A criminalização da resistência de apenas um dos lados dessa
disputa mostra o quanto nosso sistema político é incapaz de entender o que é,
de fato, uma democracia.
Chamar de chantagem toda forma de protesto com a qual não
concordamos é, no mínimo, infantil.
A oposição não vai admitir, mas a quantidade de pessoas que
têm ido às ruas para criticar a forma como está sendo conduzido o processo de
impeachment (atenção, não confundir com ir às ruas para apoiar esse governo)
foi maior que a esperada. À frente de muitas delas, está o MTST e a Frente Povo
sem Medo, que se mantém bastante críticos ao governo.
A partir daí, a narrativa para a criminalização de
movimentos sociais tem sido anabolizada na mídia, nas redes sociais, nos
espaços políticos. Narrativas que querem inverter os sentidos das palavras e
transformar resistência popular em ameaça à democracia e à governabilidade.
Guilherme Boulos é liderança do principal movimento social
de massa deste país em termos de centralidade da pauta, capacidade de
mobilização e visão de atuação hoje. Um movimento com uma agenda antiga, mas
com uma equipe que sabe se comunicar e influenciar a disputa simbólica da
narrativa, pela mídia, pelas redes sociais.
E vem exatamente do posicionamento crítico adotado contra a
atual administração federal o respeito de vários setores da esquerda para com o
movimento e com Boulos. Esse respeito e essa capacidade de mobilização, que
consegue colocar dezenas de milhares de militantes nas ruas quando preciso,
assusta muita gente. Que prefere ver ele preso do que articulando com outros
movimentos ou em cima de um caminhão de som.
O pedido de investigação criminal de Guilherme Boulos é uma
amostra do que acontecerá com parte da esquerda brasileira se o macarthismo à
brasileira se instalar como ação sistemática de limpeza ideológica. Já estamos
vendo, aqui e ali, a perseguição a quem usa roupas vermelhas e a agressão em
espaços públicos contra quem defende determinado ponto de vista. Até o
juramento de Hipócrates foi rasgado por médicos que acham normal não prestar
atendimento a alguém que não compartilha da mesma opinião política que eles.
Daqui para a caça nas ruas, escolas e empresas é um pulo.
Apesar de conquistas sociais obtidas na última década, o
governo não atendeu às pautas históricas propostas pelos movimentos sociais – o
que, do meu ponto de vista, não seria nenhuma “revolução'', mas melhoraria a
vida de milhões de brasileiros que se mantêm excluídos. Pelo contrário, em nome
da “governabilidade'' fez alianças espúrias, apoiando forças econômicas e
políticas que eram contrárias a esses interesses populares, ignorando o suporte
oferecido por esses mesmos movimentos para um mandato que significasse uma
mudança de paradigma.
E nada indica que, se sobreviver à convulsão, irá fazer a
“guinada à esquerda'', mítico desejo da militância, que passa frio no barraco
de lona na beira da rodovia, que convive com ratos em prédios ocupados em
grandes cidades, que sente medo de ser despejado de sua terra tradicional, que
vive as condições de trabalho precarizadas em nome do progresso.
Mas todos os movimentos sociais sabem o que é serem
considerados criminosos simplesmente por lutarem pelos direitos que lhes são
garantidos pela Constituição. Sabem o que é levar cacete por representar o que
está em desacordo com a visão hegemônica de “progresso'' e crescimento
econômico, seja no campo ou na cidade. E ainda guardam na memória as cicatrizes
deixadas pelos anos de governo Fernando Henrique Cardoso, temendo que voltem a
ser caçados dependendo de quem assuma o poder ou do clima político do país.
Você pode não gostar de Guilherme Boulos. Mas, se preza pela
liberdade, deveria repudiar a sua criminalização e dos movimentos sociais
populares, da mesma forma que deve ser repudiada a criminalização de qualquer
liderança social, de direita ou esquerda.
Pois, hoje é com ele. Depois, com uns comunistas,
sindicalistas, operários, jornalistas… Amanhã, quem sabe, se não vai ser com
você?
(Leonardo Sakamoto --
http://jornalggn.com.br/…/a-hipocrisia-na-criminalizacao-de…)
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