quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Charles Taylor: características e interfaces da secularização nos dias de hoje




As características e interfaces da secularização foram o tema abordado pelo filósofo canadense Charles Taylor no quarto dia de sua jornada na Unisinos, em 29-04-2013, às 14h30min, a convite do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A reportagem é de Márcia Junges.

Autor do mundialmente conhecido Uma era secular (São Leopoldo: Unisnos, 2010), Taylor afirmou que a modernidade tem em seu bojo a secularização no sentido do declínio da fé e da sua prática. Havia duas formas de conceber isso, parecendo um processo inevitável. Primeiramente, a ciência mostra que as ideias religiosas não tinham mais validade, e que o desenvolvimento da ciência eliminaria a fé religiosa. Em segundo lugar, as religiões do passado estavam ligadas a certas formas sociais, a comunidades hierárquicas. Pensava-se que quando essas estruturas desaparecessem, a religião desaparecia junto. “Meu livro foi uma tentativa de iniciar um novo conjunto de ideias, e pressupõe a bancarrota da tese original da secularização e pergunta como a entendemos hoje”, disse aos ouvintes na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros.

E acrescentou: “Um aspecto do que quero dizer é que a própria secularização é mais complexa e multifacetada do que simplesmente o declínio da fé ou da prática religiosa. Tem havido dados significativos no Hemisfério Norte desses aspectos, mas isso não se encaixa com a modernidade porque há uma diferença tremenda na forma da prática e fé religiosa entre os vários países dessa parte do mundo, que eram todos modernos e tinham características progressivas. O impacto sobre a vida religiosa disso foi muito diferenciado”.

Entretanto, continua Taylor, sua obra é uma tentativa de ampliar o quadro do que a secularização poderia significar. “Sugeri que ela não era apenas o declínio da fé religiosa, mas havia outros aspectos em jogo”. Havia outras facetas da vida dos países que poderiam ser vistas em termos de secularização, como a evolução de uma forma de sociedade em que se concebe como normal que o Estado não esteja alinhado com nenhuma confissão específica, ou como era no passado nos EUA, com o cristianismo protestante. O Estado, portanto, não está mais alinhado com ideologia leiga ou antirreligiosa.

A secularização era uma tentativa de se ter uma sociedade na qual as opções metafísicas e religiosas fossem livres e iguais e houvesse liberdade de expressão. Taylor ressalvou que a obra Uma era secular foi escrita tendo como horizonte o Hemisfério Norte, e não cobre as singularidades da Índia, China e sociedades islâmicas, por exemplo.

Ética da autenticidade

Outra dimensão da secularização se pode descrever como a situação cambiante da vida religiosa na sociedade, observa Taylor. Essa nova forma de olhar a religião muda em termos de que cessamos de entender esses desdobramentos de modo linear. Está claro que o tipo de vida religiosa da Idade Média iria mudar de forma radical, entre católicos e protestantes. Floresceu então uma nova forma de religião depois desse momento histórico. “Novos desafios vieram, e isso será infinito”, observou.

Nos séculos XVII e XVIII entra em voga uma noção de desconexão da ordem cósmica, e os pensadores sugerem que as pessoas vivem em sociedade graças aos contratos que firmam para se agruparem. Isso abriu a possibilidade para que se dissesse que muitas das exigências das igrejas eram desnecessárias e inválidas - particularmente as lutas da Igreja Católica ocorreram a partir dessa constatação. Na verdade, muitas vezes, a Igreja Católica combatia os protestantes que iam nessa direção. Se dá, assim, um solapamento das formas religiosas, que se reconstruíram no presente. Esse foi o primeiro impulso moral e político da secularização.

No século XIX, depois que o pensamento religioso inicial tinha se estruturado em torno do design inteligente, com a ideia de um criador benevolente, essa concepção e Deus como o projetista de um universo perfeitamente benigno, vem a teoria da evolução de Darwin. Outra crise surge mais recentemente, e que afeta a nós hoje, no Hemisfério Norte: trata-se do desenvolvimento na segunda metade do século XX do que eu chamaria de ética da autenticidade. É uma transposição ou mudança numa estrutura do marco de referência ético ocidental, no qual concebemos que o ser humano deve realizar certas essencialidades. A chave para isso é a razão.

O cristianismo introduziu um modelo de igualdade entre todos os seres humanos, o que também foi acompanhado por um modelo de diversidade. São Paulo fala nos carismas, e os portadores desses dons são iguais, juntos na mesma igreja. Não se trata apenas de sermos seres humanos, mas de prestar atenção à forma própria, particular, de ser humano, os critérios culturais particulares que não fogem da questão ética.

O que é notável é que na segunda metade do século XX essa ética, que costumava ser das elites culturais desde o fim do século XVIII, passa a ser difundida no Hemisfério Norte. Nos EUA as pessoas falam de ser quem se é de verdade, e isso se tornou algo muito fundamental na sociedade atual. Isso se desdobrou na moralidade dos costumes sexuais, como na década de 1960 do século XX. Para os defensores de causas como o casamento gay, por exemplo, as identidades devem ser respeitadas. Para eles, eliminar as diferenças é inaceitável.

