Cada momento passado juntos
Era uma celebração, uma Epifania,
Nós os dois sozinhos no mundo,
Tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
Descias numa vertigem a escada
A dois e dois, arrastando-me
Através dos húmidos lilases, aos teus domínios
Do outro lado, passando o espelho
Pela noite concedias-me o favor,
Abriam-se as portas do altar
E a nossa nudez iluminava o escuro
À medida que genuflectia. E ao acordar
Eu diria «Abençoada sejas!»
Sabendo como pretenciosa era a bênção:
Dormias, os lilases tombavam da mesa
Para tocar-te as pálpebras num universo de azul,
E tu recebias esse sinal sobre as pálpebras
Imóveis, e imóvel estava a tua mão quente.
Rios palpitantes por dentro do cristal,
A montanha assomando na bruma, mar enfurecido,
E tu com a bola de cristal nas mãos,
Sentada num trono enquanto dormes,
- Deus do céu! – tu pertences-me.
Acordas para transfigurar
As palavras de todos os dias,
E o teu discorrer transbordante
De poder revela na palavra «tu»
O seu novo sentido: significa «rei».
Simples objectos transfigurados,
Tudo – a bacia, o jarro -, tudo
Uma vez de sentinela entre nós
Se torna límpido, laminar e firme.
Íamos, sem saber por onde,
Perseguidos por miragens de cidades
Derrotadas construídas no milagre,
Hortelã pimenta a nossos pés,
As aves acompanhando-nos o voo,
E no rio os peixes à procura da nascente;
O céu, a nós se abrindo.
Porque o destino seguia-nos o rastro
Como um louco com uma navalha na mão.
Arseny Tarkovsky.
« 8 Ícones». Versão de Paulo da Costa Domingos.
Assíro&Alvim, Lisboa, 1987., p.15-19
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