quarta-feira, 16 de setembro de 2009

BRECHT SOBRE BAAL

10 de Fevereiro de 1922
Espero ter evitado em BAAL e NA SELVA um grande erro de outras artes: o seu esforço para arrastar o público consigo. Criei instintivamente distâncias e preocupei-me em fazer com que os meus efeitos (poéticos e filosóficos) fossem controlados. O magnífico isolamento do espectador não é afectado, não se trata de sua res, quae agitur, ele não sente que tenha sido convidado a partilhar sentimentos, a encarnar no herói e a comportar-se de maneira indestrutível e importante ao observar-se a si próprio simultaneamente em dois exemplares. Há um interesse de um tipo mais elevado: o da comparação, o do outro, imenso, surpreendente.

Janeiro 1926
O modelo para Baal
A biografia dramática chamada BAAL trata da vida de um homem que viveu na realidade. Era um tal Josef K., do qual pessoas me diziam conseguirem lembrar-se claramente, tanto da sua pessoa como da sensação que provocava. K. era filho ilegítimo de uma lavadeira. Cedo ganhou má reputação. Sem ter obtido qualquer formação, parece ter sido capaz de impressionar pessoas de facto bastante cultas com conversas extraordinárias pela informação que continham. O meu amigo dizia-me que com a sua maneira incomparável de se movimentar (ao pegar num cigarro, ao sentar-se numa cadeira, etc.), K. provocou uma tal impressão numa quantidade de gente, que estes, sobretudo jovens, passaram a imitá-lo. No entanto, devido ao seu estilo de vida irreflectido, foi-se afundando cada vez mais, sobretudo porque nunca tomou nenhuma iniciativa e porque de cada vez que alguém lhe dava uma oportunidade a explorava de maneira vergonhosa. Vários episódios obscuros pesam-lhe na conta, por exemplo o suicídio de uma rapariga. Tinha formação de mecânico, mas que se saiba nunca trabalhou. Quando as coisas em A. começaram a ficar quentes de mais, fugiu para bastante longe com um médico falhado. Voltou porém em 1911 a A. Numa tasca em Lauterlech, no meio de uma rixa que meteu facas, este seu amigo morreu, quase de certeza morto pelo próprio K. Que de qualquer das formas desapareceu muito rapidamente de A. e parece que morreu miseravelmente na Floresta Negra. ["Das Urbild Baals" em Die Szene, Berlin, Janeiro, 1926]

Por volta de 1926
Sobre Baal
Procurava em vão, ao tornar visível a figura de Baal no palco, mostrar a oposição à burguesia "daquele" tempo. A burguesia estava já tão arruinada, sem salvação possível, que apenas criticava a forma que - enquanto forma - era indiferente, acessória, ou então tentava acabar com um tal "je ne sais pas quoi" da formulação. O verdadeiro opositor só posso esperar encontrar no proletariado. Sem ter sentido em mim esta oposição nunca teria sido capaz de criar um tipo como aquele.

1954
Olhando para as minhas primeiras peças
[...] A peça BAAL pode causar várias dificuldades àqueles que não aprenderam a pensar de forma dialéctica. Não conseguirão ver na peça muito mais do que uma glorificação de um puro egotismo. No entanto há um indivíduo que se opõe às exigências e os desencorajamentos de um mundo que conhece não uma produtividade utilitária mas exploradora. Não podemos dizer como reagiria Baal se os seus talentos fossem utilizados: ele não o deixou. A arte de viver de Baal partilha o destino de qualquer outra arte no capitalismo: é atacada. Ele é associal, mas numa sociedade associal.
Vinte anos depois de ter escrito BAAL estou ocupado com um material (uma ópera) que volta a pegar na ideia principal do BAAL. Há uma figura chinesa do tamanho de um dedo, de madeira e vendida no mercado aos milhares, que representa o deus gordo e pequeno da Felicidade confortavelmente deitado. Este deus, vindo de Leste, devia entrar nas cidades que foram destruídas após uma grande guerra a fim de convencer as pessoas a lutarem pela sua felicidade e bem-estar pessoais. Juntou seguidores de vários tipos e torna-se alvo de perseguição por parte das autoridades quando alguns deles começam a proclamar que os camponeses têm direito à terra, os trabalhadores a tomar conta das fábricas, os filhos dos trabalhadores e camponeses a tomar conta das escolas. É preso e condenado à morte. E então os carrascos praticam a sua arte no pequeno deus da felicidade. Mas o veneno que lhe fazem engolir só lhe sabe bem, a cabeça que lhe cortam volta de imediato a crescer, no patíbulo ele executa uma dança brincalhona e contagiante, etc, etc. É impossível matar por completo a necessidade de felicidade da humanidade.
Nesta edição, a primeira e última cena de Baal foram revistas. De resto deixo a peça conforme a primeira versão, dado que me faltam forças para a mudar. Admito (e aviso): à peça falta sabedoria. [...]
["Bei Durchsicht meiner ersten Stücke" Prefácio para Stücke 1.]

Baal não é um poeta especialmente moderno. Baal não é um prejudicado pela natureza. É do tempo em que esta peça for apresentada. É a dolorosa caveira de Sócrates e Verlaine. Aos actores que reclamam os extremos quando não conseguem encontrar soluções no intermédio: Baal não é uma natureza nem cómica nem trágica. Tem a seriedade de todos os animais. A peça pretende mostrar que é possível conseguir-se o seu quinhão, se se estiver disposto a pagar. A peça não é a história de um ou dos muitos episódios, mas de uma vida. Começou por se chamar: "Baal devora! Baal dança!! Baal glorifica-se!!!"
Bertolt Brecht, Sobre BAAL

in www.artistasunidos.pt/baal.htm

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