quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Minha vida com Sartre




Era Sartre mesmo. Nem precisava resmungar que o inferno são os outros

Foi breve, porém inesquecível, e sobretudo enriquecedor, o meu convívio com Jean-Paul Sartre. Pode ser contado em dois capítulos,ambientados ambos em Paris.

O primeiro data de um remoto dia de primavera em que eu batia pernas pela calçada do cemitério de Montparnasse, perto de onde morava – quando à frente distingui um vulto recurvo que avançava a passos titubeantes. Acelerei a marcha e,emparelhados, tirei a dúvida: ele mesmo!Para prová-lo, nem precisaria resmungar que o inferno são os outros.

Comonos romances, girei nos calcanhares e, senhor ainda de algum pique juvenil, dei a volta ao cemitério em que, anos mais tarde, Jean-Paul e Simone haveriam de pela primeira (e definitiva) vez coabitar.

Agora estávamos frente a frente,e Sartre me olhava torto, mas não com antipatia ou náusea (ao menos assim me pareceu), uma das mãos segurando o cachimboque lhe tornara a boca igualmente torta. Era a chance, talvez única, de travar um diálogo com o filósofo da minha admiração. Àquela altura da vida, tinha eu falado com tanta gente – mas com Jean-Paul Sartre ainda não trocara uma só palavra!

Sobre o queiríamos dialogar? Existencialismo? Não, tema batido demais, ele provavelmente enjoara de tanto ser solicitado a discorrer a respeito. A recusa do prêmio Nobel em 1964? Não, talvez não gostasse de falar do gesto não só inédito como desastroso,pois lhe custara um cheque de centenas de milhares de dólares. Sobre o que, então? Faltaram- me as palavras e a imaginação.

Há no que vou dizer uma ponta de vulgar deslumbramento, admito, mas o fato é que,como se fora tiete, senti vontade de puxar papo, qualquer papo,com Jean-Paul Sartre.Tenho às vezes dessas coisas. Mais tarde, pela vida afora (neste momento, por exemplo), eu estaria habilitado a enfiar algo assim entre os gomos de minha conversação:
– Certa vez, flanando com Jean-Paul em Paris, eu dizia a ele que...
– Jean-Paul? – cortaria uma das antas presentes. – Quem é Jean-Paul?
– Ora, ora – reagiria eu, coma escassa paciência que tenho para os ignaros. – Jean-Paul Sartre, pô.

Diria o quê a Jean-Paul em nossa caminhada peripatética? Assunto é que não me faltava:
–Com licença, o senhor tem fogo?
– Sim – responderia Sartre, emergindo de seus enovelados pensamentos, e, com aqueles dedos nodosos de tanto escrever e amarelados de tanto fumar Gauloises, estenderia um isqueirinho de plástico com que não teria sonhado minha vã filosofia, comprado talvez no mesmo tabac fuleiro de que eu era freguês.
–Ah,obrigado,senhor–diriaeu,acendendo com chama sartreana o meu repulsivo Bouled’Or de estudantedes monetarizado.

Poderia, sim, tem tido um diálogo completo – pergunta, resposta – com o notável filósofo. Optei, porém, por não turvar o seu recolhimento,em cujo âmago poderia estar sendo gestada alguma reflexão seminal, ditada quem sabe pela ideia da finitude humana (não bordejávamos um cemitério?), a ser mais tarde destilada em livro. Num gesto de desprendimento, deixei-o ir.

Não foi muito diferente a segunda oportunidade que o destino me proporcionou. Era uma noite de sábado e eu caminhava rumo ao cinema quando um toró de verão despencou sobre o Quartier Latin. Busquei abrigo numa soleira de porta, e ali estava a meditar sobre o falecimento da bezerra quando vi que alguém tivera a mesma ideia. Sim, de novo ele, dessa vez sem cachimbo, os cabelos meio sebosos grudados no privilegiado coco pela água da chuva. Em filosofia, nem sempre,mas em logística Sartre e eu estávamos afinados.

Apenas palmo e meio nos separavam, mas em lugar de me prevalecer da contiguidade para cutucá-lo com digressões filosóficas, cujos meandros me fariam perder o cinema, recorri ao silêncio – não qualquer um, silêncio prenhe de sutis significados que não terão escapado às antenas de meu mudo interlocutor. Esperando o temporal passar, nos irmanamos na mesma tempestade cerebral.

Tudo bem, manifestou-se então meu lado mundano (sim,também eu tenho um!),mas se ao menos passasse alguém e registrasse em foto o nosso colóquio sem palavras... A legenda, pinçada na capa de um livro de meu companheiro de abrigo, já estava pronta:O Ser e o Nada.

Humberto Werneck. 23 de Outubro de 2011

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