Lenin:
02.04.2016
O movimento revolucionário da Rússia, ao abarcar rápidamente
novos e novos setores da população, está criando toda uma série de organizações
à margem dos partidos. A necessidade de união manifesta-se com força tanto
maior quanto mais tempo foi contida e perseguida. As organizações, de uma ou de
outra forma, se bem que frequentemente ainda não cristalizadas, surgem sem
cessar, o seu caráter é extremamente original. Aqui não há limites nitidamente
assinalados semelhantes aos das organizações europeias. Os sindicatos adquirem
caráter político. A luta política funde-se com a econômica — por exemplo, sob a
forma de greves —, criando tipos mistos de organizações temporárias ou mais ou
menos permanentes.
Qual é o significado desse fenômeno? Qual deve ser a atitude
da social-democracia diante dele?
O rigoroso espírito de partido é consequência e resultado de
uma luta de classes altamente desenvolvida. E, ao contrário, no interesse de
uma ampla e aberta luta de classes é necessário o desenvolvimento de um
rigoroso espírito de partido. Por isso, o partido do proletariado consciente, a
social-democracia, combate sempre com absoluta razão a ideia de se situar à
margem dos partidos, esforçando-se invariavelmente para criar um Partido Operário
Socialista coeso e fiel aos princípios. Esse trabalho tem êxito entre as massas
à medida em que o desenvolvimento do capitalismo divide todo o povo, cada vez
mais profundamente, em classes, aguçando as contradições entre elas.
É perfeitamente compreensível que a presente revolução na
Rússia tenha engendrado e engendre tantas organizações situadas à margem dos
partidos. Por seu conteúdo econômico-social, esta revolução é democrática ou,
melhor, burguesa. Essa revolução derruba o regime autocrático-feudal, abrindo
campo livre ao regime burguês, satisfazendo assim as reivindicações de todas as
classes da sociedade burguesa, sendo, nesse sentido, uma revolução de todo o
povo. Isso não significa, é claro, que nossa revolução não tenha caráter de
classe; naturalmente que o tem. Mas esta revolução é dirigida contra as classes
e castas que caducaram ou estão caducando do ponto de vista da sociedade
burguesa, classes e castas estranhas a essa sociedade e que impedem o seu
desenvolvimento. E como toda a vida econômica do país já é burguesa em todos os
seus traços fundamentais, como a imensa maioria da população já vive de fato em
condições burguesas de existência, os “contrarrevolucionários são, portanto,
insignificantes em número, são na realidade “um punhado” em comparação com “o
povo”. O caráter de classe da revolução burguesa manifesta-se, pois,
inevitavelmente, no seu caráter “popular”. E por isso, à primeira vista, sem
caráter de classe, mas como luta de todas as classes da sociedade burguesa
contra a autocracia e a servidão.
A época da revolução burguesa distingue-se, tanto na Rússia
como em outros países, por um desenvolvimento relativamente incompleto das
contradições de classe da sociedade capitalista. É verdade que na Rússia o
capitalismo está, hoje, muito mais desenvolvido do que na Alemanha de 1848, sem
falar da França de 1789; mas não há dúvida de que as contradições puramente
capitalistas ainda estão bastante encobertas em nosso país pelas contradições
entre a “cultura” e o asiatismo, o europeísmo e o tartarismo, o capitalismo e o
regime de servidão, isto é, no primeiro plano se apresentam reivindicações cuja
satisfação impulsionará o desenvolvimento do capitalismo, o depurará da escória
do feudalismo e melhorará as condições de vida e de luta, tanto do proletariado
como da burguesia.
Com efeito, se examinarmos o número infinito de
reivindicações, exigências e doléances (queixas) hoje formuladas na Rússia em
cada fábrica ou escritório, em cada regimento, seção da guarda municipal,
paróquia, centro de ensino, etc, etc, comprovaremos facilmente que a imensa
maioria delas são, se é possível exprimir-se assim, reivindicações de caráter
estritamente “cultural”. Quero dizer que não são, propriamente falando,
reivindicações específicas de classe, mas exigências de sentido
fundamentalmente jurídico, exigências que, longe de destruir o capitalismo,
colocam-nos nos marcos do europeísmo e libertam-no da barbárie, da selvageria,
do suborno e de outros restos “russos” do regime de servidão. Na realidade,
também as reivindicações proletárias limitam-se, na maioria dos casos, a exigir
transformações plenamente realizáveis nos limites do capitalismo. O
proletariado da Rússia reclama, hoje, de maneira imediata, não o que mina o
capitalismo, mas o que o purifica e o que acelera e impulsiona seu
desenvolvimento.
