(…) Por mais enfadonha, penosa e inútil que lhe parecesse a vida, naquele momento sentia a mesma emoção e o mesmo nervosismo de sete anos, na véspera de Austerlitz.
Recebera e dera já as ordens para o dia seguinte, elo que nada mais tinha de fazer. No entanto, perturbavam-no pressentimentos simples, nítidos e, por consequência, sinistros. Tinha plena consciência de que aquela batalha seria a mais terrível de todas a que assistira até ao momento, e a possibilidade de morrer aflorou-lhe pela primeira vez o pensamento, com toda a sua simplicidade e o seu horror, desprovida de qualquer ligação com a vida presente, despida de toda a presunção no que respeitava ao efeito que poderia ter sobre os outros, sendo antes algo que lhe dizia unicamente respeito a ele, à sua própria alma, e que se lhe apresentava com uma claridade e certeza extraordinárias. Todos os seus pensamentos, tudo o que anteriormente o preocupara e obsidiara, surgia-lhe agora iluminado por uma luminosidade fria e branca, que afastava todas as sombras e apagava os contornos, desprovido de qualquer perspectiva. Afigurou-se-lhe que, até ao momento presente, sempre contemplara toda a sua vida projectada numa tela e iluminada pela luz artificial de uma lanterna- mágica. Agora, claramente iluminadas pela viva claridade do dia, aquelas imagens apareciam-lhe grosseiramente coloridas. «Sim, sim ei-las, essas imagens enganosas que me comoviam, me seduziam e torturavam!», dizia consigo, examinando na memória os principais quadros da sua vida que a lanterna-mágica projectara, observando-os sob aquela luz fria e branca, o nítido pensamento da morte. «Ei-las, essas figuras grosseiramente pintadas que me pareciam tão admiráveis e misteriosas! A glória, o bem público, o amor por uma mulher e pela própria pátria! Como tudo então me parecia grandioso e de sentido profundo! Mas, na realidade, como tudo é pálido, mesquinho e miserável, comparado com a aurora nascente deste novo dia que desperta em mim!» A sua atenção concentrava-se particularmente nas três grandes dores da sua vida: o amor que sentira por uma mulher, a morte do pai e a invasão dos franceses que ocupavam já metade da Rússia. «O amor… aquela rapariguinha que se me afigurava cheia de força misteriosas… Sim, eu amava-a, construía sonhos poéticos de amor, de felicidade… Oh, que inocente e terno rapazinho eu era!», disse voz alta súbita e raivosamente. «Como foi possível acreditar em não sei que espécie de amor ideal que a faria conservar-se-me fiel durante o longo ano da minha ausência. Como a terna pomba da fábula, ela deveria consumir-se na espera… E tudo isso era bem mais simples… aterradoramente simples, espantosamente vil!»
«O meu pai, também ele, construía em Lissi Gori, julgando que tudo lhe pertencia, os camponeses, a terra e até o ar que respirava; mas eis que Napoleão chegou, sem suspeitar da sua existência, varreu-o como uma palinha do seu caminho, e Lissi Gori e toda a sua existência se desmoronaram… e a princesa Maria diz que é uma provação vinda do Céu! Qual será, pois a razão de tal provação se ele deixou de existir e nunca mais voltará à vida?... E a pátria, a perda de Moscovo? Talvez eu amanhã eu seja morto, não pelos franceses mas por um dos nossos, como ia sucedendo ontem à noite quando esse soldado disparou uma espingarda bastante perto da minha cabeça. Depois virão os franceses, agarrar-me-ão pelos pés e pela cabeça e lançar-me-ão numa vala para afastar o cheiro do meu cadáver. Surgirão depois as novas condições de vida para os que restarem, tão naturais como as antigas, mas eu já não serei deste mundo, já não as poderei apreciar!» (…)
Tolstoi, Guerra e Paz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário