VLADIMIR SAFATLE
"Quem controla o passado, controla o futuro?" Esta
frase de "1984", de George Orwell, descreve bem um dos fundamentos do
Estado autoritário.
Pois, no autoritarismo, trata-se sempre de compreender o
passado como objeto de controle do Estado. Seus ocupantes vestem as roupas de
historiadores, apagam mais uma vez o sangue dos mortos, profanam suas
sepulturas, negam compulsivamente as violências que o poder praticou. Depois
disso, eles criam relações negadas por todas as testemunhas, por todos os
historiadores reais, na esperança de que um delírio repetido infinitamente
possa se transformar em realidade.
Nesta semana, descobrimos que o senhor que ocupa a cadeira
de ministro da Educação está disposto a literalmente reescrever os livros de
história fornecidos aos nossos alunos, apagando o golpe de 1964 e a ditadura.
No romance de Orwell, havia um Ministério da Verdade
responsável por reescrever os jornais do passado e apagar notícias a fim de
adequar o que ocorreu aos desejos, sempre cambiantes, do poder em curso. Sugiro
então que esse desgoverno seja honesto ao menos uma vez e troque o nome do
Ministério da Educação para aquilo que ele realmente é — a saber, o Ministério
da Verdade (que é conveniente ao poder).
O problema são os números. Segundo pesquisa Ibope realizada
em março de 1964, 59% da população era a favor das medidas anunciadas por Jango
no famoso comício da Central do Brasil. Na mesma época, 49,8% admitiam votar em
Jango caso ele pudesse concorrer à próxima eleição. Por fim, outra pesquisa
mostrava que seu governo era considerado ótimo por 15%, bom por 30%, regular
por 24% e ruim por apenas por 16%. Isso depois de anos de tentativas de
desestabilizá-lo.
Onde estava então o "clamor" do povo contra um
governo eleito e suas medidas? Que tal ensinar aos nossos alunos esses números
e deixá-los tirar suas próprias conclusões sobre o que ocorreu?
Mas talvez esteja na hora de tirar as conclusões de todas as
consequências da exposição do verdadeiro núcleo autoritário deste governo. Pois
vale lembrar que, mesmo em um democracia liberal, a legitimidade de um governo
não vem do fato de ele ter ganho uma eleição.
Os nazistas também venceram as eleições e começaram por
constituir legalmente governos de coalização. Isso serve para nos lembrar que a
legitimidade vem de outro lugar: do fato de se mostrar capaz de ser o guardião
do exercício do dissenso. A primeira função de um governo é garantir que o
dissenso opere.
No entanto, um governo que nega golpes de Estado em seu
próprio país e que afirma que um regime que prendeu arbitrariamente,
assassinou, estuprou, ocultou cadáveres, censurou, exilou, perseguiu seus
opositores é um regime "normal" está a dizer que ele também pode
fazer o mesmo.
Afinal, se o golpe não foi golpe, se a ditadura não foi
ditadura, por que o governo atual também não poderia dar golpes que não são
golpes e agir como ditaduras que não são mesmo ditaduras?
Ao fazer isso, ele legitima quem clama por golpes na rua e
gostaria de abraçar as mesmas ações que caracterizam uma ditadura, além de
sinalizar à sociedade que não vê problema algum em fazer o mesmo caso julgue
necessário.
O fato de Bolsonaro ter sido deputado por várias
legislaturas não implica comprometimento com os limites da "democracia
parlamentar", mas diz simplesmente que ele não se sentia forte o
suficiente para operar da maneira que sempre sonhou.
Ou seja, uma sociedade que permite um governo destes cava
sua própria cova. Este governo já saiu de qualquer limiar do que mesmo uma
democracia liberal aceitaria. Ele já não tem mais legitimidade alguma para
continuar a ocupar os lugares do poder. É composto por quem aplaudiu quando
éramos exilados, assassinados e torturados. Eles farão o mesmo novamente, assim
que a oportunidade lhes for dada.
Sendo assim, não há razão alguma para reconhecê-lo nem para
obedecê-lo. A sociedade brasileira deve desobedecer sistematicamente a este
governo até que ele caia. Ela não deve reconhecer o poder de quem dá provas
sistemáticas de que desrespeita o comprometimento elementar contra o arbítrio.
Ao insultar a história brasileira, este governo quebra qualquer
pacto possível.
Vladimir Safatle
Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos
Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.
FSP 5.04.2019
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