Naturalmente, a situação especial do proletariado na
sociedade capitalista faz com que a inclinação dos operários para o socialismo,
a união dos operários com o partido socialista, abra caminho espontaneamente
nas próprias fases iniciais do movimento. Mas as reivindicações nitidamente
socialistas são ainda coisa do futuro, e na ordem-do-dia figuram as
reivindicações democráticas dos operários na política; bem como as
reivindicações econômicas dentro dos limites do capitalismo, no terreno da
economia. Inclusive o proletariado faz a revolução, por assim dizer, dentro dos
limites do programa mínimo e não do programa máximo. Não é nem mesmo preciso
falar do campesinato, dessa gigantesca massa da população, esmagadora por seu
número. Seu “programa máximo”, seus objetivos finais, não vão além das
fronteiras do capitalismo, que se desenvolveria com mais amplitude e força se
toda a terra passasse às mãos dos camponeses e de todo o povo. A revolução
camponesa é atualmente uma revolução burguesa, por muito que essas palavras
“ofendam” o ouvido sentimental dos cavalheiros sentimentais de nosso socialismo
pequeno-burguês.
O caráter bem delimitado da revolução em desenvolvimento
origina organizações à margem dos partidos, em um processo inteiramente
natural. Todo o movimento, em seu conjunto, adquire inevitavelmente o selo da
independência externa em relação aos partidos, a aparência da falta de filiação
política; mas, está claro, somente a aparência. A necessidade de uma vida “humana”
e culta, da união, da defesa da própria dignidade e dos direitos do homem e do
cidadão abarca tudo e todos, agrupa todas as classes, diminui com gigantesco
ímpeto qualquer limite partidário, perturba as pessoas que ainda estão muito
longe de ser capazes de se elevar até às posições partidárias. A urgência da
conquista dos direitos e reformas imediatas, fundamentalmente necessárias,
relega, por assim dizer, a segundo plano, qualquer ideia e pensamento sobre o
que virá mais tarde. A paixão pela luta atual, necessária e legítima, sem o que
não seria possível o êxito, obriga a idealizar esses objetivos imediatos e
elementares, pinta-os de cor-de-rosa e inclusive envolve-os às vezes em
roupagem fantástica; o simples democratismo, o vulgar democratismo burguês, é
confundido com o socialismo e classificado como socialismo. Tudo é, ao que
parece, “independente dos partidos”; tudo se funde, por assim dizer, em um só
movimento “libertador” (que, na realidade, liberta toda a sociedade burguesa);
tudo adquire um leve verniz superficial de “socialismo”, principalmente graças
ao papel de vanguarda do proletariado socialista na luta democrática.
A ideia da posição independente na luta dos partidos não
pode deixar de, pelo menos, alcançar, em tais condições, determinadas vitórias
passageiras. A independência em relação aos partidos não pode, pelo menos,
deixar de passar a ser uma palavra de ordem da moda, pois a moda se agarra
impotente ao reboque dos acontecimentos, e uma organização sem cunho partidário
aparece precisamente como o fenômeno mais “comum” da superfície política;
democratismo à margem dos partidos, movimento grevista à margem dos partidos,
revolucionarismo à margem dos partidos.
Pergunta-se agora: qual tem que ser, diante desse fato, a
posição independente com respeito aos partidos, e diante dessa ideia da
independência com respeito aos partidos, a atitude dos partidários e
representantes das diferentes classes? Não no sentido subjetivo, mas objetivo,
isto é, não no sentido de qual deva ser a atitude diante desse fato, e sim no
sentido de que atitude se impõe inevitavelmente subordinada aos interesses e
aos pontos de vista das diferentes classes.
II
Como já indicamos, a independência a respeito dos partidos é
um produto ou, se quereis, uma expressão do caráter burguês de nossa revolução.
A burguesia não pode deixar de, pelo menos, tender para essa independência,
pois a ausência de partidos entre os que lutam pela liberdade da sociedade
burguesa significa a ausência de uma nova luta contra esta mesma sociedade
burguesa. Quem desenvolve uma luta “independente dos partidos” pela liberdade,
ou não compreende o caráter burguês da liberdade, ou consagra esse regime
burguês, ou adia para as calendas gregas a luta contra ele, o “aperfeiçoamento”
do referido regime. E, pelo contrário, quem consciente ou inconscientemente se
mantém ao lado da ordem de coisas burguesas, não pode deixar de, pelo menos,
sentir inclinação pela ideia de se situar à margem dos partidos.
