As características e interfaces da secularização foram o
tema abordado pelo filósofo canadense Charles Taylor no quarto dia de sua
jornada na Unisinos, em 29-04-2013, às 14h30min, a convite do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU. A reportagem é de Márcia Junges.
Autor do mundialmente conhecido Uma era secular (São
Leopoldo: Unisnos, 2010), Taylor afirmou que a modernidade tem em seu bojo a
secularização no sentido do declínio da fé e da sua prática. Havia duas formas
de conceber isso, parecendo um processo inevitável. Primeiramente, a ciência
mostra que as ideias religiosas não tinham mais validade, e que o
desenvolvimento da ciência eliminaria a fé religiosa. Em segundo lugar, as
religiões do passado estavam ligadas a certas formas sociais, a comunidades
hierárquicas. Pensava-se que quando essas estruturas desaparecessem, a religião
desaparecia junto. “Meu livro foi uma tentativa de iniciar um novo conjunto de
ideias, e pressupõe a bancarrota da tese original da secularização e pergunta
como a entendemos hoje”, disse aos ouvintes na Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros.
E acrescentou: “Um aspecto do que quero dizer é que a
própria secularização é mais complexa e multifacetada do que simplesmente o
declínio da fé ou da prática religiosa. Tem havido dados significativos no
Hemisfério Norte desses aspectos, mas isso não se encaixa com a modernidade
porque há uma diferença tremenda na forma da prática e fé religiosa entre os
vários países dessa parte do mundo, que eram todos modernos e tinham
características progressivas. O impacto sobre a vida religiosa disso foi muito
diferenciado”.
Entretanto, continua Taylor, sua obra é uma tentativa de
ampliar o quadro do que a secularização poderia significar. “Sugeri que ela não
era apenas o declínio da fé religiosa, mas havia outros aspectos em jogo”.
Havia outras facetas da vida dos países que poderiam ser vistas em termos de
secularização, como a evolução de uma forma de sociedade em que se concebe como
normal que o Estado não esteja alinhado com nenhuma confissão específica, ou
como era no passado nos EUA, com o cristianismo protestante. O Estado,
portanto, não está mais alinhado com ideologia leiga ou antirreligiosa.
A secularização era uma tentativa de se ter uma sociedade na
qual as opções metafísicas e religiosas fossem livres e iguais e houvesse
liberdade de expressão. Taylor ressalvou que a obra Uma era secular foi escrita
tendo como horizonte o Hemisfério Norte, e não cobre as singularidades da
Índia, China e sociedades islâmicas, por exemplo.
Ética da autenticidade
Outra dimensão da secularização se pode descrever como a
situação cambiante da vida religiosa na sociedade, observa Taylor. Essa nova
forma de olhar a religião muda em termos de que cessamos de entender esses
desdobramentos de modo linear. Está claro que o tipo de vida religiosa da Idade
Média iria mudar de forma radical, entre católicos e protestantes. Floresceu
então uma nova forma de religião depois desse momento histórico. “Novos
desafios vieram, e isso será infinito”, observou.
Nos séculos XVII e XVIII entra em voga uma noção de
desconexão da ordem cósmica, e os pensadores sugerem que as pessoas vivem em
sociedade graças aos contratos que firmam para se agruparem. Isso abriu a
possibilidade para que se dissesse que muitas das exigências das igrejas eram
desnecessárias e inválidas - particularmente as lutas da Igreja Católica
ocorreram a partir dessa constatação. Na verdade, muitas vezes, a Igreja
Católica combatia os protestantes que iam nessa direção. Se dá, assim, um
solapamento das formas religiosas, que se reconstruíram no presente. Esse foi o
primeiro impulso moral e político da secularização.
No século XIX, depois que o pensamento religioso inicial
tinha se estruturado em torno do design inteligente, com a ideia de um criador
benevolente, essa concepção e Deus como o projetista de um universo
perfeitamente benigno, vem a teoria da evolução de Darwin. Outra crise surge
mais recentemente, e que afeta a nós hoje, no Hemisfério Norte: trata-se do
desenvolvimento na segunda metade do século XX do que eu chamaria de ética da
autenticidade. É uma transposição ou mudança numa estrutura do marco de
referência ético ocidental, no qual concebemos que o ser humano deve realizar
certas essencialidades. A chave para isso é a razão.
O cristianismo introduziu um modelo de igualdade entre todos
os seres humanos, o que também foi acompanhado por um modelo de diversidade.
São Paulo fala nos carismas, e os portadores desses dons são iguais, juntos na
mesma igreja. Não se trata apenas de sermos seres humanos, mas de prestar
atenção à forma própria, particular, de ser humano, os critérios culturais
particulares que não fogem da questão ética.
O que é notável é que na segunda metade do século XX essa
ética, que costumava ser das elites culturais desde o fim do século XVIII,
passa a ser difundida no Hemisfério Norte. Nos EUA as pessoas falam de ser quem
se é de verdade, e isso se tornou algo muito fundamental na sociedade atual.
