Em seu bonito poema sobre a morte de Tolstoi, Mario Quintana errou por dois anos a idade do defunto (que já tinha 82), mas acertou no fundamental: o “grande Velho” talvez tenha morrido feliz, por haver concretizado, enfim, um sonho de infância: fugir de casa. O Conde Leão Tolstoi apagou de vez sob o teto do chefe da estação de trem da modesta Astapovo, que há 90 anos leva o nome de quem a tornou mundialmente conhecida. Fugia de casa, da mulher, dos adulões, em busca de uma reclusão monacal, mas não viajou nem morreu sozinho, abandonado num dos “bancos lustrosos” da gare, aludidos por Quintana. Com ele estavam seu médico particular e Sasha, a filha caçula.
Seria impossível ao mais célebre e cultuado russo daquele tempo desaparecer discreta e solitariamente. Muito menos em meio a uma fuga que, tão logo iniciada, dez dias antes, transformara-se numa épica caçada internacional, com a participação de jornalistas de toda a Europa. Tolstoi sucumbiu às consequências de uma pneumonia, ao raiar o dia 20 de novembro de 1910, às 6h05, hora que para sempre ficou congelada nos relógios da gare de Astapovo. Uma multidão acompanhou o velório, o cortejo, o enterro e, antes disso, a tumultuosa chegada de Sofia, a esposa abandonada, a quem só permitiram ver de perto o marido quando ele já estava inconsciente.
A morte de Tolstoi foi o primeiro grande evento midiático da Rússia acompanhado por câmeras fotográficas e cinematográficas, relatado por telegramas e imagens de cinejornais, as primeiras das quais chegaram a Paris em apenas 48 horas, com o selo da Pathé Films. Até hoje o circo que se armou em Astapovo é motivo de curiosidade e inspiração para historiadores (vide The Death of Tolstoy, de William Nickell, lançado em maio) e até ficcionistas, que o consideram o marco divisório entre a Rússia czarista que então definhava e a Rússia moderna que sete anos depois surgiria no rastro da revolução bolchevique.
Em 1917, o correspondente em Moscou do New York Times atribuiu a sublevação comunista aos “tolstoístas”, fanáticos seguidores das ideias vagamente “de esquerda” do escritor, tolice só em parte desculpável pelo pouco que se conhecia dos bolcheviques, ainda vistos por observadores de fora como uma malta de mujiques ripongas. O czar Nicolau pôs o escritor sob a vigilância de seus secretas, tentou censurar seus escritos e boicotar seu funeral, Lenin viu em sua obra um reflexo dos ideais revolucionários comunistas, mas a influência de Tolstoi e sua morte sobre os acontecimentos que culminaram com a tomada do poder pelos bolcheviques foi sobretudo (ou apenas) simbólica.
Em sua notável estreia na ficção, The Comisariat of Enlightment: A Novel (O Comissariado das Luzes: Um Romance), Ken Kalfus reconstitui a Revolução de Outubro e a posterior doutrinação em massa do povo russo por Lenin e Stalin a partir do frenesi jornalístico que sacudiu a mansidão de Astapovo, na terceira semana de novembro de 1910. No mesmo vagão de um trem, Kalfus alojou um cinegrafista russo, Kolya Gribshin, subordinado a Georges Meyer, o verdadeiro cameraman encarregado pela Pathé de cobrir a chegada de Sofia a Astapovo, o correspondente de um jornal britânico e o anatomista Vladimir Vorobev, a quem mais tarde caberia embalsamar Lenin e Stalin.
O romance, lançado em 2004, é uma tragicomédia com personagens reais e imaginários, na qual Sofia, rompendo com o clichê, não é reduzida a uma mulher impossível, a uma louca insuportável que Tolstoi já deixou tarde. São grandes as suspeitas de que ela, sra. Tolstoi durante 48 anos, tenha sido injustiçada pelos que se ocuparam de manter o escritor, imaculado, num pedestal messiânico. Ambos tinham defeitos, mas por que tanta intransigência com uma mulher que afinal pariu 13 filhos do conde, serviu-lhe de copista e resignou-se a aturar o isolamento rural, o estilo de vida espartano e o vegetarianismo por ele impostos ao casal, mais as hostilidades de Chertkov, assistente e xodó do escritor, e as constantes romarias de tietes até o retiro de Iasia Poliana?
Os diários de Sofia, só há pouco divulgados, e as recentes biografias escritas por Rosamund Bartlett (sobre Tolstoi) e Alexandra Popoff (sobre Sofia), nos revelam uma mulher bem diferente daquela a quem até já acusaram de haver envenenado o marido. Em outro expressivo début literário, The Possessed: Adventures with Russian Books (Os Possuídos: Aventuras com Romances Russos), publicado no início deste ano, a americana de origem turca Elif Batuman levanta a tese de que Tolstoi teria sido assassinado, mas não incrimina Sofia. Os “possessed” do título são uma referência aos “demônios” de Dostoievski, que na canônica tradução de Constance Garnett para o inglês viraram “possuídos”.
Batuman concentra suas suspeitas nas ameaças por carta que Tolstoi recebeu, em 1897, por haver defendido os religiosos de uma seita camponesa. Mas, a despeito das perseguições que a Igreja Ortodoxa e o czar lhe moveram, a tese de assassinato não se sustenta sob o peso da idade e do histórico cardíaco do escritor. Se não morreu feliz, tranquilo desta Tolstoi se foi, pois já se sabia imortal. Um mês depois, segundo Virginia Woolf, “o ser humano” mudou e o modernismo nasceu. Tolstoi desdenhava os modernistas, que no entanto muito lhe devem. Seus monólogos interiores anteciparam o fluxo de consciência de Joyce. Também em suas obras brotou o distanciamento crítico de Brecht. O leão do realismo literário fechou um passado e abriu um futuro.
Sergio Augusto
Prosa de Sábado-O Estado de S.Paulo
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