Buscadores, espiritualidade e não religiosidade

As pessoas se concebem como buscadoras: não há mais uma sociedade com uma só confissão. Pelo contrário, a diversificação é notável, na qual as pessoas jovens buscam outras coisas que seus pais sequer sonharam antigamente. Em meio a essa cultura híbrida, se está consciente de que novas possibilidades são acrescentadas o tempo todo. Muitas pessoas se veem como espiritualizadas, mas não religiosas. O que está na mente de alguém assim? As pessoas não querem que alguém diga o que devem fazer e pensar, mas estão buscando algum tipo de direção espiritual e prática que permita se mover em direção daquela prática espiritual. Esse foi um dos questionamentos mais recentes, assinalou o filósofo.

Outro aspecto apontado por Taylor é que no Hemisfério Norte existe uma cisão entre as pessoas que se envolveram em alguma busca espiritual e entraram alguma espécie de cristianismo e outras que tomaram uma direção diversa. Há pessoas que ainda querem viver o cristianismo que seus pais e avós professavam. Há um hiato enorme, diz Taylor, que muitas vezes se expressa em termos de hostilidade. A própria Igreja Católica está cindida. A situação de crer e não crer é muito diferente do passado. No século XVIII havia a polaridade entre católicos e protestantes. Atualmente, isso não se reconhece entre os jovens, no qual o número de possibilidades não está definido com clareza. É uma secularização que não implica em sociedade rígida em termos de pertença religiosa. Isso coloca desafios tremendos.

Outro desafio que está surgindo no bojo do novo desenvolvimento. Para Taylor, “no terceiro tipo de secularização você desconecta o que havia antes. Seu pertencimento político não tem nada a ver com a pertença religiosa. Há outro tipo de conexão e reconexão que está acontecendo, inclusive fora do Atlântico Norte”. O pertencimento confessional e político se torna um marcador em torno do qual as pessoas se agrupam. É o caso da Iugoslávia e da Irlanda do Norte, destacou.

Sobre o pentecostalismo, o filósofo mencionou que no início do século XX percebemos elementos muito ortodoxos e conectados com o passado. “Esse tipo de religião é tremendamente inventivo e abre espaço para as necessidades religiosas das pessoas em formas diversas. Sua organização não é tão hierárquica quanto a da Igreja Católica, por exemplo. E o pentecostalismo está crescendo tanto que tem quase meio bilhão de adeptos no mundo de hoje”. Isso é um produto desse tipo de modernidade secularizada, onde o peso e importância de igrejas com longa história estabelecida estão sendo questionadas. Para os adeptos dessas religiões, é importante encontrar seu próprio caminho e salvação. Existe sempre a perspectiva de encontrar uma salvação pessoal.

No momento do debate com o público, o teólogo Roque Junges, professor da Unisinos, apontou que a religião tem sido bem mais experiencial e sincrética, sobretudo no Brasil. Falou, ainda, sobre o peso da bancada evangélica em nosso país, solicitando que Taylor fizesse ponderações sobre esses aspectos. Assim, o filósofo refletiu sobre esse tema dizendo que o uso da religião como ferramenta de mobilização política é bastante perigoso. “Isso distorce a religião”. Quanto ao sincretismo, mencionou que por muitos séculos na Índia havia um sincretismo claro e que convivia de forma harmoniosa. “Penso que o clamor contra o sincretismo leva a distorções como a violência. E isso é desnecessário”, argumentou.

Respondendo à pergunta de Taís Pereira, doutoranda do curso de Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, Taylor argumentou que o conceito de sagrado de Durkheim chegou ao limite em nossa era. “As sociedades antes eram muito unidas em torno do sagrado. Depois, deu-se uma guinada saindo do único tipo de sagrado que as unia. Assim, a teoria desse sociólogo chegou a um ponto em que a realidade se distanciou dela”.

Democracia e secularização

O desenvolvimento de algumas tecnologias aumenta o poder de certas ilusões, como o de que podemos facilmente podemos criar seres humanos através da engenharia genética. Isso é uma espécie de contrassenso, pontuou Taylor. “Os genes funcionam de forma muito mais holística”. Por outro lado, a revolução nas comunicações é outro aspecto importante da tecnologia, disse. Seus efeitos são importantes politicamente. Mas existe um incentivo a uma irresponsabilidade total, em função do anonimato a que se podem filiar as pessoas.

O filósofo canadense recuperou, também, a gênese do uso da palavra secularização, que foi adotada pela primeira vez na Alemanha, no século XVI. Ele pontuou que Herder e Humbolt valeram-se desse conceito, e disse que era possível, sim, pensar que as ideias de Paulo de Tarso sobre igualdade tenham sido transportas para o campo político através da democracia.




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