Na montanha VI
"Segundo os pontos de vista de Settembrini, havia dois princípios que disputavam a posse do mundo: a Força e o Direito, a Tirania e a Liberdade, a Superstição e a Ciência, o princípio da conservação e o do movimento: o Progresso. Podia chamar-se a um o princípio asiático e ao outro o europeu, visto ser a Europa a terra da rebelião, da crítica e da actividade transformadora, ao passo que o continente oriental encarnava a imobilidade, o repouso. Não existia a menor dúvida quanto à questão de saber qual das forças terminaria por triunfar; só poderia ser a da Luz, a do aperfeiçoamento guiado pela Razão. Pois a Humanidade arrastava incessantemente novos povos pelo seu caminho brilhante, ganhava cada vez mais terreno na própria Europa e estava a ponto de penetrar na Ásia. No entanto, faltava ainda muito para que a sua vitória fosse completa, e grandes, magnânimos esforços eram exigidos dos homens de boa vontade, dos que haviam recebido a luz, até que raiasse o dia em que desmoronassem as monarquias e as religiões, até naqueles países que, na verdade, nunca tinham vivido o seu século XVIII nem seu ano de 1789. – Mas esse dia há-de chegar, dizia Settembrini, esboçando um fino sorriso sob a curva do bigode. Se não chegar pelos pés das pombas, chegará sobre as asas das águias. Nascerá com a aurora da confraternização geral dos povos sob o signo da Razão, da Ciência e do Direito. Trará a santa alinaça da democracia dos cidadãos, em esplêndido contraste com aquela três vezes infame aliança dos príncipes e dos gabinetes, cujo inimigo mortal, o inimigo pessoal foi o avô Giuseppe, numa palavra, a República Universal. Mas, para alcançar esse objectivo final era, antes de mais nada, necessário ferir o princípio asiático, o princípio do servilismo e da inércia, no centro e no nervo vital da sua resistência, que era Viena. Tratava-se de vencer, de aniquilar a Áustria, primeiro para tirar a desforra das suas façanhas do passado, e depois para preparar o caminho, o reino da justiça e da felicidade sobre a Terra."
Thomas Mann, "A Montanha Mágica".
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