Na montanha V
"Mas o dilema, senhor, a tragédia começa onde a Natureza foi bastante cruel para romper, ou para impedir desde o início, a harmonia da personalidade, associando uma alma nobre e disposta a viver a um corpo inapto para a vida. Conhece Leopardi, meu caro engenheiro? Ou o senhor, tenente? Um poeta infeliz da minha terra, um corcunda enfermiço, com uma alma primitivamente grande, mas diminuída sem cessar pela miséria do seu corpo e arrastada aos abismos da ironia, mas cujos lamentos dilaceram o coração. Ouçam isto!
E Settembrini começou a declamar em italiano, deixando as sílabas fundirem-se na língua, agitando a cabeça, e fechando os olhos, sem se preocupar com o facto dos seus companheiros não entenderem nenhuma palavra. Esforçava-se, visivelmente por saborear a sua memória, e a sua pronúncia, realçando-lhes o valor perante os seus auditores. Finalmente, disse:
- Mas os senhores não compreendem. Ouvem sem perceber o sentido doloroso dos versos. O doente – Leopardi – compenetrai-vos bem disto – foi privado sobretudo do amor das mulheres, e foi isso, antes de mais nada, o que o tornou incapaz de impedir a desagregação da sua alma. O esplendor da glória e da virtude empalidecia ante os seus olhos; a Natureza afigurava-se-lhe má – de resto é realmente maldosa, estúpida e má; neste ponto concordo com ele – e desesperou, é terrível dizê-lo, desesperou da Ciência e do Progresso. Aqui é que principia a tragédia, meu caro engenheiro. Aqui é que o senhor encontra o seu «dilema da alma humana», mas não nessa mulher, renuncio a sobrecarregar a minha memória com esse nome… Não me fale da «espiritualização» que pode resultar da doença, por amor de Deus, não faça isso! Uma alma sem corpo é tão desumana e atroz como um corpo sem alma. O primeiro é, aliás, uma rara excepção, e o segundo, é regra. Regra geral é o corpo que tem supremacia, açambarca toda a vida, toda a importância, e emancipa-se da maneira mais repugnante. Um homem que vive como doente é corpo e nada mais, e nisso está o anti-humano, o humilhante… Na maioria das vezes não vale mais do que um cadáver..."
Thomas Mann, "A Montanha Mágica".
Nenhum comentário:
Postar um comentário