republico, algo curioso aconteceu. Assange agora vai preso pelo crime de
apropriar-se de informação que é ao mesmo tempo secreta e de interesse cidadão
e torná-la pública de verdade, de graça, para todos. Enquanto isso, escrevemos
em uma plataforma, o Facebook, que consiste em tomar dados pessoais que são
privados, não são de interresse cidadão, e torná-los públicos para alguns
CNPJs, mediante dinheiro.
O fundador do Wikileaks vai para a cadeia e o fundador do
Facebook habita as capas de Time e cia. como homem do ano, da década, do
século.
Aí ele pensou: a vida não tem sentido. Aí ela sorriu. Aí ele
pensou: mas vai que de repente tem...
Otto Leopoldo Winck