quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Pertença religiosa numa era secular. Desafios e possibilidades



A partir de dados de uma experiência centrada no Hemisfério Norte, especificamente no Canadá, Estados Unidos e Europa, o filósofo Charles Taylor proferiu sua conferência de encerramento no ciclo de debates promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU com o apoio do PPG em Filosofia da Unisinos. No Anfiteatro Padre Werner, lotado de estudantes e professores, o pensador teceu considerações na noite de 29-04-2013 sobre a questão da secularização e seus impactos sobre a religião em nosso tempo.

A reportagem é de Márcia Junges.
Atualmente, comenta Taylor, a sociedade não é mais “dominada” pela religião. Houve uma mudança profunda no último meio século no lugar da religião e da vida social e espiritual dos indivíduos. Podemos ver desta forma: há um século, a situação padrão em muitos países do Atlântico Norte era de que os Estados eram confessionais. É o caso da Alemanha, Itália, França e países escandinavos, em sua maioria luteranos. Pertencer àquele Estado era pertencer àquela igreja. Até meados do século passado, os habitantes do Quebec de língua francesa tinham o sentimento de que ser cidadãos dessa cidade e serem católicos era uma equação direta.

Já nos EUA a sociedade permite uma variedade de confissões. Contudo, em 1820, era diferente. Havia uma percepção de que este era um país protestante cristão. Houve um desenvolvimento muito lento no EUA com a aceitação dos credos gradualmente.

Cosmovisão abalada

Se voltarmos até a Europa medieval, ser membro de uma cidade era sinal de ser católico e  participar de uma sociedade. Essa sociedade era conectada com o cosmo, visto em termos morais e metafísicos. O que vemos no Ocidente foi um afastamento gradativo da quíntupla pertença: pertença ao cosmo, sociedade, religião, moralidade e civilização. Isso começa, naturalmente, com um rompimento da unidade da Europa medieval católica com a Reforma. Tal coisa significava que não havia sociedades somente católicas, mas luteranas e calvinistas.

Depois veio o desafio que chamamos de Iluminismo, com o desenvolvimento de certa alternativa ao cristianismo. As luzes tiveram impacto também no Brasil, porque uma das formas que essa filosofia do progresso tomou foi o slogan “ordem e progresso”. Essa concepção acabou eliminando a dimensão cósmica. Para ter sociedades baseadas em ordem e progresso, estas tinham que estar baseadas em torno de uma filosofia que todos deveriam aceitar, como o que ocorreu na União Soviética com a revolução comunista, “um espelho invertido de estado confessional”, assinalou Taylor. Esse tipo de situação, com certa margem de tolerância, existiu até pouco tempo.

A religião cedeu espaço para concepções como o marxismo leninismo, com uma outra cosmovisão. Isso foi rompido na segunda metade do século XX. Em certo sentido, houve um rompimento tanto para as versões crentes quanto para as não crentes, que defendiam o progresso racional. Desde o Iluminismo até o século XX essas teorias coexistiam. Havia uma influência profunda sobre as cidades cristãs que resultou dessa ideia de progresso.

Ética da autenticidade

No Hemisfério Norte nas décadas de 1960 e 1970 se disseminou a ética da autenticidade. O processo começou no século XVIII e sua ideia básica é que somos todos seres humanos e temos nossa própria forma de sermos humanos. O que devemos fazer é realizar nossa humanidade de modo geral, mas de modo específico e pessoal. A questão é qual é a direção que darei à minha caminhada, que identidade assumirei? Minha identidade será suprimida ou eliminada porque sou forçado a me conformar? Ou poderei realizar minha identidade, questionou Taylor.

Esse conjunto de concepções teve muito poder entre minorias do século XIX. A arte pós-romântica de modo geral enfatizava a originalidade, e a ética da autenticidade é um reflexo. Fazer algo original era louvável. Na década de 1960 do século XX, essa ética se tornou generaliza da entre a população. Nos EUA as pessoas começaram a dizer que deveria ser feito algo que mostrasse o que a pessoa realmente era. Tal ética minoritária tornou-se, desse modo, generalizada. Talvez isso tenha ocorrido primeiro nos EUA, se espalhando no mundo ocidental rapidamente.

Essa autenticidade é uma ética acompanhada na década de 1960 por uma revolução nos costumes sexuais. As pessoas deixaram de lado a moralidade sexual anterior e pediram mais margem de liberdade e contestação. A revolução sexual se vinculou diretamente à questão da autenticidade. As pessoas defendiam comportamentos sexuais com base nesse pensamento. Na década de 1970 a linguagem para defender a causa da libertação gay foi muito particular. No início do século XX, se alguém dissesse que era negativo fazer as pessoas sofrerem por serem homossexuais, seriam mal vistas.

Pertença despedaçada

Igualmente, as pessoas iniciaram a buscar por si mesmas sua orientação espiritual, mas sem querer um pertencimento institucional. As pessoas pensam que seu compromisso com o Estado é diferente daquele que têm com a Igreja. A pertença geral se despedaça e o sujeito se insere em diferentes âmbitos da ética, política e comportamento individual.