Isso se desdobrou na moralidade dos costumes sexuais, como na década de 1960 do
século XX. Para os defensores de causas como o casamento gay, por exemplo, as
identidades devem ser respeitadas. Para eles, eliminar as diferenças é
inaceitável.
Buscadores, espiritualidade e não religiosidade
As pessoas se concebem como buscadoras: não há mais uma sociedade
com uma só confissão. Pelo contrário, a diversificação é notável, na qual as
pessoas jovens buscam outras coisas que seus pais sequer sonharam antigamente.
Em meio a essa cultura híbrida, se está consciente de que novas possibilidades
são acrescentadas o tempo todo. Muitas pessoas se veem como espiritualizadas,
mas não religiosas. O que está na mente de alguém assim? As pessoas não querem
que alguém diga o que devem fazer e pensar, mas estão buscando algum tipo de
direção espiritual e prática que permita se mover em direção daquela prática
espiritual. Esse foi um dos questionamentos mais recentes, assinalou o
filósofo.
Outro aspecto apontado por Taylor é que no Hemisfério Norte
existe uma cisão entre as pessoas que se envolveram em alguma busca espiritual
e entraram alguma espécie de cristianismo e outras que tomaram uma direção
diversa. Há pessoas que ainda querem viver o cristianismo que seus pais e avós
professavam. Há um hiato enorme, diz Taylor, que muitas vezes se expressa em
termos de hostilidade. A própria Igreja Católica está cindida. A situação de
crer e não crer é muito diferente do passado. No século XVIII havia a
polaridade entre católicos e protestantes. Atualmente, isso não se reconhece
entre os jovens, no qual o número de possibilidades não está definido com
clareza. É uma secularização que não implica em sociedade rígida em termos de
pertença religiosa. Isso coloca desafios tremendos.
Outro desafio que está surgindo no bojo do novo
desenvolvimento. Para Taylor, “no terceiro tipo de secularização você
desconecta o que havia antes. Seu pertencimento político não tem nada a ver com
a pertença religiosa. Há outro tipo de conexão e reconexão que está
acontecendo, inclusive fora do Atlântico Norte”. O pertencimento confessional e
político se torna um marcador em torno do qual as pessoas se agrupam. É o caso
da Iugoslávia e da Irlanda do Norte, destacou.
Sobre o pentecostalismo, o filósofo mencionou que no início
do século XX percebemos elementos muito ortodoxos e conectados com o passado.
“Esse tipo de religião é tremendamente inventivo e abre espaço para as
necessidades religiosas das pessoas em formas diversas. Sua organização não é
tão hierárquica quanto a da Igreja Católica, por exemplo. E o pentecostalismo
está crescendo tanto que tem quase meio bilhão de adeptos no mundo de hoje”.
Isso é um produto desse tipo de modernidade secularizada, onde o peso e
importância de igrejas com longa história estabelecida estão sendo
questionadas. Para os adeptos dessas religiões, é importante encontrar seu
próprio caminho e salvação. Existe sempre a perspectiva de encontrar uma
salvação pessoal.
No momento do debate com o público, o teólogo Roque Junges,
professor da Unisinos, apontou que a religião tem sido bem mais experiencial e
sincrética, sobretudo no Brasil. Falou, ainda, sobre o peso da bancada
evangélica em nosso país, solicitando que Taylor fizesse ponderações sobre
esses aspectos. Assim, o filósofo refletiu sobre esse tema dizendo que o uso da
religião como ferramenta de mobilização política é bastante perigoso. “Isso
distorce a religião”. Quanto ao sincretismo, mencionou que por muitos séculos
na Índia havia um sincretismo claro e que convivia de forma harmoniosa. “Penso
que o clamor contra o sincretismo leva a distorções como a violência. E isso é
desnecessário”, argumentou.
Respondendo à pergunta de Taís Pereira, doutoranda do curso
de Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, Taylor
argumentou que o conceito de sagrado de Durkheim chegou ao limite em nossa era.
“As sociedades antes eram muito unidas em torno do sagrado. Depois, deu-se uma
guinada saindo do único tipo de sagrado que as unia. Assim, a teoria desse
sociólogo chegou a um ponto em que a realidade se distanciou dela”.
Democracia e secularização
O desenvolvimento de algumas tecnologias aumenta o poder de
certas ilusões, como o de que podemos facilmente podemos criar seres humanos
através da engenharia genética. Isso é uma espécie de contrassenso, pontuou
Taylor. “Os genes funcionam de forma muito mais holística”. Por outro lado, a
revolução nas comunicações é outro aspecto importante da tecnologia, disse.
Seus efeitos são importantes politicamente. Mas existe um incentivo a uma
irresponsabilidade total, em função do anonimato a que se podem filiar as
pessoas.
O filósofo canadense recuperou, também, a gênese do uso da
palavra secularização, que foi adotada pela primeira vez na Alemanha, no século
XVI. Ele pontuou que Herder e Humbolt valeram-se desse conceito, e disse que
era possível, sim, pensar que as ideias de Paulo de Tarso sobre igualdade
tenham sido transportas para o campo político através da democracia.
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