quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A GREVE



"Após o êxito de Alexandre Nevsky, que repôs Eisenstein na posição que ocupava na URSS rios anos 20, e enquanto este filme voltava às prateleiras em consequência do pacto germano-soviético, o realizador encenou para o Bolshoi a "Valquíria" de Wagner, que seria apresentada ao enviado do governo germano Nazi alemão. Segundo o próprio Eisenstein, a encenação serviu-lhe para experimentar uma série de ideias novas referentes a iluminação e cor, e à relação entre os cenários e os intérpretes, que iria utilizar exaustivamente em lvan o Terrível. No fim de contas, toda a carreira artística de Eisenstein parece resumir-se a este movimento, que o leva, numa espiral ascendente, a cruzar todas as formas artísticas até culminar numa síntese que é o filme. Ela é a melhor ilustração de um aforismo famoso do próprio Eisenstein que diz que o cinema é a síntese das artes e das ciências.
A Greve ilustra também, de modo perfeito, essa evolução, embora não tenha (e naturalmente, visto tratar-se não só de uma primeira obra, e nascida do entusiasmo e de uma manifestação artística febril e agitada) a serenidade e o rigor das obras futuras. Os seus limites foram apontados pelo próprio Eisenstein no seu texto "Do teatro ao cinema": "0 nosso entusiasmo traçou uma imagem plana, sem perspectiva. Sem perspectiva porque a pintura das massas exige que, no interior da colectividade, cada um dos indivíduos seja desenvolvido ao máximo", acrescentando, para evitar confusões que "se trata duma concepção absolutamente oposta à do individualísmo burguês". Nessa direcção seguira o seu amigo Pudovkine com A Mãe.
A Greve culmina, da parte de Eisenstein, um processo onde desenvolveu todas as experiências possíveis no campo da encenação teatral. A utilização do cinema representou, primeiro, uma "revolta contra o palco". Nas suas encenações no Proletkult utilizara uma mistura de todos os elementos expressivos, a que ele chamaria a "montagem de atracções" e que incluiria também um pequeno filme exibido nas representações. Eisenstein, com o seu "desejo de adoptar princípios radicalmente novos", estava maduro para a passagem ao cinema. Com o Colectivo do Proleticult de Moscovo, de que fazia parte, Eisenstein começou a estudar a possibilidade da realização de uma série de filmes que fossem o balanço das lutas dos trabalhadores que culminaram na Revolução de Outubro, sob o título genérico de Rumo à Ditadura (do Proletariado). 0 primeiro, que seria o único a chegar a bom termo, foi A Greve, escrito pelo Colectivo sob a direcção de Eisenstem. Na sua totalidade o plano compunha-se de 7 filmes, que eram:

1) De Genebra a Moscovo;

2) Clandestinidade;

3) 0 Primeiro de Maio;

4) 1905;

5) A Greve;

6) Prisões, Motins e Evasões;

7) Outubro.

Na sua realização Eisenstein vai dar rédea solta a todas as ideias que fervilhavam naquele tempo de grande agitação artística. Com A Greve ele dá de facto início ao cinema soviético, um cinema de formas novas para um conteúdo novo. Em A Greve Eisenstein iniciou uma frutuosa colaboração com o operador Eduard Tissé que duraria durante toda a sua carreira. Tissé, de origem Sueca, fora repórter cinematográfico durante a guerra civil, tendo trabalhado com Vertov no Kino Pravda. Com Eisenstein, Tissé encontrou o companheiro ideal para levar a cabo o seu gosto pela experimentação. A Greve é. deste ponto de vista, um filme experimental, onde uma série de ideias novas são postas à prova, e alcançarão mais tarde a perfeição no Potemkin, Outubro e Que Viva México! Para já, a posição da câmara com o efeito dramático da plongée, que Pudovkine desenvolverá, de forma brilhante, em A Mãe. As sucessivas sobreposições que sublinham a passagem, ou simultaneidade de tempo transformando-se também em metáforas visuais: as máquinas que param por cima das que mostram os operários de braços cruzados; a sucessiva exposição dos denunciantes e das suas alcunhas, a raposa, a coruja, etc., com os rostos dos homens sobrepondo-se aos dos animais; o denunciante nas latrinas, e as famosas e sempre citadas sequências do limão que o patrão esmaga no espremedor e os polícias a cavalo cercando e carregando sobre os operarios e as suas famílias, ou a montagem que opõe, para sintetizar a ideia da repressão, o massacre dos operários e a morte duma rês no matadouro. Esta "montagem de atracções” que Eisenstein desenvolve a partir das experiências teatrais de acções múltiplas, vários palcos e arenas, dá origem, no dizer de Jay Leyda, a um filme “pleno de metáforas cinematográficas, e as suas imagens evocam para além das sensações visuais, os sons, os cheiros, os contactos tactéis" A Greve reforça estas sensações com uma construção em forma de sinfonia com os Allegros vibrantes do começo e do fim e o Andante breve e calmo que os separa. Esta forma musical está subjacente a esta primeira fase da carreira cinematográfica de Eisenstein que vai até ao Que Viva México!, para dar lugar à ópera a partir de Alexandre Nevsky. Entre outras experiências destaquemos também um breve momento com a imaginação das letras dos intertítulos, logo no começo, quando os problemas começam a surgir e a queda da letra parece marear o desencadeamento dos conflitos, ou aquela sequência em que as fotografias dos denunciantes e espiões da polícia se animam.
A Greve é também, e já, a materialização de ideias que culminam em Outubro. Eisenstein já neste filme recusa o herói individual para dar destaque às massas como um herói colectivo, embora neste caso ainda se sinta o peso da representação teatral do grupo do Proletkult. Mas alcança, parcialmente, um dos objectivos de Eisenstein que era "anular a intriga", encarada como forma romanceada. Primeiro grande filme de uma nova cinematografia, A Greve vai influenciar toda a nova geração de cineastas que se forma: 0 Fim de São Petersburgo de Pudovkine, presta-lhe claramente homenagem, e tanto Dovjenko como Ermler falaram da influência do filme sobre eles. Mas também A Greve sofreu, por seu lado, influências. E a mais clara é a do episódio moderno de Intolerância, filme que gozava de grande prestígio na URSS. Eisenstein diria que todo o cinema soviético nasceu daquele filme de Griffith.
As reacções ao tempo, na URSS, foram significativas: o Kino Gazeta dizia: "Os écrans da União Soviética jamais viram filme mais importante, tanto no significado ideológico, como nas suas qualidades formais". E Vertov referia-se ao filme de Eisenstein dizendo: "Com A Greve, pela primeira vez o nosso cinema criou qualquer coisa de revolucionário". 0 crítico inglês David Sylvester escreveu: "A arte deste filme evoca a de um poema que lhe é quase contemporâneo 'The Waste Land' (de T. S. Elliot). Evoca-o pela mesma ligação rítmica de imagens heterogéneas, e pelas mesmas imagens, simultaneamente naturalísticas e simbólicas, que criam o choque pela sua sobreposição".

M.C.F.

in SERGEI EISENSTEIN, “As Folhas da Cinemateca”, Lisboa,Ministério de Cultura, 1998, p.p. 11-14.

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