FARÖ
(…) Dois dias após a partida de Moscovo, Karataev fora assaltado pela febre, tendo ficado de cama no hospital de Moscovo e, à medida que Karataev enfraquecia, Pierre ia-se afastando dele.
No cativeiro, no barracão, Pierre descobrira – embora não tivesse sido graças à sua inteligência, mas sim com todo o seu ser – que o homem fora criado para a felicidade, que a felecidade residenele mesmo, que consiste na satisfação das necessidades naturais do homem e que toda a infelicidade não vem da insuficiência mas sim do excesso; contudo, naquele momento, durante as três semanas de marcha, fora-lhe revelada uma nova e consoladora verdade: nada no mundo era verdadeiramente terrível. Aprendera que, tal como não existe uma situação em que o homem seja feliz e inteiramente livre, também não existe uma situação em que seja totalmente infeliz e privado de liberdade. Aprendera que existe um limite para os sofrimentos e um limite para a liberdade, limites estes que se aproximam bastante; que o homem sofria porque, no seu leito de rosas, uma pétala se dobrara, sofria como ele próprio sofria naquele momento, quando adormecia sobre a terra húmida, aquecendo-se de um lado e arrefecendo do outro; tal como sofria outrora, quando calçava os seus estreitos escarpins de baile, sofria agora ao andar descalço (há muito tempo que o seus sapatos se tinham estragado), com os pés cheios de crostas (…).
(...) Havia muito tempo que Pierre conhecia a história. Karataev contara-a umas seis vezes, especialmente para ele, sempre com uma disposição bastante alegre. No entanto, embora a conhecesse, Pierre prestou atenção, como se houvesse qualquer coisa de novo, tendo-se comunicado a Pierre a doce animação que Karataev manifestamente sentia. Era a história de um velho mercador, que vivia honestamente com a família no temor de Deus, tendo ido um dia à feira de Makari com um amigo, um rico mercador.
Tendo parado numa estalagem, os dois mercadores tinham-se deixado adormecer. Na manhã seguinte, o companheiro do mercador foi encontrado com a garganta cortada e roubado. A faca ensanguentada fora encontrada debaixo do travesseiro do velho mercador. Julgaram o mercador, chicotearam-no, arrancaram-lhe as narinas, «como se deve fazer, segundo a lei», dizia Karataev, e mandaram-no para os trabalhos forçados.
- Eis que, irmão (fora neste ponto da narração que Pierre chegara), dez anos se passaram e mais ainda. O velhinho nos trabalhos forçados. Submete-se a tudo, não faz nada de mal. Apenas pede a Deus que lhe envie a morte. Bem… Eis que uma noite os condenadas se juntam, como nós aqui estamos agora, tu e eu; e o velhinho está com eles. Acabam por contar por que crime estão ali a sofrer, em que é que ofenderam a Deus. Cada um deles se põe a contar: uma matara uma alma, o outro duas, um terceiro era um incendiário, outro um vagabundo, sofrendo por nada. Interrogaram o velhinho: «E tu, por que é que sofres, avô?»
- «Eu irmãos, sofro pelos meus pecados e pelos dos outros. Mas não matei uma única alma, não roubei o que não era meu, partilhei com os desgraçados. Eu, irmãos, sou um mercador e tinha grandes riquezas. Eis o que me aconteceu», disse ele. Contou-lhe então toda a história. «Eu, disse ele, não me aflijo por mim. Deus escolheu-me. Só me aflijo pela minha velha e pelos meus filhos.» Dito isto, o velhinho pôs-se a chorar. Mas eis que entre aqueles se encontrava o homem que matara o mercador. «Onde é que isso se passou, avô?», disse. «Quando? Em que mês?» Perguntou tudo e os eu coração doeu-lhe. Aproximou-se assim do velhinho e bum! cai aos pés dele. «É por mim, meu pobre velho, que tu sofres», disse. «É verdade verdadeira, irmãos, este homem sofre sem razão, é inocente. Fui eu quem fez a coisa e meti a faca debaixo do teu travesseiro, quando tu dormias. Perdoa-me, avô, em nome de Cristo!»
Karataev calou-se, sorrindo alegremente; olhou para o fogo e arranjou uma acha.
- O velhinho disse: «Que Deus te perdoe, nós somos todos pecadores perante Deus. Eu sofro pelos meus pecados.» E derramou lágrimas amargas. Então, que pensas tu, meu falcãozinho! – dizia Karataev, com o rosto a brilhar cada vez mais, num sorriso maravilhado, como se fosse no que ainda tinha para contar que residia a beleza e o sentido da sua narração.
-Que pensas, meu falcãozinho! Aquele assassino acusou-se às autoridades. «Matei seis almas», disse (era um grande crime), mas por este velhinho tenho muito dó. Que ele não core por causa de mim.» Contou tudo, escreveram, mandaram um papel como se devia. O lugar era afastado, levou muito tempo a julgarem e fazerem o necessário, até que os papeis fossem escritos como é conveniente, passando pelas autoridades. Foi até ao czar. Chega enfim a ordem do czar: «que libertem o mercador, que lhe dêem como compensação o que fora decidido». O papel chegou, procuraram o velhinho. - «Onde está ele, o velhinho que sofreu inocentemente? Há um papel do czar!» Procuram (o queixo de Karataev tremia). A ele Deus já perdoara, ele estava morto. É assim, meu falcãozinho – concluiu Karataev, ficando silencioso por muito tempo, olhando em frente e sorrindo (…).
(...) Os acontecimentos reais voltaram a confundir-se com as imagens do sonho e, novamente, alguém, ele mesmo ou outra pessoa, falava e dizia as mesmas coisas que dissera em Mojaisk.
«Á vida é tudo, a vida é Deus. Tudo muda de lugar, tudo se move e este movimento é Deus. Enquanto dura a vida, dura a alegria e a consciência da divindade. Amar a vida é amar a Deus. A maior dificuldade e a mais alta beatitude é amar a vida nos seus sofrimentos, nos seus sofrimentos imerecidos.»
«Karataev!, lembrou-se Pierre.
Subitamente, Pierre viu diante de si, como se estivesse vivo, um velhinho de que se esquecera há muito tempo e que, na Suiça, lhe ensinara geografia. «Espera», disse o velhinho a Pierre, mostrando-lhe um mapa-múndi. Este mapa era uma esfera viva, móvel e sem limites precisos. Toda a superfície da esfera era constituída por gotas, estreitamente apertadas umas contra as outras. Todas estas gotas se moviam, mudavam de lugar, misturando-se muitas delas para formar uma única, dividindo-se uma destas para dar origem a outras. Cada gota procurava dilatar-se, ocupar o maior espaço possível, embora as outras tentassem fazer o mesmo, pressionando-a, ora a destruindo, ora se unindo a ela.
-Eis a vida – disse o velho professor.
«Como é simples e claro», pensava Pierre. «Como poderei ter ignorado isto até agora?»
- Ao centro, Deus, procurando cada gota alargar-se para O reflectir na sua maior extensão. Ela cresce, une-se às outras, retrai-se, desaparece da superfície, desce às profundezas e emerge novamente. Eis Karataev, dilatou-se e desapareceu. Vous avez compris, mon enfant?, disse o professor.
- Vous avez compris, sacré nom ! – gritou uma voz, e Pierre acordou. (…)
Tolstoi, Guerra e Paz.
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