domingo, 5 de dezembro de 2010

O Tango

Onde estarão? Pergunta a elegia

Sobre os que já não são, como se houvesse

Uma região onde o Ontem pudesse

Ser o Hoje, o Ainda, o Todavia.

Onde estará (repito) esse selvagem

Que ergueu, em tortuosas azinhagas

De terra ou em perdidas plagas,

A seita do punhal e da coragem?

Onde estarão aqueles que passaram,

Deixando à epopeia um episódio,

Uma fábula ao tempo, e que sem ódio,

Lucro ou paixão de amor se esfaquearam?

Procuro-os na lenda, na apagada

Brasa que, como uma indecisa rosa,

Conserva dessa chusma valorosa

De Corrales e Balvanera um nada.

Que escuras azinhagas ou que ermo

Do outro mundo habitará a dura

Sombra daquele que era sombra escura,

Muranã, essa faca de Palermo?

E esse Iberra (tenham dele piedade

Os santos) que na ponte duma via,

Matou o irmão, Ñato, que devia

Mais mortes que ele, ficando em igualdade?

Uma mitologia de punhais

No esquecimento aos poucos se desgasta.

E dispersou-se uma canção de gesta

Em sórdidas notícias policiais.

Há outra brasa, outra candente rosa

Dos seus restos totais conservadores;

Aí estão os soberbos matadores

E o peso da adaga silenciosa.

Embora a adaga hostil ou essa adaga,

O tempo, os dispersassem pelos lodos,

Hoje, p’ra além do tempo e da aziaga

Morte, no tango vivem eles todos.

Na música prosseguem, na mensagem

Das cordas da viola trabalhosa,

Que tece na toada venturosa

A festa, a inocência da coragem.

Vejo a roda amarela circular

Com leões e cavalos, oiço o eco

Desses tangos de Arolas e de Greco

Que vi bailar no meio da vereda,

Num instante que emerge hoje isolado,

Sem antes nem depois, contra o olvido,

E que tem o sabor do que, perdido,

Perdido está mas foi recuperado.

Os acordes conservam velhas cousas:

Ou a parreira ou o pátio ancestral.

(E por trás das paredes receosas

O Sul tem uma viola, um punhal.)

O tango, essa rajada, diabrura,

Os trabalhosos anos desafia;

Feito de pó e tempo, o homem dura

Menos que a leviana melodia,

Que é tempo somente. O tango cria

Um passado irreal, real embora.

Recordação que não pôde ir-se embora

Morta na luta, algures na periferia.



Jorge Luis Borges



Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue. Selecção e Trad. Ruy Belo.

Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.43-47

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