O resultado disso, em termos religiosos, é uma cultura na qual as pessoas, sobretudo os jovens, se veem como pessoas em busca. Buscam um caminho espiritual. Dizem que querem seguir esse caminho porque ele as atrai. “Para a nova geração, é estranho concordar com certos dogmas de um credo. Para grande parte da população do Hemisfério Norte, sobretudo, há uma grande mudança cultural em curso. Um deslocamento no próprio lugar da religião na vida das pessoas, uma mudança na forma como crer e não crer é colocada”, observou Taylor.

Ordem impessoal e sincretismo

Para os jovens não há só duas opções religiosas. Elas são muitas e crescem em número. O caminho aumenta e é adotado com elementos sincréticos, inclusive. Esse não é o tipo de mundo do passado, em que as opções religiosas eram organizadas. Segundo Taylor, vivemos num mundo “no qual as pessoas buscam sua senda espiritual, e elas se envolvem na busca por conta própria”.

Hoje se pensa que o cosmo não tem uma finalidade, e que pode ser explicado pela causação eficiente. Esse mundo não apoia qualquer crença metafísica ou religiosa sobre o universo. Sabemos que nossas sociedades foram construídas pelos sujeitos que nela vivem. Podemos olhar para trás e apontar que essas sociedades foram construídas. Existe a percepção de viver em uma ordem impessoal - o imaginário social moderno da moldura imanente. O primeiro desafio provém dessa situação, observa o filósofo: muitas pessoas que acompanham isso são mais velhas, e se sentem à vontade no molde anterior, no qual o pertencimento religioso estava ligado ao pertencimento social e político. Elas se sentem profundamente abaladas, insultadas e preocupadas com esse fenômeno da ética da autenticidade e suas repercussões.

Alguns desses jovens, de forma compreensível, veem a fé cristã com outro olhar. Assim, querem fazer parte da fé, mas às identidades religiosas é difícil de aderir. Leia-se nesse contexto o fundamentalismo protestante no Brasil, que toma a Bíblia como literalmente verdadeira. Nos EUA se dá algo semelhante. Parte da hostilidade da política americana provém da batalha entre pessoas que querem se apegar à forma anterior da religião, que pretensamente demonstram um compromisso maior com o país. A identidade americana tem a ver com esse tipo de cristianismo.
Do lado católico, temos uma hierarquia que, de modo geral, se colocou contra esse tipo de autocompreensão. Temos essa rejeição de que muitos católicos têm essa nova orientação e convivem com outros católicos com outras compreensões.

O primeiro grande desafio das igrejas cristãs é como superar essa guerra civil virtual. A Igreja Católica tem dificuldade de falar, reagir, responder, agir e lidar com jovens que estão em busca. Há um hiato que precisa ser superado entre esses jovens e a instituição.

Religião como marcador político

Outro desafio que surge dessa ruptura das formas antigas de pertencimento é quase o oposto: quando a religião se torna central para o pertencimento político. De uma forma estranha isso pode acontecer sem ser acompanhado por qualquer compromisso profundo da fé ou da prática de confissões específicas. Isso remonta ao passado, nos últimos séculos, quando havia uma mobilização política a partir da qual a sociedade se pautava desde tempos imemoriais. No nacionalismo moderno, vemos o esforço de mobilizar as pessoas a se agruparem em torno de ideias comuns. Isso deve ser tornado com o compromisso central dessa sociedade. Muitas vezes a mobilização se coloca em termos de marcadores religiosos.

A religião foi entronizada como marcador político. É o caso de um certo tipo de islamismo, que não representa o Islã, em absoluto. É como se a honra do profeta tivesse sido ultrajada em função de algumas atitudes de alguns fieis. Isso distorce profundamente a religião, tirando dela grande parte de sua tradição. No Senegal 95% das pessoas são muçulmanas, e não aceitam dinheiro da Arábia Saudita para construir escolas, exemplificou Taylor. Os senegaleses convivem bem com a minoria de 5% de católicos. Como poderemos ter abertura e ver o que há de bom nas outras crenças? Ainda não estamos à altura desse desafio.


Uma fé mais autêntica

"O terceiro desafio surge a partir da situação que descrevi antes, na qual temos as três ramificações da secularização. Temos o desenvolvimento de um Estado neutro, além do fenômeno da mobilização religiosa que cria muitos conflitos. Nas democracias temos o problema de erigir leis laicistas, laicas. Temos que desenvolver formas de laicidade com as quais possamos mesmo conviver sem que qualquer filosofia específica assuma o controle e reprima outras", disse Taylor.

Segundo ele, "o desafio da convivência deve ser enfrentado em termos nacionais e internacionais, com liberdade para se praticar o tipo de religião que se deseja professar. Vivemos numa era nova. Não podemos interpretar esses fenômenos com as categorias anteriores".

“É preciso uma fé mais autêntica. E precisamos compreender que a fé é uma jornada, uma caminhada”, completou Taylor.

O filósofo explicou, também, a diferença entre os termos secularização e laicização. Por secularização devemos entender um processo social, com um Estado neutro, que oferece uma explicação factual da evolução da sociedade. Já a laicização é uma proposta legal de estabelecer estruturas jurídicas em que haja papéis claros para a religião.


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