Não é a morte o que mais assusta o homem. É o acaso. Contra
o acaso, o homem constrói sistemas de pensamento, filosofias, mitologias,
religiões. Para se proteger do acaso, o homem criou Deus. Aí está: o homem se
diz criatura, quando é o criador.
Mas crentes e carolas não precisam se ouriçar, não estou
pregando o ateísmo. Porém, é preciso entender que, ainda que Deus exista, Ele
continuará sendo uma abstração. A ideia de Deus tem de ser aprendida. E, se tem
de ser aprendida, tem de ser concebida. Criada. Logo, Deus é criatura. Zeus,
Amon, Jeová, Astarte, Cibele, Alá, Tupã, seja qual for o nome do ser divino,
ele tem de ser concebido pelo homem, junto com sua mitologia.
E por que o homem teve de criar Deus? Por que existe essa
necessidade em todo lugar e em todo tempo? Exatamente para que o homem possa se
defender do acaso. O acaso é tão apavorante, que o homem criou até o diabo para
combatê-lo.
É preferível enfrentar uma legião de demônios com intenções
bem claras e regras de comportamento definidas do que simplesmente cogitar a
hipótese de que as coisas possam acontecer sem que sejam movidas por razão
alguma.
Você precisa encontrar um desígnio oculto por trás de
qualquer ocorrência da sua vida. Toda consequência teve uma causa. E, se toda
consequência tem uma causa, em tudo podem ser vistos méritos e culpas. Você faz
tudo certinho, age bem, é uma boa pessoa, não faz nada de errado?
O Todo-Poderoso o recompensará com uma vida venturosa. Você
faz coisas erradas, oprime o próximo e rouba a merenda escolar das criancinhas?
Você será punido em algum momento, você não perde por esperar as terríveis
consequências de seus atos.
É assim que deveria ser, se o acaso não existisse. Se o mundo
fosse justo. Mas o acaso existe. Mas o mundo não é justo. Coisas ruins
acontecem a todo momento com pessoas que não merecem sofrer. Coisas boas
acontecem a todo momento com pessoas que não merecem a felicidade.
Canalhas são homenageados, incompetentes ganham aumento,
oportunistas usufruem da fama, cofres caem do oitavo andar, vírus são
contraídos pelo ar, rádios tocam axé a cada minuto. A vida é cheia de perigos e
você não pode fazer nada para evitá-los. O mundo está repleto de cafajestes e
muito provavelmente a maioria deles jamais será punida. Não adianta rezar. Não
adianta cultivar superstições. Não adianta esperar pela intervenção
transcendental.
Adianta, um pouco, prevenir-se. Pessoalmente, há muitas
formas de prevenção. A principal delas é zelar pela saúde. Comunitariamente, o
Estado tem a função de fazer a prevenção. No caso de o Estado estar acometido
de alguns desses males, como a corrupção endêmica brasileira, só se pode,
mesmo, fiscalizar.
E a fiscalização só é viável quando ocorre em âmbito
municipal, quando o cidadão encontra a autoridade na farmácia, no supermercado,
na igreja, no estádio de futebol, e o olha na cara, e cobra, com o mero olhar,
o efeito de seus atos. A municipalização não tem poder divino, não evita a
corrupção, não impede a ação de cafajestes nem as tramas incompreensíveis do
acaso. Mas ajuda a preveni-los.
DAVID COIMBRA - 21 Oct 2011
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