"O Futuro Político da Lusofonia",
Vamireh Chacon, na UBI.
"APRESENTAÇÃO
0 quinto centenário da Descoberta do Brasil proporciona muitas meditações sobre a presença de Portugal no Mundo e o futuro da lusofonia. Quinto centenário que coincide com o primeiro de nascimento de Gilberto Freyre, um dos maiores intérpretes do universo lusíada, diante de antigos e novos desafios.
Em 1940, auge das vitórias nazifascistas na Segunda Guerra Mundial, Gilberto Freyre pronunciava no Recife a conferência "Uma Cultura Ameaçada: A Luso-Brasileira", directamente contra a infiltracção hitleriana entre imigrantes alemães e seus descendentes concentrados no Sul do Brasil. Despreparados politicamente por sua situação em lugares então remotos, abandonados de qualquer ajuda ou instrução, socorriam-se apenas das instituições do seu país de origem, que lhes cobravam tal preço.
Naquela fase de imprecisão quanto aos futuros vencedores, o regime autoritário nacional-desenvolvimentista de Getúlio Vargas pendia a favor de quem lhe parecia o iminente triunfador. Gilberto Freyre opunha-se a esta opção, em companhia de alguns poucos anglo-americanófilos, pela própria formação pessoal gilbertiana: dez anos de cursos primário e secundário no Colégio Americano do Recife - a ponto de Gilberto se tomar protestante baptista, depois retornando aos poucos ao catolicismo luso-ibérico de origem - mais dois anos de bacharelado no Liberal Arts College da Universidade de Baylor e outros dois de mestrado em Ciências Sociais na Universidade de Colúmbia, ambas nos Estados Unidos, e um em Oxford. Ao todo, quinze anos de formação anglófona.
0 varguismo ou getulismo estendeu a Gilberto Freyre a violência com a qual costumava tratar os discordantes da sua política: Gilberto Freyre foi preso e torturado pela polícia política. Era a segunda vez que se defrontava com o getulísmo: em 1930, diante de sua ascensão pela força das armas, Gilberto Freyre havia sido exilado. Só quando da mudança da política externa de Vargas - reconhecendo a derrota nazifascista em Estalinegrado e El-Alamein, e a desequilibrante entrada dos Estados Unidos na guerra em favor dos Aliados - só então Gilberto Freyre se reaproximou de Getúlio Vargas, cujo nacional-desenvolvimentismo, e outros aspectos, muito prezava. Em sinal da consagração da sua previsão da vitória dos Aliados, Gilberto Freyre publica em pleno 1942, ano da mudança da situação militar na Europa, o livro Ingleses, de louvor ao povo a caminho da vitória, livro seguido por Ingleses no Brasil, mais sociológico e mais historiográfico.
Hoje o quadro está alterado, porém, apenas, com a mudança de protagonistas: a Alemanha foi reduzida de fora para dentro com actuação limitada internamente à União Europeia, a Itália ainda mais e o próprio Japão, outrora cúmplices nas tentativas de desagregação do Brasil. Na viragem do século XX ao XXI, outro crescentemente importante marco histórico, as ameaças de desculturação, de selectivas a massificadas, passaram a provir da cultura anglófona, a maior vitoriosa desde a Segunda Guerra Mundial.
Porque o mundo assim tem sido até agora, Gilberto Freyre já apontava desde 1940: «Há perigos reais. Não perigos de nações contra nações - estes são transitórios - nem de Estado contra Estado - estes são ainda mais superficiais; e sim os perigos de culturas contra culturas; sim, as ameaças de imposição violenta da parte dos grupos tecnicamente mais fortes a grupos tecnicamente ainda fracos, de valores de cultura e de formas de organização social, dentro das quais os povos menores se achatariam em vassalos dos vencedores, ou por serem mestiços, ou por serem considerados corruptos, ou por isto, ou por aquilo.»
Veja-se a actualidade gilbertiana, agora em relação a outros povos de pretensões hegemónicas: «nenhum de nós é hoje bastante ingénuo para acreditar em lutas entre a democracia e a tirania, entre o ideal ou o culto do Direito todo de um lado e a força bruta toda do outro, entre nações de homens justos, honrados e de um só parecer contra nações de velhacos; se nenhum de nós se deixa iludir por qualquer dessas mistificações, por outro lado alguns acham prudente acreditar em perigos concretos contra os quais se impõem defesas, precauções, vigilâncias: até mesmo o confiar desconfiando, do caboclo brasileiro».
Diante da penetração do francês na Guiné-Bissau e do inglês em Moçambique (em Goa, Damão e Diu a ameaça anglófona oficial da Índia já consumada), diante mesmo do bahasa indonésio em Timor Leste, cumpre reagir em defesa da lusofonia com seus valores, recordando as palavras gilbertinianas de 1940: «resguardá-la de imperialismos de qualquer espécie, mesmo o apenas o doutrinário; resguardá-la de qualquer espécie de intromissão imperialista no íntimo de sua vida e no essencial de sua cultura ... »
A fome, a enfermidade, o desemprego, os danos antiecológicos e a opressão não têm pátria, mas o capital também não a tem. A forma é também o limite do conteúdo da economia à cultura. 0 universal permanece o princípio e o fim, porém através de mediações culturais.
Diante dos consumismos e modismos, lembremos sempre - aos lusófonos de Portugal, Brasil, África, Ásia e Oceânia - a nunca renunciarmos ao «princípio e o método de democratização das nossas sociedades... pela miscigenação, pela mistura das raças, pelo intercurso entre as culturas. Princípio e método que são a maior contribuição portuguesa e brasileira para o melhor reajustamento das relações entre os homens».
Gilberto Freyre nunca afirmou a democracia racial pronta e acabada na lusofonia, e sim que Portugal e Brasil dela estão mais próximos que qualquer outra cultura ou civilização actual. Compare-se Brasil e Portugal nesta viragem de século XX ao XXI, com a Bósnia, Chechénia, Kosovo ou Ruanda-Burundi. Que a África, a Ásia e a Oceânia lusófonas sigam também este caminho ao seu modo e maneira, inovando-os embora e protestando, acrescentando. Compare-se ainda Portugal e Brasil com as relações internas interétnicas nos Estados Unidos e países europeus com pretensão de ditarem normas a este respeito.
Ninguém é perfeito, nisto somos menos imperfeitos, motivo não de comemoração imobilista e sim de incentivo, mesmo de desafio, a corrigirmo-nos mais e melhor à frente de quem nos quer diminuir no contexto do conflito cultural, dentro do qual se efectuam os económicos, políticos, tecnológicos e éticos, em proveito dos seus interesses nem sempre coincidentes com os nossos, por trás de todo o seu discurso mais moralista que realmente moral.
A presença de Portugal no Mundo é também a do Brasil e a de toda a lusofonia diante de antigos e novos desafios.
Em Lisboa e Brasília, noutro início de século da lusofonía, da Europa à América, Áfríca, Oriente e Oceânia."
CHACON, Vamireh, “O Futuro Político da Lusofonia”, Lisboa-São Paulo, Verbo, 2002, p.p. 9 - 11.
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