Numa sociedade baseada em classes, a luta entre as classes
hostis converte-se de maneira infalível, numa determinada fase de seu
desenvolvimento, em luta política. A luta entre os partidos é a expressão mais
perfeita, completa e acabada da luta política entre as classes. A falta de
cunho político significa indiferença diante da luta dos partidos. Mas essa
indiferença não equivale à neutralidade, à omissão na luta, pois na luta de
classes não pode haver neutros, na sociedade capitalista não é possível
“abster-se” de participar da troca de produtos ou da força de trabalho. E essa
troca engendra infalivelmente a luta econômica e, a seguir, a luta política.
Por isso, a indiferença diante da luta não é, na realidade, inibição diante da luta,
abstenção dela ou neutralidade. A indiferença é o apoio tácito ao forte, ao que
domina. Quem era indiferente na Rússia diante da autocracia antes de sua queda
durante a Revolução de Outubro apoiava tacitamente a autocracia. Quem é
indiferente na Europa contemporânea diante do domínio da burguesia, apoia,
tacitamente, a burguesia. Quem mantém uma atitude de indiferença diante da
ideia do caráter burguês da luta pela liberdade, apoia, tacitamente, o domínio
da burguesia nesta luta, o domínio da burguesia na nascente Rússia livre. A
indiferença política não é outra coisa senão a saciedade política. Aquele que
está farto é “indiferente” e “insensível” diante do problema do pão de cada
dia; porém o faminto será sempre um homem “de partido” nessa questão. A “indiferença
e insensibilidade” de uma pessoa diante do problema do pão de cada dia não
significa que não necessite de pão, mas que o tem sempre garantido, que nunca
precisa dele, que se acomodou bem no “partido” dos que estão saciados. A
posição negativa diante dos partidos na sociedade burguesa não é senão uma
expressão hipócrita, velada e passiva de quem pertence ao partido dos que estão
empanturrados, o partido dos que dominam, o partido dos exploradores.
A posição negativa diante dos partidos é uma ideia burguesa.
O espírito de partido é uma ideia socialista. Essa tese, em geral, é aplicável
a toda a sociedade burguesa. Naturalmente, é preciso saber aplicar esta verdade
geral às diferentes questões e casos particulares. Mas esquecer essa verdade em
certos momentos em que a sociedade burguesa em seu conjunto se lança contra a
servidão e a autocracia, significa renunciar de fato e por completo à crítica
socialista da sociedade burguesa.
A revolução russa, apesar de encontrar-se ainda em sua fase
inicial, já proporciona material suficiente para comprovar as considerações
acima expostas. O rigoroso espírito de partido foi e é defendido,
exclusivamente, pela social-democracia, pelo partido do proletariado
consciente. Nossos liberais, representantes dos pontos de vista da burguesia,
não podem transigir com o espírito socialista de partido, nem querem ouvir
falar da luta de classes: recordem-se, pelo menos, os discursos recentes do
senhor Roditchev, que repetiu pela enésima vez o que já havia sido dito e
repetido, tanto por Osvobojdenie, editado no estrangeiro, como pelos inúmeros e
submissos órgãos do liberalismo russo. Por último, a ideologia da classe média,
da pequena burguesia, foi claramente expressa nos pontos de vista dos
“radicais” russos de diferentes matizes, começando por Nasha Jizn, os
“radical-democratas”, e terminando pelos “socialistas revolucionários”. Onde
esses últimos confirmaram com maior clareza sua mescla de socialismo e
democratismo foi na questão agrária, e precisamente na palavra de ordem de
“socialização” (da terra, sem socialização do capital). É sabido também que são
transigentes com o radicalismo burguês e intransigentes com a ideia do espírito
social-democrático de partido.
Em nosso tema não entra como se refletem os interesses das
diferentes classes no programa e a tática dos liberais e radicais russos de
todos os matizes. Abordamos, aqui, somente de passagem, esse interessante
problema, e devemos passar agora às conclusões políticas práticas sobre a
atitude de nosso Partido diante das organizações sem cunho partidário.
É admissível a participação dos socialistas nas organizações
situadas à margem dos partidos? Se é, em que condições? Que tática é preciso
seguir nessas organizações?
