A partir de dados de uma experiência centrada no Hemisfério
Norte, especificamente no Canadá, Estados Unidos e Europa, o filósofo Charles
Taylor proferiu sua conferência de encerramento no ciclo de debates promovido
pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU com o apoio do PPG em Filosofia da
Unisinos. No Anfiteatro Padre Werner, lotado de estudantes e professores, o
pensador teceu considerações na noite de 29-04-2013 sobre a questão da
secularização e seus impactos sobre a religião em nosso tempo.
A reportagem é de Márcia Junges.
Atualmente, comenta Taylor, a sociedade não é mais
“dominada” pela religião. Houve uma mudança profunda no último meio século no
lugar da religião e da vida social e espiritual dos indivíduos. Podemos ver
desta forma: há um século, a situação padrão em muitos países do Atlântico
Norte era de que os Estados eram confessionais. É o caso da Alemanha, Itália,
França e países escandinavos, em sua maioria luteranos. Pertencer àquele Estado
era pertencer àquela igreja. Até meados do século passado, os habitantes do
Quebec de língua francesa tinham o sentimento de que ser cidadãos dessa cidade
e serem católicos era uma equação direta.
Já nos EUA a sociedade permite uma variedade de confissões.
Contudo, em 1820, era diferente. Havia uma percepção de que este era um país
protestante cristão. Houve um desenvolvimento muito lento no EUA com a
aceitação dos credos gradualmente.
Cosmovisão abalada
Se voltarmos até a Europa medieval, ser membro de uma cidade
era sinal de ser católico e participar
de uma sociedade. Essa sociedade era conectada com o cosmo, visto em termos
morais e metafísicos. O que vemos no Ocidente foi um afastamento gradativo da
quíntupla pertença: pertença ao cosmo, sociedade, religião, moralidade e
civilização. Isso começa, naturalmente, com um rompimento da unidade da Europa
medieval católica com a Reforma. Tal coisa significava que não havia sociedades
somente católicas, mas luteranas e calvinistas.
Depois veio o desafio que chamamos de Iluminismo, com o
desenvolvimento de certa alternativa ao cristianismo. As luzes tiveram impacto
também no Brasil, porque uma das formas que essa filosofia do progresso tomou
foi o slogan “ordem e progresso”. Essa concepção acabou eliminando a dimensão
cósmica. Para ter sociedades baseadas em ordem e progresso, estas tinham que
estar baseadas em torno de uma filosofia que todos deveriam aceitar, como o que
ocorreu na União Soviética com a revolução comunista, “um espelho invertido de
estado confessional”, assinalou Taylor. Esse tipo de situação, com certa margem
de tolerância, existiu até pouco tempo.
A religião cedeu espaço para concepções como o marxismo
leninismo, com uma outra cosmovisão. Isso foi rompido na segunda metade do
século XX. Em certo sentido, houve um rompimento tanto para as versões crentes
quanto para as não crentes, que defendiam o progresso racional. Desde o
Iluminismo até o século XX essas teorias coexistiam. Havia uma influência
profunda sobre as cidades cristãs que resultou dessa ideia de progresso.
Ética da autenticidade
No Hemisfério Norte nas décadas de 1960 e 1970 se disseminou
a ética da autenticidade. O processo começou no século XVIII e sua ideia básica
é que somos todos seres humanos e temos nossa própria forma de sermos humanos.
O que devemos fazer é realizar nossa humanidade de modo geral, mas de modo
específico e pessoal. A questão é qual é a direção que darei à minha caminhada,
que identidade assumirei? Minha identidade será suprimida ou eliminada porque
sou forçado a me conformar? Ou poderei realizar minha identidade, questionou
Taylor.
Esse conjunto de concepções teve muito poder entre minorias
do século XIX. A arte pós-romântica de modo geral enfatizava a originalidade, e
a ética da autenticidade é um reflexo. Fazer algo original era louvável. Na
década de 1960 do século XX, essa ética se tornou generaliza da entre a
população. Nos EUA as pessoas começaram a dizer que deveria ser feito algo que
mostrasse o que a pessoa realmente era. Tal ética minoritária tornou-se, desse
modo, generalizada. Talvez isso tenha ocorrido primeiro nos EUA, se espalhando
no mundo ocidental rapidamente.
Essa autenticidade é uma ética acompanhada na década de 1960
por uma revolução nos costumes sexuais. As pessoas deixaram de lado a
moralidade sexual anterior e pediram mais margem de liberdade e contestação. A
revolução sexual se vinculou diretamente à questão da autenticidade. As pessoas
defendiam comportamentos sexuais com base nesse pensamento. Na década de 1970 a
linguagem para defender a causa da libertação gay foi muito particular. No
início do século XX, se alguém dissesse que era negativo fazer as pessoas
sofrerem por serem homossexuais, seriam mal vistas.
Pertença despedaçada
Igualmente, as pessoas iniciaram a buscar por si mesmas sua
orientação espiritual, mas sem querer um pertencimento institucional. As
pessoas pensam que seu compromisso com o Estado é diferente daquele que têm com
a Igreja. A pertença geral se despedaça e o sujeito se insere em diferentes
âmbitos da ética, política e comportamento individual.
