“A sede de sangue não pára ainda, e é Sofia que aconselha a mãe de Pedro a entregar o seu irmão às feras para poupar o resto da família. Este comunga, recebe das mãos da czarina uma imagem sagrada, que Sofia supõe poder incutir respeito aos revoltosos, hesitando perante um sacrilégio, e aparece fora da igreja. Estes não hesitam – como hesitariam homens sem possível frenação moral? – arrastam-no pelos cabelos, torturam-no horrivelmente e cortam-no aos bocados. Ainda não satisfeitos reclamam que seja Ivan – o idiota – feito czar. A Assembleia, que já tinha escolhido Pedro, não sabe resistir, e encontra-se a solução do medo – Ivan será primeiro czar e o Pedro segundo czar.
São ambos coroados: um idiota e uma criança de dez anos. Sofia será regente; Natália e seu filho Pedro são afastados de Moscovo. Sofia quer destruir as seitas dos raskolnikis (velhos crentes) e outras já saídas deste cisma. O raskol é a oposição feita às reformas de Nikonio – mudanças de letras, bênção com dois ou três dedos são os grandes motivos de desacordo doutrinário (?!)
Outras seitas, como a dos tolky aparecem: seitas que, regressando ao paganismo vivaz da alma russa, acabam por vezes num sadismo (o Império morreu envolto neste satanismo de Rasputine) orgiástico. A perseguição foi cruel e cuidada: fogueiras, chicotes, etc. Nada se conseguiu de sério, pois não só ficaram estas seitas, mas desenvolveram-se, viveram até protegidas por alguns imperadores e vivem ainda hoje, com máscara nova ou até com a velha máscara do Raskol.
A Rússia entra numa aliança europeia contra o Turco. Sofia entrega o comando ao seu amante, o príncipe Galitzine, que faz uma campanha vergonhosa sem perder a confiança e a dedicação escandalosa da regente. Estes e outros desastres da política externa levantam rumores de rebeldia contra a regente. Ela imagina uma, conjura em que entra sua madrasta e seu irmão Pedro e organiza uma conspiração para o assassinato de Pedro. Este prevê e vai-se refugiar num convento, para onde seguem sua mãe, os boiardos que lhe são dedicados, e os mercenários estrangeiros de Sommer e de Patrieck Gordon, que já Pedro tinha conquistado pelas suas maneiras rudes e francas. Sofia manda-lhe uma deputação de boiardos e depois o patriarca, pedindo-lhe que venha a Moscovo. Pedro recusa-se e o patriarca fica com ele. Sofia recorre mais uma vez aos Streltsy, que, pressentindo do lado de Pedro combatentes e não fáceis vítimas desarmadas, se recusam a qualquer agressão contra o segundo czar. Sofia é vencida, sendo muitos outros executados.
A RÚSSIA PETROVIANA
Pedro toma conta do poder, deixando na penumbra o pobre Ivan, que, em breve desaparece na grande sombra da morte. Com Pedro as veleidades ocidentalistas fazem-se um quase querer consciente, e dizemos quase, porque ainda, mesmo em Pedro, é mais uma paixão que uma vontade. Pedro tem a ansiedade do mar, duma saída da imensa terra russa por um mar aberto., para o amplo oceano das navegações e comércio. Tem o desejo da segurança militar e administrativa e percebe a superioridade plena dos estados europeus, antes, ocidentais. Não é propriamente a cultura espiritual do Ocidente que o seduz e entusiasma, mas as possibilidades técnicas, as riquezas do progresso e da civilização material. A sua infância mesmo revela em Pedro um gesto prático de organização militar; é construtor de fortes e já um apaixonado sonhador da livre vida do mar. Os seus historiógrafos dão-lhe a paixão precoce da pirotecnia, da arte das fortificações, mecânica aplicada e construção naval. Os seus brinquedos são ensaios na arte de governar e combater; os seus companheiros, plebe e técnicos estrangeiros.
Grosseiro, rude e violento, não era, no entanto, um homem gratuitamente cruel; quer dizer: não aparece nele, sem excitações que o despertem, o clássico sadismo do déspota oriental e de tantos tiranos da Rússia. É um dos primeiros russos a Ter uma clara consciência dos deveres profissionais. Para Pedro – antes, para o Pedro não excitado por traições – a Rússia não é uma Quinta sua a tratar segundo o seu bom ou mau capricho. É um chefe, digamos, um funcionário ao serviço da nação. E, como vê toda a prosperidade em certos hábitos e conhecimentos ocidentais, ele irá, de chicote se preciso for, conduzir o seu povo para o Oeste, para um destino ocidental. Único ou primeiro a fazê-lo? Não; já vimos tentativas sérias nesse sentido.