A primeira pergunta não pode ser respondida com um não
absoluto, baseado nas considerações de princípios. Seria erro afirmar-se não
ser admissível, em nenhum caso e em nenhuma circunstância, a participação dos
socialistas nas organizações situadas à margem dos partidos (quer dizer,
burguesas, mais ou menos consciente ou inconscientemente). Na época da
revolução democrática, a renúncia a participar em organizações independentes
dos partidos equivaleria, em certos casos, a renunciar em participar na
revolução democrática. Mas, sem dúvida, os socialistas devem circunscrever
estreitamente esses “certos casos”, só admitindo essa participação em condições
determinadas e limitadas de modo rigoroso. Pois se as organizações
independentes dos partidos são engendradas, como já dissemos, por um nível
relativamente baixo de desenvolvimento da luta de classes, de outro lado, o
rigoroso espírito de partido é uma das condições que transformam a luta de
classes numa luta consciente, clara, precisa e fiel aos princípios.
A salvaguarda da independência ideológica e política do
partido do proletariado é obrigação constante, invariável e incondicional dos
socialistas. Quem não cumpre esta obrigação, deixa de fato de ser socialista,
por mais sinceras que sejam suas convicções “socialistas” (socialistas de
palavras). Para um socialista, a participação nas organizações sem cunho
partidário é permissível só como exceção. E os próprios fins desta participação
e seu caráter, as condições que ela exige, etc, devem estar inteiramente
subordinados à tarefa fundamental preparar e organizar o proletariado
socialista para a direção consciente da revolução socialista.
As circunstâncias podem obrigar-nos a participar em
organizações independentes dos partidos, sobretudo na época da revolução
democrática, e, em particular, de uma revolução democrática em que o
proletariado desempenhe papel relevante. Tal participação pode ser necessária,
por exemplo, para propagar o socialismo entre um auditório democrático não
definido, ou em benefício da luta conjunta de socialistas e democratas
revolucionários diante da contrarrevolução. No primeiro caso, a participação
será um meio de tornar os nossos pontos de vista conhecidos; no segundo, um
pacto de luta visando à realização de determinados objetivos revolucionários.
Em ambos os casos, a participação só pode ser temporária. Em ambos os casos, a
participação só é admissível com a condição de se resguardar inteiramente a
independência do partido operário e sob a condição de que todo o Partido, em
seu conjunto, controle e dirija obrigatoriamente os seus membros e grupos
“delegados” às associações ou conselhos situados à margem dos partidos.
Quando a atividade de nosso Partido era secreta, a
realização desse controle e dessa direção ofereciam enormes dificuldades, às
vezes quase insuperáveis. Agora, quando a atividade do Partido é cada vez mais
aberta, esse controle e essa direção podem e devem ser efetuados com a maior
amplitude, e indiscutivelmente não apenas pela “cúpula”, mas também pela “base”
do Partido, por todos os operários organizados que integram o Partido. Os
informes sobre a atuação dos social-democratas nas associações ou conselhos
independentes dos partidos e sobre as condições e os objetivos dela, bem como
as resoluções de qualquer tipo de organizações do Partido a propósito da
referida atuação devem, imediatamente, começar a fazer parte do trabalho
prático do partido operário. Só uma tal participação real do Partido em seu
conjunto, uma participação na orientação de todas as atividades desse caráter,
pode contrapor de fato o trabalho verdadeiramente socialista ao trabalho
democrático geral.
Que tática devemos aplicar nas associações independentes dos
partidos? Em primeiro lugar, aproveitar toda possibilidade para estabelecer
nossos próprios vínculos e para propagar nosso programa socialista na íntegra.
Em segundo lugar, determinar as tarefas políticas imediatas do momento, do
ponto de vista da realização mais completa e decidida da revolução democrática,
colocar palavras de ordem políticas na revolução democrática, formular o
“programa” das transformações que a democracia revolucionária em luta deve
levar a cabo, de modo diverso da tratante democracia liberal.
Só colocando o problema dessa maneira pode ser admissível e
fecunda a participação dos membros de nosso Partido nas organizações
revolucionárias independentes dos partidos, hoje criadas pelos operários,
amanhã pelos camponeses, depois de amanhã pelos soldados, etc. Só colocando
dessa maneira o problema estaremos em condições de cumprir a dupla tarefa do
partido operário na revolução burguesa: levar até o fim a revolução
democrática, ampliar e reforçar os quadros do proletariado socialista, que
necessita de liberdade para desencadear uma luta impiedosa pela derrubada do
domínio do capital.
por Lenin, publicado no Novaia Jizn, n.“ 22 e 27, 26 de
novembro e 2 de dezembro de 1905
TEMAS:
Marxismo-leninismo
Lênin
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