Canções podem ser esquecidas e de repente retornarem
intactas, por algum estímulo associativo
O documentário de Eduardo Coutinho “As canções” passou no
Festival do Rio e vai passar na Mostra aqui em São Paulo na próxima semana.
Quero muito falar dele, especificamente dele, mas só quando entrar em cartaz, o
que não vai acontecer antes de dezembro. É que eu não gostaria que o público
não pudesse conferir, quando eu vier a comentá-las, as situações únicas que o
filme expõe, no modo peculiar criado pelo autor de “Jogo de cena” (filme irmão
de “As canções”). Mas não consigo deixar de adiantar o assunto, entrando desde
já no tema que ele explora e que nos faz querer explorar também: o poder do
lugar emocional profundo, vertical, em certa medida insuspeitado e quase
atemporal, que certas canções têm na vida de cada pessoa.
Não faz muito tempo vivi uma experiência paralela à do
filme. Um grupo de parentes e amigos que sabe muito bem que somos ligados por
uma rede de canções resolveu ouvir, todos juntos, uma seleção formada pelas dez
músicas que cada um considera as mais comoventes de sua vida. Éramos oito, e
ouvimos oitenta canções sem parar, sem respirar nada que não fosse elas,
durante uma noite inteira. Embora únicas e presentes ali graças à escolha de
cada um, as canções provavam, antes de mais nada, que sua vocação é a de ser
compartilhadas, fazendo parte da “velha história de um desejo que todas as
canções têm pra contar”. Pois “as canções só são canções quando não são mais
nossas”, ao mesmo tempo em queremos que os outros escutem as “nossas canções”.
O critério não era o da escolha das canções mais belas,
olhadas de um ponto de vista contemplativo e cheio de exigências melódicas,
harmônicas e poéticas. Mais refinadas ou não, o que importava é que elas fossem
ao nervo da emoção pessoal, ao centro do que na falta de outro nome chamamos de
coração, não importa se simplórias, patéticas, supostamente bizarras ou se
simplesmente simples. Canções que nos tocaram quando ainda não tínhamos formado
um gosto nem padrões estéticos, muitas vezes aprisionadores, ou então que,
qualquer que fosse a sua densidade, continuassem a nos tocar nesse lugar que
independe dos crivos avaliativos que viemos a selecionar e construir.
Os mais sensíveis à fidelidade primeira que a situação
exigia sofreram com a iminência do jogo, passaram insones as noites que antecederam
à grande noite, torturados pelas injustiças que poderiam cometer ao escolher
essas ou aquelas canções em detrimento de outras. Canções não podem ser
traídas, sob pena não se sabe de que graves perdas íntimas. Houve quem
desistisse de participar, incapaz de cometer tal violência, de arriscar-se ao
erro inevitável e insuportável.
Uma valsa na voz de Francisco Petrônio, uma cantilena
anônima, uma velha guarânia, os rocks e as baladas, a música barata e as
obras-primas do cancioneiro brasileiro e mundial, que elo misterioso faria com
que elas se tornassem canções necessárias? É claro que isso depende do momento
em que ficaram gravadas na nossa memória afetiva, e as associações que vêm
junto com elas na forma da recordação involuntária. Mas isso não basta. Simples
ou complexas, as canções eleitas têm que corresponder
com certas qualidades melódicas, certa integridade interna,
certo círculo que se abre e se fecha dentro delas, certo dom misterioso que
ninguém sabe explicar.
Posso dizer que já li todo tipo de escrito em matéria de
teoria da música. Há longos tratados de harmonia e tratados de ritmo. Luiz
Tatit nos esclarece muito sobre as relações entre letra e música. Mas nunca vi
nenhuma tentativa de explicação minimamente convincente dos efeitos e dos poderes
de uma melodia. Como o poder inigualável das melodias de Caetano, para além do
domínio que ele afirma não ter sobre a linguagem da música. E eram as melodias
que estavam em causa, junto com as palavras, no eletrizante jogo das canções.
A música fica guardada num outro lugar da memória. Canções
podem ser aparentemente esquecidas e de repente retornarem intactas, décadas
depois da última vez, movidas e comovidas por algum estímulo associativo (é o
que Proust chama de “memória involuntária”). Pois, além de recurso mnemônico
altamente delicado e resistente, a música é suporte de conteúdos não verbais,
de uma espécie de aura afetiva da experiência, como se, para além dos
significados, ela guardasse a forma e o fundo do vivido. Uma ou dez canções
escolhidas sinceramente são a expressão mais tangível possível desse
“patrimônio imaterial”, ou desse “matrimônio imaterial”, se quisermos, de que é
feito alguém. É por isso mesmo que alguns temiam perder, no nosso jogo da
escolha das canções, a própria alma. Pois só as “nossas canções”, ou o
equivalente delas em halo emocional, prova a nós mesmo que aquilo que vivemos
foi realmente vivido por nós.
Tudo isso está em “As canções” de Eduardo Coutinho, através
de pessoas das ruas do Rio de Janeiro, convidadas a cantar uma canção e a falar
sobre ela. Muitas vezes atingidas de repente, para sua própria surpresa, por um
raio emocional que as faz chorar. O filme nos faz pensar também sobre a
extração de classe dessas canções, e sobre o lugar que a canção tem no Brasil.
Sobre o que espero voltar, em dezembro.
A propósito, Felipe Hirsch fez da sua coluna aqui mesmo, às
segundas-feiras, um incrível ritual ostensivo de celebração do universo
inesgotável de suas canções. “Pop cult 65.” Às vezes eu lamento não ter ousado
fazer o mesmo. Mas é que o meu sintoma é outro, quase o contrário do dele, o de
querer falar de tudo.
- JOSÉ MIGUEL WISNIK. 22 Oct 2011
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