Língua ferina, coração de manteiga: assim sintetizado Marques
Rebêlo passou pela vida (1907- 1973). Sempre independente, à margem das modas,
panelinhas e facções ideológicas: assim Marques Rebêlo passou pela vida
literária.
Franco, polemista e maledicente, em guerra constante com
"os escritores de coquetel, profissionais da noite de autógrafo, mais
atores do que escritores", tantos desafetos fez entre seus pares que se
chegou a duvidar de sua eleição para a Academia Brasileira de Letras, para a
qual entrou tranquilamente, ele certo de que contribuiria para elevar o nível
da instituição, esta crente que havia domado o escritor. Vãs aspirações.
Se sua franca e indomável irreverência não conseguiu
eclipsar os méritos literários a que afinal se dobraram os acadêmicos, a ela se
pode atribuir a parcimoniosa divulgação que lhe davam as colunas e os
suplementos de livros, a despeito do seu enorme prestígio entre os críticos e
da considerável popularidade de sua ficção, desde o primeiro livro de contos
(Oscarina, 1931), ainda à venda nas livrarias, como quase todos os seus
romances, um dos quais (A Estrela Sobe) transformado em sucesso cinematográfico
um ano depois da morte do escritor.
O sarcástico Oswald de Andrade também empilhou inimizades,
mas não tinha o, como direi?, recato de seu colega carioca, aliás, carioquíssimo,
o mais carioca dos ficcionistas depois de Manuel Antônio de Almeida, autor de
Memórias de um Sargento de Milícias, a quem Rebêlo dedicou um estudo
biográfico, e Lima Barreto. Bela linhagem, que remonta a Machado e desemboca em
Rubem Fonseca.
Seu Rio de Janeiro era o da vida miúda suburbana, da pequena
burguesia de sentimentos mornos e existência medíocre, confinada em vilas, ruas
humildes e pensões, dos pequenos funcionários públicos e privados que só andam
de bonde, das donas de casa anônimas e estoicas e das mocinhas que sonham com
glórias que jamais terão. Essa fauna está presente até em seu roman-fleuve
sobre a vida literária no Rio dos anos 1930, O Trapicheiro (512 págs., R$ 52),
que a José Olympio acaba de relançar.
Fleuve desde o título. Trapicheiro é o nome de um pequeno
rio que nasce no Maciço da Tijuca e acompanha a vida do narrador da infância à
idade adulta. Quem tudo narra, em forma de diário, é um escritor chamado
Eduardo, às voltas com a feitura de um romance intitulado A Estrela. Óbvio
alter ego de Rebêlo, através dele acompanhamos todo um ciclo da história
brasileira desde o fim do Império, pois no diário, balizado entre 1936 e 1938,
com a serpente estado-novista a chocar seu ovo, há brechas para reminiscências
que a Eduardo chegaram através do pai.
Falou-se muito na influência que Jules Renard e seu Journal
teriam exercido sobre Rebêlo, e por ele próprio assumida, mas seu memorialista
faz parte de uma linhagem bem nossa, a que pertencem o conselheiro Aires
machadiano, o Anselmo de A Conquista (de Coelho Neto) e o escrivão Isaías
Caminha de Lima Barreto.
Além de fleuve, um roman à clef. Um conhecedor do meio
intelectual da época não terá muita dificuldade em identificar atrás dos
imaginários literatos que desfilam em suas páginas as figuras de Tristão de
Athayde (com quem Rebêlo brigou e depois fez as pazes, mais ainda estavam
brigados quando Athayde cobriu O Trapicheiro de elogios), Augusto Frederico
Schmidt (outro desafeto), Jorge Amado (que Rebêlo achava desleixado), Gilberto
Freyre, Manuel Bandeira, Lasar Segall, Santa Rosa, Alvaro Lins, José Lins do
Rego, entre outras, reais e nominalmente mencionadas, como Graça Aranha.
Eis como Eduardo registra em seu diário o lançamento de uma
revista literária, em janeiro de 1937:
"Com o título todo em minúsculas e prévias girândolas
de publicidade nos suplementos dominicais, saiu hoje o primeiro número de Arte
e Literatura, quinzenário de pouca arte e pouquíssima literatura, com João
Soares no rodapé crítico alinhando maçudas banalidades, e Gustavo Orlando
pontificando sobre coisas de que não entende".
Não faltaram capuças nos arredores da ABL e da Livraria São
José.
Mistura de ficção e realidade, fragmentário e cíclico, O
Trapicheiro foi um corpo estranho no panorama editorial do fim da década de 50,
ainda sitiado pela literatura regionalista, que Rebêlo, embora amigo e
admirador de Graciliano Ramos, detestava, "feita por gente com o traseiro
no Café Simpatia e o coração lá na terrinha agreste", dizia. Primeira
parte de uma saga intitulada O Espelho Partido, prevista para espichar-se,
proustianamente, por sete volumes, mas que a morte do autor condenou a três
tomos (A Mudança, 1963, e A Guerra Está Entre Nós, 1969, as outras) e um quarto
(A Paz Não É Branca) apenas bosquejado.
Ainda que, a exemplo da trilogia Os Sonâmbulos, de Hermann
Broch, possam ser lidos separadamente, não entendi por que a José Olympio
reeditou a série fora de ordem: em 2009 o terceiro tomo, agora o primeiro, ano
que vem o segundo. No início da década, a Nova Fronteira reeditou O Trapicheiro
e A Mudança. É sempre bem-vinda qualquer reedição de Rebêlo, cuja prosa urbana,
moderna, ao mesmo tempo lírica e maliciosa, realista e distanciada, encantou
até autores por ele desdenhados ou pichados.
Nenhum dos grandes críticos literários - de Mário de Andrade
(que se afligia um pouco com o "pessimismo" do escritor) a Wilson
Martins e Alfredo Bosi, passando por Otto Maria Carpeaux, Alvaro Lins e Mario
da Silca Brito - economizou nos adjetivos à sua obra. Que ninguém duvide: Rebêlo
foi a maior contribuição de Vila Isabel à cultura brasileira depois de Noel
Rosa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário