Nos clubes acontece uma forma de estar (e de ser) adequada
às associação voluntárias - essas organizações nas quais entramos (e saímos)
não por nascimento ou morte, mas por gosto, interesse e escolha. Num país como
o Brasil, onde tudo que é escuso ocorre justamente nos espaços situados entre amizades,
parentescos e, hoje, partidos e o "governo" que deveria ser impessoal
e servir a todos, vale a pena falar um pouco de clubes e de sua sociabilidade.
Ao fazer isso, inspiram-me os notáveis 190 anos da Sociedade Germania. Um clube
fundado por alemães no Rio de Janeiro dos 1821, em pleno reinado de Pedro II.
Existe pouca reflexão sobre essas organizações. Uma rara
exceção é o livro de Robert H. Lowie, Primitive Society (Sociedade Primitiva),
publicado em 1921. Lowie, nascido em Viena e filho de mãe austríaca e pai
húngaro, foi um daqueles imigrantes cujo estranhamento foi responsável por
aquele atraente cosmopolitismo americano talvez por sua associação ser de um
imigrante com os Estados Unidos. Imigrantes e expatriados são como sócios de um
clube, muitas vezes, sócios sem carteirinha. Talvez por isso, ele tenha
revelado que as chamadas sociedades "primitivas" também possuíam
estruturas que congregavam pessoas por meio de critérios fora do parentesco e
da família. Como especialista em sociedades indígenas da América do Norte,
Lowie estudou esses "clubes" tribais sem escrita e lista de sócios,
que uniam pessoas vinculadas por ensejos semelhantes, tal como fazem os nossos
sindicatos, clubes, associações e partidos políticos. Em 1921, isso rompia com
o evolucionismo de Morgan e de Engels, o qual estabelecia que todas as formas
de sociabilidade humana tinham como origem a família e o clã.
* * * *
O destino levou-me ao Germania onde Margret Möller, sua
presidente, chamou minha atenção para uma orgulhosa continuidade de quase dois
séculos. Pertencer a duas sociedades simultaneamente é experimentar o humano de
um modo radical, pois trata-se de construir uma ponte entre o "ser" e
o "estar" - esses verbos misteriosos. Eles se entrelaçam (como ocorre
em inglês) e se separam. Quem nasce num lugar é desse lugar. Os poetas (que
podem dizer tudo) adornam os "naturais" do Brasil ou da Rússia com um
elo fixo com a floresta, os índios, o sol, o calor tropical ou as estepes e o
frio intenso. Mas, como mostram as viagens e os clubes, o humano vai além do
"ser"; ele surge também no "estar". Somos de algum lugar,
temos uma casa, mas estamos também nos clubes e nas relações que nos unem a
outros mundos.
* * * *
O duplo ou o múltiplo pertencer nos torna mais humanamente
contraditórios nas nossas desconcertantes identidades. Assim, Lowie foi um
vienense-americano tal como os alemães que fundaram o Germania puderam
continuar sendo alemães num Rio de Janeiro de monarcas, barões e escravos - uma
cidade fechada para sociabilidades alternativas.
* * * *
Em São João Nepomuceno, Minas Gerais, vivi um intenso
clubismo. Os clubes aos quais pertenci - o Mangueira e os Democráticos - eram
brasileiros, mas a sua sociabilidade era tão gratificante quanto a que
experimentei no Germania, quando fui gentilmente recebido por Margret Möller e
alguns amigos do coração; ou a algum clube inglês numa Inglaterra que, dizem os
ingleses, os inventou.
Qual o segredo dos clubes? Ora, seu ponto de atração está na
alternativa que eles oferecem às nossas casas e famílias. Em casa somos
determinados e não temos escolhas (nem piscina ou restaurante). Nos clubes
ocorre justamente o oposto. Temos a escolha dos amigos e, em seguida, as
facilidades que as pessoas comuns só podem ter quando se congregam em grupo - esse
traço do igualitarismo que marca muitos sistemas tribais, mas que até hoje não
é aceito no Brasil. Esse associacionismo "voluntário", descoberto por
Alexis de Tocqueville no seu A Democracia na América, quando ele discerne como
a igualdade política radical predispunha os americanos à congregação e a uma
vida partidária que os compensava pela ausência do nome de família e de fortuna
pessoal. Na França, isso não ocorria porque cada "estamento" ou
"casa aristocrática" era uma miniatura da própria sociedade e todos
sabiam com quem estavam falando, tal como até hoje ocorre no Brasil. Para
Tocqueville, o clubismo e o partidarismo compensavam a igualdade e o
individualismo da vida democrática.
* * * *
Nos clubes, experimentamos uma convivência marcada por uma
ética da igualdade que nos obriga a relativizar a família com a sua
sociabilidade hierarquizada, carimbada por sexo e idade. Neles, é complicado
misturar parentesco (que não dá carteira nem ordena mensalidade) com um
relacionamento que exige carteira, mas exclui o favor (com o seu dar e receber)
- esse mestre dos sistemas com dois pesos e medidas. Em trabalhos acadêmicos,
acentuei como o Brasil resiste a essas sociabilidades igualitárias, impessoais,
baseadas em escolhas e compromissos sempre públicos - esse relacionamento
clubístico e partidário, mais universalista do que particularista, íntimo e
pessoalizado.
Viva, pois, um clube com quase dois séculos num Brasil em
que a vida associativa fora da família tende a mudar de acordo com o messias
ou, para não entrarmos na escuridão de nosso sistema político, a cada negócio.
ROBERTO DAMATTA_ 26 Oct 2011
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