Não saberia discutir o caso Rafael Bastos, pela mera razão
de que nunca vi o humorista. Mas o debate sobre afirmações agressivas e até
desrespeitosas - refiram-se a mulheres feias, refiram-se a homossexuais -, indo
do deputado Bolsonaro aos humoristas, é de grande importância política. Porque
está em jogo o alcance da liberdade de expressão.
Ora, o que tenho lido a respeito e constitui um quase
consenso entre os jornalistas, mas não tanto fora de seu meio, se resume assim:
é inaceitável qualquer censura. É preferível que, no mais livre debate, se
possa expressar o que há de mais odioso, porque poderá ser contestado, do que
coibir sua veiculação. Primeiro, porque se alguém tiver o poder de definir o
que é decente e indecente, o que é "do bem" ou "do mal",
esse alguém terá um poder ilimitado, que inevitavelmente empregará para
proteger e promover o seu lado e reprimir seus opositores. Segundo, porque
estamos lidando com adultos. Eles não podem ter restringido seu direito de
acesso a toda forma de opinião até porque, só pelo acesso, pelo debate, pela
exposição de ideias opostas, poderão superar o preconceito.
Creio que meu resumo é bastante fiel. Aliás, concordo com
tudo isso. Só acho que esse discurso deixa de lado dois problemas sérios. O
primeiro é que nenhuma liberdade é absoluta, nem mesmo a de expressão. Na
Alemanha, por razões óbvias, a apologia do nazismo é proibida. Na França, negar
a realidade histórica do Holocausto constitui crime. Os dois países entendem
que a expressão de ideias fascistas não deve ser tolerada, pelos males que já
causaram. Considera-se que os indivíduos não dispõem necessariamente de
antivírus contra esses perigos.
Deixam a Alemanha e a França de ser países democráticos, porque
proíbem a pregação do ódio? No Brasil, a Constituição que veda a censura manda
respeitar o nome, a reputação e a família. Qual o equilíbrio entre o direito de
se expressar livremente e a obrigação de respeitar o outro? Esse ponto tem de
ser definido. Não havendo lei de imprensa, ficam indefinidas as fronteiras
entre o direito de se expressar e o de se proteger da calúnia. Esse limbo deixa
tudo ao arbítrio do juiz.
Mas há um segundo problema - e esse me entristece. Trinta
anos atrás, vivíamos sob a ditadura mais longa de nossa história. Defender a
liberdade de expressão significava, então, lutar para que riquezas enormes
viessem à tona. Pudera: de 1964 até 1985, passamos por três fases de suspensão
até das garantias constitucionais mínimas - seis meses do Ato Institucional, em
1964, ano e meio do AI-2, entre 1965 e 1967, mais de dez anos do AI-5,
começando em 1968. Na outra metade da ditadura, mesmo sem atos institucionais,
as leis vigentes limitavam muito a liberdade. A esperança era então que a liberdade
nos trouxesse ar, vida, sensibilidade, inteligência. Quando um livro, filme ou
peça era proibido, víamos nisso um selo de qualidade. E quase sempre tínhamos
razão.
Então por que hoje, quando se fala em liberdade de
expressão, é para defender o direito a dizer e fazer o pior, não para o melhor?
Repito: não me julgo capacitado a dizer o que é bom ou mau, nem quero para mim
o poder legal de distingui-los. Mas, nos tempos que evoco, a liberdade era
vista como criativa, produtiva de melhores relações humanas. Hoje, porém,
quando ela é invocada pelos jornalistas a que aludi, é para autorizar a
expressão do que há de pior no ser humano. Mais grave que Bolsonaro, aliás, foi
o deputado paulista que acusou os negros de descenderem do filho maldito de
Noé. Aqui, saímos dos limites democráticos e entramos no âmbito do que uma
sociedade decente pode e deve castigar. Não defendo a censura. Censurar e punir
são coisas bem diferentes. A censura se faz antes. Já a punição se aplica
depois. A censura impede que se cometa um ato julgado errado. Curiosamente, ela
torna o censurado inocente e impune, porque não pôde fazer a coisa errada
(supondo que fosse mesmo errada). Mais adequada é a punição, que não impede
ninguém de dizer o que quiser, mas castiga com o rigor da lei, após processo
justo, quem agiu criminosamente de qualquer forma, inclusive com a palavra.
Mas hoje a liberdade de expressão deixou de ser selo de
qualidade para se tornar sinal de desesperança. A maior parte dos que
defenderam Rafael Bastos e outros humoristas que avançaram o sinal, pelo menos,
do bom gosto alega que qualquer limite à liberdade de expressão pode levar ao
controle dos adultos por um governo que imporá cada vez mais controles e
censuras. Eu concordo, contra a censura. Contudo, não é um triste sinal dos
tempos que hoje, quando se elogia a liberdade de expressão, seja para tolerar o
discurso vulgar, preconceituoso, que rebaixa o nível do convívio social - e não
mais para criticar o que existe de errado, apresentar utopias, fazer a razão
sonhar?
Nos tempos em que a América Latina padecia sob as ditaduras
de direita e a Europa Oriental sob as de esquerda, dizia-se que nas gavetas
havia inúmeras obras de qualidade, proibidas pela censura - e que, caindo o
regime autoritário, cem flores floresceriam. Mas isso não sucedeu. Havia menos
obras-primas proibidas do que se imaginava. Parece que, em geral, uma
obra-prima precisa de liberdade, não só para ser publicada, mas até mesmo para
ser escrita. Mas o que me entristece é ver que hoje se valoriza cada vez mais o
vulgar, o reles. Anos atrás, esperávamos que a liberdade gerasse o bom e o
ótimo. Agora, parece que o reles é a essência da liberdade, seu produto mais
constante, talvez mais importante. Só posso dizer que lastimo esse estado de
coisas.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e
filosofia política na Universidade de São Paulo.
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