O resultado disso, em termos religiosos, é uma cultura na
qual as pessoas, sobretudo os jovens, se veem como pessoas em busca. Buscam um
caminho espiritual. Dizem que querem seguir esse caminho porque ele as atrai.
“Para a nova geração, é estranho concordar com certos dogmas de um credo. Para
grande parte da população do Hemisfério Norte, sobretudo, há uma grande mudança
cultural em curso. Um deslocamento no próprio lugar da religião na vida das
pessoas, uma mudança na forma como crer e não crer é colocada”, observou
Taylor.
Ordem impessoal e sincretismo
Para os jovens não há só duas opções religiosas. Elas são
muitas e crescem em número. O caminho aumenta e é adotado com elementos
sincréticos, inclusive. Esse não é o tipo de mundo do passado, em que as opções
religiosas eram organizadas. Segundo Taylor, vivemos num mundo “no qual as
pessoas buscam sua senda espiritual, e elas se envolvem na busca por conta
própria”.
Hoje se pensa que o cosmo não tem uma finalidade, e que pode
ser explicado pela causação eficiente. Esse mundo não apoia qualquer crença
metafísica ou religiosa sobre o universo. Sabemos que nossas sociedades foram
construídas pelos sujeitos que nela vivem. Podemos olhar para trás e apontar
que essas sociedades foram construídas. Existe a percepção de viver em uma
ordem impessoal - o imaginário social moderno da moldura imanente. O primeiro
desafio provém dessa situação, observa o filósofo: muitas pessoas que
acompanham isso são mais velhas, e se sentem à vontade no molde anterior, no
qual o pertencimento religioso estava ligado ao pertencimento social e
político. Elas se sentem profundamente abaladas, insultadas e preocupadas com
esse fenômeno da ética da autenticidade e suas repercussões.
Alguns desses jovens, de forma compreensível, veem a fé
cristã com outro olhar. Assim, querem fazer parte da fé, mas às identidades
religiosas é difícil de aderir. Leia-se nesse contexto o fundamentalismo
protestante no Brasil, que toma a Bíblia como literalmente verdadeira. Nos EUA
se dá algo semelhante. Parte da hostilidade da política americana provém da
batalha entre pessoas que querem se apegar à forma anterior da religião, que
pretensamente demonstram um compromisso maior com o país. A identidade
americana tem a ver com esse tipo de cristianismo.
Do lado católico, temos uma hierarquia que, de modo geral,
se colocou contra esse tipo de autocompreensão. Temos essa rejeição de que
muitos católicos têm essa nova orientação e convivem com outros católicos com
outras compreensões.
O primeiro grande desafio das igrejas cristãs é como superar
essa guerra civil virtual. A Igreja Católica tem dificuldade de falar, reagir,
responder, agir e lidar com jovens que estão em busca. Há um hiato que precisa
ser superado entre esses jovens e a instituição.
Religião como marcador político
Outro desafio que surge dessa ruptura das formas antigas de
pertencimento é quase o oposto: quando a religião se torna central para o
pertencimento político. De uma forma estranha isso pode acontecer sem ser
acompanhado por qualquer compromisso profundo da fé ou da prática de confissões
específicas. Isso remonta ao passado, nos últimos séculos, quando havia uma
mobilização política a partir da qual a sociedade se pautava desde tempos
imemoriais. No nacionalismo moderno, vemos o esforço de mobilizar as pessoas a
se agruparem em torno de ideias comuns. Isso deve ser tornado com o compromisso
central dessa sociedade. Muitas vezes a mobilização se coloca em termos de
marcadores religiosos.
A religião foi entronizada como marcador político. É o caso
de um certo tipo de islamismo, que não representa o Islã, em absoluto. É como
se a honra do profeta tivesse sido ultrajada em função de algumas atitudes de
alguns fieis. Isso distorce profundamente a religião, tirando dela grande parte
de sua tradição. No Senegal 95% das pessoas são muçulmanas, e não aceitam
dinheiro da Arábia Saudita para construir escolas, exemplificou Taylor. Os
senegaleses convivem bem com a minoria de 5% de católicos. Como poderemos ter
abertura e ver o que há de bom nas outras crenças? Ainda não estamos à altura
desse desafio.
Uma fé mais autêntica
"O terceiro desafio surge a partir da situação que
descrevi antes, na qual temos as três ramificações da secularização. Temos o
desenvolvimento de um Estado neutro, além do fenômeno da mobilização religiosa
que cria muitos conflitos. Nas democracias temos o problema de erigir leis
laicistas, laicas. Temos que desenvolver formas de laicidade com as quais
possamos mesmo conviver sem que qualquer filosofia específica assuma o controle
e reprima outras", disse Taylor.
Segundo ele, "o desafio da convivência deve ser
enfrentado em termos nacionais e internacionais, com liberdade para se praticar
o tipo de religião que se deseja professar. Vivemos numa era nova. Não podemos
interpretar esses fenômenos com as categorias anteriores".
“É preciso uma fé mais autêntica. E precisamos compreender
que a fé é uma jornada, uma caminhada”, completou Taylor.
O filósofo explicou, também, a diferença entre os termos
secularização e laicização. Por secularização devemos entender um processo
social, com um Estado neutro, que oferece uma explicação factual da evolução da
sociedade. Já a laicização é uma proposta legal de estabelecer estruturas
jurídicas em que haja papéis claros para a religião.
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