A todos nós foi dada a capacidade de falar. E a alguns a de
escrever essa forma admirável de pensar. Nela, falamos sem produzir sons, mas
desenhando símbolos. O lado de dentro importa mais do que o de fora. É normal
escrever para si mesmo já o falar nos leva a um hospício. Na fala e na escrita
há ouvintes e leitores, mas na fala o interlocutor deve estar presente, pois as
palavras exigem o outro. Já na escrita, é preciso desenrolar o pergaminho,
abrir o livro ou a carta para ouvir o seu autor (ou autores) e descobrir o seu
espírito e as suas intenções. Ou imaginar o eventual leitor. Num caso, o som
tem parentesco com o barulho e o caos; no outro, há aquele silêncio que é a
marca maior do ato de escrever - essa nobre, essa soberana, essa orgulhosa e
altruística ação que só nós, humanos, conhecemos, pois o escrever fica, mas o
falar passa...
* * *
Nesta semana rotineira com correios e bancos em greve, fico
fascinado com a novidade de que o universo se expande - tal como o capitalismo
chinês - em alta velocidade. Os chamados astrofísicos são mitômanos levados a
sério, enquanto os do cinema e da televisão são jogados no lixão dessa nossa
"baixa-modernidade", como me ensinou o Eduardo Portella. No caso dos
astrofísicos, impressiona-me a sua obsessão com as origens do universo, algo
que eles compartilham com os modestos pensadores tribais, os quais são parte de
minha primeira vida como etnólogo, quando eu corria atrás de índios nas
fronteiras de um Brasil que ainda não tinha conseguido morder o próprio rabo.
Ouvi, transcrevi e li à exaustão mitos de origem. Aliás, a
mais celebrada teoria do mito - a do consagrado Claude Lévi-Strauss -, escrita
no início dos anos 50 e desenvolvida na sua fabulosa tetralogia intitulada
Mytologiques (publicada entre 1964 e 1971), os mitos existem para responder a
perguntas sem resposta. Por que o mundo foi inventado? De onde veio a
humanidade com a sua moral e os seus meios de sobrevivência? Como foi que os
animais se distinguiram dos homens? Por que são necessários dois seres humanos
para fazer um? De onde veio a morte se no início dos tempos a humanidade era
tão imortal quanto os membros da Academia Brasileira de Letras?
Os contadores de mitos das sociedades sem escrita, sem
constituição e sem cálculos complexos (até hoje estigmatizadas como
"selvagens" e "primitivas"), dizem que o humano foi
inventado num tempo imemorial, implantado pelas palavras de uma língua cuja
origem é, por sua vez, contada num outro mito pois, conforme aprendi com
Lévi-Strauss e, sorry..., com Thomas Mann, um mito pensa e remete a outro mito,
tal como a música, os livros, os deuses, a poesia e o amor se pensam
indefinidamente entre si. Assim, eles sabem como, mas não quando, o mundo
surgiu. Já os nossos astrofísicos são mais apaixonados pelo quando do que pelo
como.
Para qualquer ser humano, pensar em termos de nano-segundos
é impossível, do mesmo modo que é humanamente inconcebível imaginar uma unidade
temporal para além de 10 mil anos. Pois, tirando os poetas que, como diz Kundera,
dizem tudo, ninguém pode ter um sentimento de milhões de anos. Só uma fórmula
matemática traduz esse tempo intemporal. Mas entre a fórmula científica e a
fórmula que eu ouvia de Tia Amália quando iniciava suas histórias - "Isso
aconteceu no tempo que os animais falavam...", eu acho mais razoável e -
sorry novamente - até mesmo mais racional, ficar com Titia...
* * *
Fiz uma conferência e ganhei uma caneta-tinteiro. Na viagem
de volta, preso na dura solidão coletiva de um avião lotado pelo duopólio aéreo
instituído no lulo-petismo, escrevi o meu velho nome. Fui imediatamente
remetido a Juiz de Fora e a uma humilde escola do bairro dos operários, quando
a professora nos iniciou na nobre arte de escrever à tinta. Tomei contato com
as penas de metal que, na ponta de um cilindro de madeira da pior qualidade
(providenciada, é claro, pelo Ministério da Educação e Cultura), serviam como
instrumentos de escrita depois de serem mergulhados nos frascos cheios daquele
misterioso líquido azul-marinho.
A mestra explicava que escrever à tinta beirava o
"eterno". Com o lápis tudo podia ser apagado como se não tivesse
existido, exatamente como as palavras faladas a serem levadas pelo vento. Mas
com a tinta, esse material perigoso (e marcante) que agora teríamos que usar,
as coisas ficavam. Qualquer descuido, caía um pingo no papel, manchando-o e
dele tirando a pureza feita em branco; por outro lado, se a "pena"
ficasse saturada, a escrita transbordava o papel. Fomos depois apresentados a
um personagem importante: o mata-borrão que como um guardanapo à boa mesa,
acompanhava o ato de escrever à tinta.
Escrever à tinta dá asas à fantasia de imortalidade. É a
antessala do livro, do decreto, da placa de bronze e do "documento".
Pois entre nós - humanos -, a execração, o ódio, e o insulto cabem também ou
até mais no papel do que na fala. A fala, sendo curta e exigindo a
pessoalidade, tem mais limites do que a carta escrita com maldade e ódio,
vingança e ressentimento. Ademais, a "escrita", como os decretos e as
leis, pode ser anônima ou coletiva. Pois como aprendi com aquela humilde
professora, o que falamos fica na memória, mas o que foi escrito permanece.
Seja como um ato de amor ou como prova de arrogância e de transtorno mental.
Cuidado, dizia ela, com o que você escreve à tinta - com aquilo que, impresso,
não pode ser apagado.
ROBERTO DaMATTA.: 12 Oct 2011
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