António Lobo Antunes
Explicação aos paisanos
(…) Estava ao telefone com o pintor Júlio Pomar e depois de falarmos da saudade um do outro
(eu tão bicho do mato, nunca distingui entre a amizade e o amor)
entrámos pela conversa do trabalho dentro. O Júlio é das raríssimas pessoas a quem confidencio o que faço por existir entre nós, desde o primeiro momento, uma cumplicidade absoluta que não necessita de palavras, um princípio de vasos comunicantes que se tornou um milagre de sintonia mental. Então vou eu e digo
- Nunca começo um livro antes de ter a certeza que não sou capaz de o escrever
E de imediato, sem pausa alguma, vai o Júlio e responde
- E como é que a gente explica isto aos paisanos?
A frase é dele
- Como é que a gente explica isto aos paisanos?
tem andado comigo. Talvez possa explicar garantindo, por exemplo, que a principal dificuldade com o livro que ando a escrever consiste em que passei demasiado no romance, sem ter deixado espaço para o romance se pensar a si mesmo. E, quando a gente pensa por fora, ao passo que quando o livro se pensa a si mesmo
(e a gente ali, vigilantes)
se pensa por dentro. A obra é autónoma, e não admite intromissões do autor pelo menos durante as duas ou três primeiras versões (…)
(…) Sento-me à mesa e fico à espera: é assim que trabalho. A pouco e pouco uma espécie de onda ou seja o que for vai tomando conta de mim. A minha tarefa consiste em ficar quietinho, aceitando a tal onda ou o que for. E então chega a primeira palavra. Chega a segunda. Uma fúria calma toma conta da gente e a mão principia a mexer-se do tal lado invisível. (…)
(…) O que fica, nas tais primeiras versões, é um magma: por baixo do magma está o livro. E agora sim, chega aqui, cabeça, e ajuda-me a limpar a trazer o livro metido lá por baixo, a secá-lo, a sacudi-lo, a dar-lhe forma. E então pira-te, cabeça, outra vez, mas mantém-te aí à mão de semear, porque me vais ser útil. (…)
(…) Se tivermos à frente Tolstoi aqui à esquerda e o jornal à direita, começamos sempre pelo jornal. O problema é que o jornal da semana passada é o jornal da semana passada e Tolstoi o jornal de todas as semanas, de modo que o jornal da semana passada se deita fora e Tolstoi fica. Agora, Júlio, como é que a gente explica isto aos paisanos? (…)
in Revista Visão
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