Mas Pedro-o-Grande porá uma violência e uma paixão novas e entusiásticas ao serviço da sua grande ideia reformadora. E um temperamento excessivo, uma pletora de forças animais e psicológicas. Tentará tudo, desejará tudo; quereria que a Rússia renascesse, num dia, tão europeia como as mais progressivas nações da Europa. A sua vida passa-se no bairro estrangeiro, em camaradagem com os eus mercenários, em licenciosas reuniões em que mulheres fáceis acham nele o encanto das forças selvagens, a frescura e a violência duma natureza exuberante. O seu contacto com a Europa é essencialmente feito através de subordinados ou de pessoas, que esperam os seus favores e cujos costumes são mais da Europa de vida fácil que da grande Europa cultural.
É através de alguns aventureiros mais ou menos indisciplinados e cépticos, que ele conhece directamente a Europa. Não se aquieta e viaja; viaja incógnito, corre a Europa, trabalhando até como operário. Espera encontrar nela o segredo, que o obsidia. Mas da alma profunda da culta Europa cristã nada pode conhecer. É a técnica, a arte de construir, a arte militar que ele vê, e da Europa cultural, apenas vagas impressões de epígonos e vulganizadores dum cartesianismo degerenado. Nas suas reuniões mais ou menos licenciosas do bairro estrangeiro de Moscovo violenta um dia uma mulher feia que a ninguém interessa, dizendo-lhe num misto de sensualismo grosseiro e de «sensiblerie» compassiva, que vai cometer a proeza extraordinária de a violar. E fá-lo diante de todos, numa falta de pudor de animal palpitante de excessivas e irreprimíveis violências. No entanto, e apesar de tudo, ele é no fundo um recalcado desde a infância. E, se muitas das suas violências são filhas da libertação de tais recalcamentos, um complexo de medo e desconfiança lhe ficou sempre nos longes da sua psicologia, desde os assassinatos e ignomínias de que foi trágica testemunha aos seus dez anos de idade.
A sua primeira campanha (militar) destina-se à conquista do mar de Azov, e nela verifica, de pronto, a necessidade de construir uma frota marítima, com a qual consiga a conquista desejada. Depois dessa conquista, encarrega industriais e capitalistas de arranjarem dinheiro para uma esquadra do mar Negro e manda estudantes à Inglaterra, Veneza e Holanda para futuros engenheiros da Rússia. Vem ele mesmo à Europa Ocidental e é nessa altura que Sofia faz corre a notícia da sua morte, tentando revoltar os Streltsy contra os boiardos de Pedro e contra os estrangeiros ocidentais. A revolta é vencida pelas tropas fiéis de Pedro, e este, que volta à pressa da Europa, dá aprimeira satisfação ao velho complexo do medo e da vingança. Logo que chega corta pessoalmente as barbas (era contra as superstições russas não deixar crescer os cabelos, etc.) aos mais altos dignitários, obriga-os a vestir à moda ocidental, à francesa, e toma depois conta dos Streltsy. A execução destes dura meses, sendo assassinados mais de um milhar e insepultos durante todo o Inverno. Sofia é encarcerada num convento, e, das janelas do seu quarto, são pendurados alguns dos seus cooperadores revolucionários.
A sedução do mar leva-o a uma série de lutas com a Suécia. É numa dessas guerras que le encontra, como doméstica dum pastor protestante, a alegre Marta que virá a ser a sua esposa Catarina. Depois de váriasflutuações da sorte das armas, sai a Pedro-o-Grande vitorioso da Suécia e de posse das terras do mar Báltico. Manos feliz foi a Segunda guerra com a Turquia, que acabou pela cedência de Azov. A guerra com a Pérsia, de que sai vencedor, permite-lhe estabelecer o melhor caminho para a Ásia, do Báltico para Ladoga Volga e através do mar Cáspio. As lutas com a Suécia acabam com a posse pela Rússia da Estónia, Livónia, Carélia, Viborg, todas as ilhas do golfo de Riga e da Finlândia.
Pedro fizera do exército miliciano um exército permanente de profissionais e conseguira sujeitar os irrequietos cossacos. Sofrera derrotas, mas rtivera sempre a obstinação de recomeçar, melhorando as condições. Depois da vitória definitiva sobre os suecos, o Senado e o Sínodo pedem-lhe que tome o título de imperador e que, acrescente ao seu nome o adjectivo Grande. «PedroI, Imperador e autocrata de todas as Rússias» alargara o seu vastíssimo império a limites ainda não alcançados. As suas guerras não o fazem todavia esquecer a missão reformadora, embora tirem a esta a continuidade e o sossego que lhe seriam necessários. Organiza a vida política, administrativa e religiosa. Cria o Senado e o Sínodo ... (...)
A Rússia é dividida administrativamente em governos, províncias e distritos.
O Sínodo é a mais terrível arma e o mais claro sinal das influências protestantes no ânimo de Pedro. A Igreja perde a pouca liberdade que possuía e passa a ser mais um departamento da vida do Estado. O clero não pode receber bem tal reforma; mas o imperador não hesita e lança mão de todas as armas mesmo daquelas que veremos mais tarde na Rússia bolchevista. Uma primeira declaração de liberdade dos cultos, que é mais tarde inteiramente suprimida, serve para separar e enfraquecer a Igreja ortodoxa. A caricatura da ortodoxia é empregada para a desvalorizar. São organizadas mascaradas religiosas: uma assembleia de militares caricaturando a hierarquia religiosa e celebrando missas ao deus Baco sentado num barril, com os próprios cânticos da Igreja russa. Tudo isto contribuiu para uma proliferação de seitas, algumas daquela natureza sádica e orgiástica, de complexos eróticos, dum pansexualismo mal frenado na violenta e instável psicologia russa. O próprio Pedro terá mais tarde de opor uma disciplina a tanta vagabundagem psíquica.
As suas reformas sociais desconsideram a nobreza de origem, que, de resto, fora sempre instável e sem força moral perante os caprichos dos czares, substituindo-a pela nobreza burocrática. Os nobres deviam o serviço ao estado e, quando proprietários, só o eram sob a condição dos serviços prestados. Por seu lado os camponeses, que se tinham vistos presos à gleba e pagavam ao proprietário os impostos em géneros, são agora obrigados a pagar directamente ao Estado e em dinheiro, sendo o proprietário responsável por tal pagamento. (...)
A política económica de Pedro, que é indirectamente errada quanto à agricultura, é inovadora em relação à indústria. (...)
Em todas estas obras mostrou o imperador um sincero desejo de progresso e uma grande esperança de elevar o nível do seu povo. No entanto, tudo isto é muito precário. (...)
À oposição do clero (ele é para muitos o verdadeiro Anticristo, como o será mais tarde o seu admirador Lenine) junta-se a oposição de muitos russos da nobreza, incluindo o seu filho, que se deixa levar até ao perigo duma conspiração sendo mandado sujeitar ao interrogatório e tortura pelo próprio pai. O desgraçado czarvitch fora sempre dominado pela obstinação paterna. (...)
O feitio trágico de Pedro-o-Grande, aquela antiga criança de dez anos chicoteada pela orgia sangrenta das tropas de Sofia, anda sempre de par com o seu histrionismo. (...)
O histrionismo trágico de Pedro é característico de toda a sua persanalidade. (...)
Este misto de dedicação à causa pública e de bárbara cólera e irreprimível violência vê-se na fantástica criação da sua cidade – Petersburgo ou a cidade de Pedro. A estátua de Falconet o mostra: um cavalo empinado sobre uma abismo, impassível de violência retesada no máximo, feito bronze de força e domínio. A cidade é, para Pedro, a afirmação do resgate da Rússia – a amplidão dos mares conquistada. É um sonho secular feito acção dum homem, vencendo nações, homens e elementos.
Assim será a cidade de Pedro. Ele sonha, e, cada dia, um sonho novo vem modificar o sonho anterior. É o desequilíbrio da raça, o caminho dum sonho que se não faz vontade mas obstinação delirante. Plano sobre plano, construção e destruição, sonho-névoa, que se levanta e tomba na mediocridade da realização, para de novo se erguer mais veemente e mais louco. Em tudo isto só uma coisa não conta – o material humano. Os faraós do Egipto ergueram em pedra milenária o seu medo da morte, o protesto do homem sem Cristo contra uma vida sem ressurreição em eternidade. O chicote dos condutores de escravos foi a batuta dessa bárbara sinfonia, em que os homens perseguidos pela morte, mas ignorantes do amor, se queriam salvar na excepção do seu aristocratismo.
Petersburgo será erguida sobre emanações de lama e lodo, e sobre os cadáveres de mais de dez mil trabalhadores escravos. É esta cidade que o imperador chamará «o meu Paraíso», não se lembrando que dez mil almas aí tiveram o seu Inferno, não sonhando sequer, que, dos seus fundamentos, poderão sair um dia, em pleno século XX, imprecações, que a façam um Inferno de milhares e milhares de russos.
Pedro-o-Grande morre, não deixando testamento, nem indicação de sucessor. Ele tiha coroado a sua «Katarinucha» e é ela que lhe vai suceder; assentando-se no trono de todas as Rússias esta aventureira adúltera.” (...)
COIMBRA, Leonardo, “A Rússia de hoje e o Homem de sempre”, (Obras de Leonardo Coimbra), Porto, Lello & Irmãos – Editores, 1983, p.p. 761–771.
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